19.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 19-12-2022

Estou de novo a bordo do S. M. II. As razões interessam pouco: deixemo-las de lado, que é aonde pertencem. O que interessa agora é esta sensação de ter um elástico nas costas que me leva para um barco, de preferência veleiro, cada vez que penso ter finalmente um pé em terra. É como se isto fosse o meu habitat natural, inelutável e de cada vez que penso que me afastei dele por uns tempos o dito habitat persegue-me, alcança-me, engole-me, coça a barriga e ri-se. E depois, claro, penso na sorte que é ter aquele grupo de que falei no outro dia, o grupo dos Eles, aqueles que me demonstram que não estou sozinho por muito que às vezes pense estar.

De maneira oiço a chuva, sinto com prazer os embalos do bote, felicito-me por ter deixado a burra no edifício do escritório (se amanhã tiver sorte os funcionários da doca partilharão o meu entusiasmo) e pergunto-me se os meus últimos vinte anos serão, um dia, mais calmos do que os precedentes.  Claro que serão. Antigamente, durante as tempestades os marinheiros deitavam óleo para o mar, para diminuir a violência das vagas. Os meus óleos para aplacar os anos que aí vêm são dois: o neto e escrever. (Neste não ponho muita fé, mas naquele sim.) Dorme-se bem num barco, pelo menos se não se for claustrófobo, sobretudo quando se ouve a chuva de tão perto e se está bem tapado, quente como se se estivesse ao lado de uma lareira.

Só que agora a lareira está do lado de dentro de mim e não sei se queima se aquece.

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