21.1.23

Linhas

"I don't know much about gods', dizia Eliot. Ruy Belo respondia-lhe:

"É antes do anoitecer suavíssimo dos deuses
antes do começar da sombra rente às árvores..."

É naquela linha que o Sol poente traça entre a luz e a sombra, ... É nessa linha que habitamos... 

Começo por procurar uns versos de Ruy Belo que me levam a Eliot e encontro um post meu de há três anos. Há quem chame a isto a linha do tempo ou a linha de luz. Conrad chama-lhe a linha de sombra. Seja do que for, é uma linha, uma fina e ténue linha que se vê mal. Para ser vista requer olhos e um bocadinho de alma. Psique e soma. Tateio hesitante a luz rugosa do fim do dia, uma luz "rente às árvores" e eu que nada sei de deuses pergunto-me o que está para lá daquela sombra que adivinho nos troncos, na metade deles voltada para mim, na escuridão que avança silenciosa, empurrada - quem sabe - por esses deuses de que nada sei. 

É mentira que nada sei de deuses. Quem como eu coabita com os diabos todos da criação tem de conhecer os deuses também,  se não não sobrevive. Andam sempre juntos. Naquele diálogo estou do lado de Belo: é em mim que os deuses escolheram anoitecer delicadamente e finjo não os conhecer, não lhes falo, limito-me a olhar para eles, para a luz rugosa que me estendem num prado meio coberto de neve. As árvores, a neve, a luz, as sombras que avançam para mim, que saem de trás dos troncos onde durante o dia se esconderam, de debaixo dos ramos que um vento forte agita. Tudo isso e eu, o que vejo fora de mim é o que está dentro, como se fosse um espelho ou feito de cristal transparente, como se fosse uma suavíssima parte da paisagem, inquieto à procura dos deuses escondidos nesta linha entre a sombra e a luz, essa linha onde todos habitamos, seja ela de sombra, de luz ou de tempo.

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