12.9.24

Silêncio?

Nunca conseguirei perceber as pessoas que dizem que gostam de barcos à vela por causa do silêncio. Não há silêncio nenhum num veleiro. Isto fala pelos cotovelos e quantas vezes aos gritos, como agora. E estamos na marina.

Hopper

É um quadro do Hopper: uma casa à beira-mar com uma porta aberta, a luz entra a jorros e iumina uma parede. Não há personagens, só a luz, as paredes  o mar, tudo geométrico e apesar disso o quadro respira vida: a nossa, tanta é a vontade que nos dá de estarmos naquela casa. A luz na parede de uma casa com uma porta que dá para o mar. Adivinho que teria espaço para pôr os meus livros e penso que poderia estar ali, à porta, que sou eu a personagem que só ali está na imaginação ou no desejo de quem vê o quadro.

(Edward Hopper, Rooms by the sea, óleo sobre tela, 1951.)

Christian Bobin, ainda e sempre

"Je cherche la vie délivrée de la vie, l'amour délivré de l'amour, ce froissement d'or d'un diapason, cette note pure qui tremble bien avant notre naissance et après notre mort."

Christian Bobin, Le Murmure, ed. Gallimard 

(Obrigado ao Emanuel Cameira e à sua Barco Bêbedo por me ter feito conhecer Bobin.)

(Cont.), beleza

- Como se a beleza fosse um mundo, um mundo que não admite a mentira - como o mar, de resto, não se pode mentir ao mar, no mar. A beleza é assim. A mentira é detectada e expulsa imediatamente. Talvez seja por isso que somos "oprimidos pelas imagens da beleza": não há escapatória, não há aquelas vias nas autoestradas para os camiões que ficaram sem travões. Só há a beleza e a sua ausência. Não há espaço para a mentira. A beleza contém em si a verdade e só a verdade.

- E o amor, que fazes tu do amor?

ADENDA 
"Tout amour est divin. J'entends par "divin" la vie humaine, rien qu'humaine, délivrée d'elle-même."

"Si tu n'écris pas contre toi tu n'écris rien."

(Christian Bobin, Le Murmure, ed. Gallimard.)

Glossário parcial

Fragmento (ou por vezes Fragmentos) são posts feitos a partir de coisas que escrevi em correspondência privada. Auto-citações, por assim dizer. Chamam-se fragmentos porque o são, regra geral. Às vezes peço autorização às pessoas a quem a correspondência era dirigida; outras não. Depende não sei bem de quê, mas depende. Assim de repente, diria que depende do acaso.

Há alguma coisa que não, Sigmund?

Fragmento

Como a relação assimétrica entre a beleza e a verdade: nem tudo o que é verdadeiro é belo, mas tudo o que é belo é verdade.

11.9.24

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 11-09-2024 / II

O homem põe e o Raymarine dispõe. Desta vez foi o piloto. Ainda pus a hipótese de governar à mão até La Coruña, mas felizmente o bom senso interpôs-se e voltei para trás. Com dois tripulantes inexperientes e um braço esquerdo que não só não serve para nada mas também provoca dores intoleráveis continuar teria sido uma idiotice sem fim. Aparentemente o problema está no fluxgate, nome chique para agulha digital. (Agulha sendo o nome chique de bússola, se por acaso.)

De modo cá estou de novo na brasserie La Hune, que faz ofício de escritório e cantina. O técnico volta amanhã a bordo, mas só no fim da manhã. Até lá, faço como a Penélope mas sem um sudário que tecer. E vou tratando do P., para quem crair chatices é mais do que um passatempo. É uma missão.

É a segunda vez que o Raymarine nos causa um problema - à chegada a Dunkerque e agora - mas não é nisso que penso. É no facto de que nós, skippers profissionais, estamos cá para quando as coisas correm mal. Quando está tudo bem ninguém precisa de nós - ou pelo menos pensa que não precisa. Mas depois o vinho azeda e quem está para o beber?

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 11-09-2024

Vito é um sem-abrigo que dorme numa na porta de um prédio perto do meu escritório. Vejo-o todos os dias. Começámos por nos cumprimentar gentilmente mas hoje, passados meses da sua instalação ali, falamos quase todos os dias. Vito arranjou um sistema tão engraçado quanto eficaz de pedir: a meio da tarde mostra uma folha A4 plastificada na qual diz «Mais dez euros e atinjo o objectivo diário». Isto tem piada porque num quarteirão de bancos e de empresas as pessoas são sensíveis à palavra «Objectivo». Estou longe de ter a certeza que aquilo seja verdade. Vito nunca me disse qual era o seu objectivo diário. Um dia dei-lhe os dez euros para ver se ele continuava com o papel na mão. Não. Fora-se embora, beber «metade do objectivo», aspas porque cito. «A outra metade poupo.»

Nunca percebi o que fazia ou tinha feito antes de se encontrar na rua. Ele não mo disse e eu não lhe perguntei, reflexo de simetria que tenho desde a jovem idade adulta, já lá vai um bom par de semanas.

Hoje voltei para o trabalho depois de um almoço tardio. Vito tinha o cartaz à vista mas a sua expressão fez-me parar. 
- Que tens? Não estás com boa cara.
- Estou cheio de dores em todo o lado. Se o meu futuro vai ser isto, despeço-o.
- Talvez bastasse trocá-lo por outro mais confortável, não?
- É mais fácil trocar de passado do que de futuro.
- ...
- Estou morto de dores e quase morto de não morrer delas. «On est tous des farceurs. On survit à nos problèmes.»

Nunca o tinha ouvido falar francês, nunca imaginei que conhecesse Cioran. Fui a um Multibanco, levantei o máximo possível (quatrocentos euros, vivemos num país de tesos) e dei-lhos. 
- Enfia-te num sítio qualquer longe da minha vista, pode ser? Confortável, se possível. Se quiseres eu reservo-te um quarto. Obrigado. Se morreres avisa-me antes, por favor. Obrigado. E se precisares de mais para atingires o objectivo da semana avisa-me também. Hoje é tudo o que tenho disponível.

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Hoje tenho uma janela de tempo para largar. Vamos com a maré da tarde. O tempo continua frio e húmido no limte da chuva. Entreguei a bicicleta, bebo o último par de runs (St. James a quatro e meio? Só tenho pena de não poder beber mais), consulto a previsão - não mudou, isto vai ser uma merda até Ouessant - e digo-me que se amar alguém é amar os seus defeitos o princípio pode ser aplicado a tudo, incluindo o trabalho.

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«Pelo menos não gastas», diz-me V. «Não gasto? Não gastaria se não houvesse livrarias e rum nos restaurantes. Havendo umas e outros, a carteira não tem descanso». Vá lá: gasto pipas em livros e frasquinhos em rum. Se fosse ao contrário seria pior.

9.9.24

Convalescença

O meu ano de 2023 foi horroroso e pensei que 2024 seria bom. 

Não estava a ver as coisas como deve ser: o ano passado foi uma doença e este é a convalescença. 

ADENDA: Com vontade de se transformar em recaída.

Mixed feelings, (Cont.)

O título da fotografia bem podia ser mixed feelings, se eu lhes desse títulos. Não dou e menos ainda em inglês. 

Mas a pergunta é: de quem são esses sentimentos ambíguos? Da natureza, o Sol e os nimbus que se afastam ainda cinzentos, parede quase ameaçadora (está a afastar-se. Se não estivesse, sê-lo-ia)? Ou meus, encantado pela luz, cheio de frio porque estava no salão e quando vi que havia luz fui a correr pegar na máquina por pressentimento, mero pressentimento e vim para o poço cheio de frio por causa do vento, também,  e a luz estava a desaparecer, tive uma sorte danada, apanhei-lhe o último estertor e seria a esta mistura de exaltação, frio e sorte que me referia?

Vá lá saber-se. Há sentimentos contraditórios, sim, porque me quero ir embora e ao mesmo tempo gosto desta região e tenho pena de não a percorrer com mais pormenor.

Sim, foi um dia de sentimentos confusos, contraditórios, mas haverá outros? Isto é: havê-los-á que não sejam assim? Isto é: para que servem os sentimentos se não forem como um choque frontal entre dois carros a toda a velocidade? 

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 09-09-2024

 «A minha agenda é feita de água», dizia hoje a um amigo. «E não sou o único a escrever nela». Depois acrescentei: «Geri-la é como para um doente de paralisia cerebral fazer malabarismo com seis bolas». Tenho a confirmação disto todos os dias. Hoje havia dúvidas sobre a largada por causa de um ataque de orcas aqui perto. Chegámos todos à conclusão de que saíamos, mas quando depois de almoço cheguei a bordo fiquei a saber que a bomba de água de arrefecimento do motor tinha uma fuga, provocada provavelmente por um o-ring defeituoso. Sendo hoje segunda-feira todos os sítios aonde se poderia encontrar a dita peça - um anel de borracha de dois centímetros de diâmetro - estão fechados. Acontece que o tempo não nos deixa sair amanhã e quarta está longe de ser seguro. Ou seja: a minha hipótese de um fim-de-semana no Porto foi para o galheiro.

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O S/Y J.T. é um Bavaria 49 de não sei que ano. O proprietário diz que tem trinta anos, mas deve ser um arredondamento. Muito menos não terá com certeza: ao fim de uma semana, o bote parece sólido e bem construído. Foi comprado a um senhor que queria fazer dele a sua residência secundária mas enviuvou e abandonou o projecto. 

Resultado: 

- Baterias: 4 x 190 aH;
- Equipamento: 1 eólica; painéis solares; 1 gerador; 1 máquina de lavar a roupa; uma máquina de lavar a loiça (nunca utilizada); ar condicionado; aquecimento.

O inversor está permanentemente ligado: o café é feito ad libitum numa máquina de 220. Há máquinas, ferramentas e sobressalentes - menos o-rings, claro - suficientes para se montar uma oficina. Dizer que tudo isto é inversamente proporcional aos conhecimentos de navegação do senhor ficaria muito aquém da verdade. A minha perene pergunta mantém a sua perneidade: porque é que esta gente não compra uma casa ou um camping car?

(Devo dizer que lhes estou infinitamente grato por comprarem barcos e me contratarem.)

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Almoço no Café du Port, convencido de que seriam os últimos mexilhões decentes antes de muito tempo. Não estavam decentes. Estavam sublimes. 

8.9.24

Diálogo, carcaça

Pequena nota que não será lida por quem o deveria ser: não sou hipocondríaco. De longe. Nunca fui, nunca serei. Entrei simplesmente numa fase do meu diálogo com a carcaça de que não percebo metade (do diálogo, não da fase. Essa percebo-a perfeitamente).

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 08-09-2024 / II

Roscoff é uma pequena cidade na Bretanha, «ville de caractère», segundo a placa à entrada quando se vem da marina. Passei aqui dois ou três dias há coisa de um ano e ainda me lembro destas ruas e respectivas casas, sóbrias, quase austeras (o quase deve-se às portadas pintadas de cores vivas, pied-de-nez ao nevoeiro, à chuva, ao frio e a tudo o que faz da Bretanha o que ela é). Pergunto-me se seria capaz de viver aqui e a resposta é veemente: não, não seria. Demasiado longe de Paris e demasiado perto de nada. Enfim, talvez de Brest - uma hora de carro, diz-me o Google Maps.

De qualquer forma é uma falsa questão e não tem nada a ver com o clima, com a austeridade das ruas - que não deixa de ser bela, de resto - com a distância à «cultura» (aspas porque é trocista). Cada vez me é mais evidente que não consigo viver longe da minha língua, por muito que o seu país me decepcione. 

Na verdade, olho para trás - para muito longe atrás - e vejo que este dilema não é de hoje. É de anteontem, de antes de anteontem, de sempre. Tenho de começar a andar com a língua atrás, está visto. É um dilema que não sabia formular até há bem pouco tempo, daí tantas hesitações e tantos ziguezagues. A capacidade que ser capaz de exprimir claramente qualquer ideia tem de a tornar operacional é um fenómeno. Pergunto-me se os gansos, os bonobos ou as putas da orcas a têm. Estas últimas têm, de certeza. Bastaria explicar-lhes claramente que atacar-nos poderia ter custos. Infelizmente andamos a dar voltas ao penico em vez de lhes explicar clara e firmemente que os nossos lemes não são brinquedos.

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Em resumo: estou ansioso por chegar ao Porto.

Biografias, vantagem

A vantagem de ler biografias depois de uma certa idade (do leitor, não do biografado) é ficar-se a perceber onde e porque se falhou. 

Ou será "desvantagem"?

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 08-09-2024

Frio, chuva, mais chuva e frio. Estive aqui faz agora um ano, mais dia menos dia e queixava-me de a temperatura não passar dos vinte e dois graus. Bem, agora está nos quinze e vai subir até aos dezoito, diz-me a meteo da Microsoft, ignoro qual seja. Tanto o GFS como o ECMWF - consultados por curiosidade - apontam para dezassete. O meu termómetro interno diz simplesmente «Frio, demasiado frio». Se bem na verdade a chuva me custe mais a suportar. Enfim, é o que é.

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Um dos tripulantes - o sobrinho - descobriu ontem que na segunda que vem tem de estar na Holanda, por causa do trabalho. Resultado: o plano agora é ir daqui directamente ao Porto. Queria parar na Corunha para adquirir material defensivo anti-orcas mas parece-me que vou ter de ir sem isso. Merda de tempos estes em que a única espécie não protegida é a humana.

Isto dito, o jovem é um tipo porreiríssimo, um excelente tripulante apesar da sua total inexperiência e tenho pena de o ver partir.

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Descubro uma inusitada e até agora insuspeita atracção pela palavra «amanhã», exacerbada pela hiper-actividade dos meus tripulantes. «Deus fez o mundo, os holandeses fizeram a Holanda», dizem eles. Agora que a Holanda está feita continuam a fazer sem parar. É vertiginoso, tanto «fazemos agora, que fica feito». Também já fui assim, penso, mas agora não sou. Amanhã é uma palavra deliciosa, terna, acariciadora, carinhosa. «Não deixes para amanhã o que podes fazer depois de amanhã», dizia a piada do MAD Magazine que tantas vezes usei ironicamente. Pois agora ganhou estatuto de primeiro grau.

7.9.24

Diário de Bordos - No mar ao largo de Guernsey, Ilhas Anglo-Nornandas, 07-09-2024

O raz Blanchard - também conhecido por Alderney Race - apresentou-se com oito nós de corrente contra, a que o T. J. reagiu muito apropriadamente com um VMG que oscilava entre os zero ponto seis negativos e os zero ponto seis positivos, apesar de o motor vir no máximo admissível - ou talvez por isso. O vento estava fraquinho e de popa. Ou seja: podia escolher entre a Scilla da popa arrasada e a Caribdes da corrente na amura. Escolhi esta última, desenrolei a genoa e orcei. O VMG passou para um a um vírgula dois positivos e eu só tenho pena de não ser de dia, para ver esta correnteza toda. A certa altura tive de fazer leme porque o piloto não aguentava e agora escrevo isto já sem motor, a um largo, seis nós (a corrente ainda não virou), uma noite até aqui linda e estrelada mas agora totalmente coberta, as luzes das anglo-normandas a estibordo e as de França a bombordo, com um bocado de frio e o ombro esquerdo a massacrar-me e não consigo pensar senão na sorte que tenho, no que isto é tão bom e em que raio fiz eu certo, que ainda não percebi?

Os tripulantes - o dono e um sobrinho - são encantadores, holandeses e falam mal inglês,  qualidade que aprecio bastante. Percebem pouco de navegação (à vela ou a motor), outra benfeitoria - se percebessem não precisariam de mim.

É verdade que navegar com pessoas inexperientes e que querem aprender tem os seus inconvenientes,  o menor dos quais não é o suplemento de trabalho. Zelar por três fontes potenciais de erros é mais trabalhoso do que preocupar-me só comigo e com as minhas asneiras. Mas enfim, posto no prato da balança isto não pesa. E agora, sozinho no poço, quase com Jersey pelo través, o piloto a dar conta do recado... Que mais querer?

[Eu digo: que o vento não ronde já a leste e espere pela hora da previsão.]

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Estou tão cansado que não é apercebi sequer de que o estava. Foi preciso chegar ao café para ver que mal tinha forças para falar. 

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O tempo não ajuda. Um bocadinho de sol não faria mal nenhum. Chuva e frio no princípio de Setembro fazem.

6.9.24

A relação inexistente

A relação dos portugueses com a ironia é uma relação triste, desolada, inexistente por abandono de uma das partes.

Tal como com o humor, de resto. Não é por acaso que os nossos humoristas se contam pelos dedos de uma mão (os Gato Fedorento contam como uma unidade). E que Bruno Nogueira (por exemplo, um entre muitos) seja considerado humorista.

"Mais vale cair em graça do que ser engraçado" está ao nível de "um burro carregado de livros" para nos definir como povo.

A ironia e o sarcasmo são recebidos em Portugal como as noventa e cinco teses de Lutero o foram em Roma. Com uma diferença grande: pelo menos o Papa percebia o que o Martinho dizia.

4.9.24

Reedição - Rabindanath Tagore

Naqueles dias em que um gajo precisa dolorosamente de ler Tagore e não tem os livros: obrigado, Google.

"Keep me fully glad with nothing. Only take my hand in your hand.
In the gloom of the deepening night take up my heart and play with it as you list. Bind me close to you with nothing.
I will spread myself out at your feet and lie still. Under this clouded sky I will meet silence with silence. I will become one with the night clasping the earth in my breast.
Make my life glad with nothing.
The rains sweep the sky from end to end. Jasmines in the wet untamable wind revel in their own perfume. The cloud-hidden stars thrill in secret. Let me fill to the full my heart with nothing but my own depth of joy."


.........

“I am the boat, you are the sea, and also the boatman.
Though you never make the shore, though you let me sink, why should I be foolish and afraid?
Is reaching the shore a greater prize than losing myself with you?
If you are only the haven, as they say, then what is the sea?
Let it surge and toss me on its waves, I shall be content.
I live in you whatever and however you appear.
Save me or kill me as you wish, only never leave me in other hands.”

........
"Where roads are made I lose my way.
In the wide water, in the blue sky there is no line of a track.
The pathway is hidden by the birds' wings, by the star-fires, by the flowers of the wayfaring seasons.
And I ask my heart if its blood carries the wisdom of the unseen way.”

Diário de Bordos - Dunkerque, França, 04-09-2024

O homem põe e o AIS dispõe. Mais um dia em Dunkerque.

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- A vida é um concurso de tiro ao alvo para cegos, não é?
- Para cegos e para zarolhos.

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"Si tu n'écris pas contre toi, mieux vaut ne pas écrire."

Christian Bobin, in Le Murmure, ed. Gallimard.

(A citação é de memória, mas não anda longe do original.)

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Um gajo navega três dias com holandeses e apercebe-se dos intransponíveis abismos culturais que nos separam. (De caminho, também de porque é que eles são ricos e nós não,  mas isso fica para outra missa.)

O direito à placidez devia fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se calhar faz, eles é que não sabem.

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Gastei uma pipa de massa em livros e um frasquito pequenino em rum. Devia ser ao contrário,  mas isto anda tudo invertido.

(Cont.)

3.9.24

A cor dos teus cabelos

Basicamente sei que estamos quase no Outono porque tenho a pele seca apesar de tudo o que andei hoje; e bebi vinho em vez de cerveja; e porque a luz do poente, filtrada pela humidade, ilumina estes prédios tão feios e fá-los parecer bonitos, coisa que só um poente outonal - ou primaveril, mas não estamos quase na Primavera - conseguiria

Contudo, estes são métodos básicos. De uma forma mais elaborada, poderia ir ao calendário astronómico e ver que o equinócio vai ser dia vinte e dois ao princípio da tarde, daqui a duas semanas e meia. Ou, melhor ainda: dar um passeio pelo parque, esse parque aonde tantas vezes fomos e apanhar as folhas que já têm a cor do teu cabelo. Traria tantas...

Diário de Bordos - Dunkerque, França, 03-09-202

Não é impossível que a minha vida tenha sido uma sequência de oportunidades perdidas.

Do que não há dúvida, porém, é de que as perdi com estilo.

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"Dunkerque é uma cidade feia", penso. "E eu, sou bonito?", continuo logo de seguida.

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Fala-se muito na navegação em solitário, esquecendo que navegar com tripulação inexperiente é muito mais cansativo. 

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Escala forçada em Dunkerque, porto aonde já não vinha há quarenta anos. Assusto-me ao ver o que da cidade a minha memória reteve: quase nada. Quem foi que esteve aqui? Eu ou outro eu? Esta cidade faz como poucas parte do meu presente - parte da minha vida - apesar de só cá ter vivido quatro meses. Lembro-me tão pouco da cidade em si... Recordo alguns episódios, claro. Bons, maus, lamentáveis, felizes. Mas nada das ruas nem do porto - aonde trabalhava.

Como se aquelas memórias pudessem ser de outro sítio qualquer.  Não podem, claro: a D., o Jean-Paul da Pilotine (o bar já não existe) e as dezenas de outros que esqueci eram o que eram porque a cidade os moldou assim.

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Largamos amanhã: a avaria do GPS está resolvida (espero - era um problema informático e não de material. A ver.) e a meteo vai ajudar. Gostaria muito de passar aqui mais uns dias, mas não troco o presente pelo passado nem o que foi pelo que poderia ter sido.

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O GPS avariou a cinquenta milhas daqui. Quem conhece a zona sabe a confusão que isto é: lanes, baixios, bóias, wind farms, correntes, o diabo a quatro. Fazê-las com uma aplicação no telefone foi uma seca mas confirmou que fiz bem em ter comprado as cartas para aquilo.

Além disso, permitiu-me comparar em condições reais o i-Boating (doze em vinte) com o Savvy Navvy (um em vinte). A próxima a ser testada é a Navily.