30.12.06
Almoço, ou Rouille de Calamars
Para além de uma tentativa, em progresso constante, de pôr ordem no caos, o Don Vivo é, coitado, um repositório de receitas. Digo coitado porque também desta perspectiva é fracote, coitado.
Hoje o almoço vai ser Rouille de Calamars. Já aqui deixei uma receita, mas não a encontro. E hoje, de qualquer forma, vou fazer uma diferente: a mistura da que está no link acima com a que faço habitualmente.
Ou seja: sem os legumes e cozida em vinho branco. Levou tomilho, orégãos, ervas de Provença, pimenta e um bom molho de salsa.
E coze ao som de Wayne Shorter (Footprints Live!), para ver se abrevia, ou alegra, a cozedura.
Hoje o almoço vai ser Rouille de Calamars. Já aqui deixei uma receita, mas não a encontro. E hoje, de qualquer forma, vou fazer uma diferente: a mistura da que está no link acima com a que faço habitualmente.
Ou seja: sem os legumes e cozida em vinho branco. Levou tomilho, orégãos, ervas de Provença, pimenta e um bom molho de salsa.
E coze ao som de Wayne Shorter (Footprints Live!), para ver se abrevia, ou alegra, a cozedura.
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Receitas
29.12.06
Serviço Público - Pubs
O melhor pub irlandês de Cascais chama-se O'Luain's (Não desfazendo: só há dois pubs irlandeses em Cascais. Nunca se sabe). Gosto do O'Luain's para começar porque não tem aquele ar de Pub-Irlandês-no-Estrangeiro, tão igual, sempre; e porque a música é boa, e tem uma clientela "depaysante" - hoje, por exemplo, ouvi três Chtimis (naturais de Dunkerque) em conversa com dois americanos - todos eles ligados ao mar. O Irish Coffee podia ser bom, mas com chantilly é impossível fazer um Irish Coffee melhor do que quase decente. E não há Smithwicks, o que é aborrecido, mas está, infelizmente, longe de ser raro.
A Smithwicks, já aqui o disse uma vez, é a melhor ale do mundo. E não sou, confirmem, o único a pensar assim.
Uma vez tive uma crise de ciúmes. Creio que foi a única, em toda a minha vida - e se não foi a única, foi sem dúvida alguma a pior, a mais violenta, a mais pungente, lancinante. Foi na Irlanda, claro - é o único país de mundo, pelo menos dos que eu conheço, em que uma crise de ciúmes se justifica. Estávamos em Bere Island, na Marina de Laurence Cove (não acreditem nas fotografias. Eu estive lá três dias em pleno Julho, retido - três dias - por uma névoa de não ver o bico da proa). Um dia, a senhora por quem tentava, desesperadamente, apaixonar-me ...enfim, não vos vou maçar com pormenores, mas a verdade é que, pela primeira vez, consegui perceber o sofrimento dos ciumentos.
Pour la petite histoire: a senhora (por quem, nem assim, consegui apaixonar-me, coisa que ainda hoje lamento amargamente) estava no pub, a beber Smithwicks.
A Smithwicks, já aqui o disse uma vez, é a melhor ale do mundo. E não sou, confirmem, o único a pensar assim.
Uma vez tive uma crise de ciúmes. Creio que foi a única, em toda a minha vida - e se não foi a única, foi sem dúvida alguma a pior, a mais violenta, a mais pungente, lancinante. Foi na Irlanda, claro - é o único país de mundo, pelo menos dos que eu conheço, em que uma crise de ciúmes se justifica. Estávamos em Bere Island, na Marina de Laurence Cove (não acreditem nas fotografias. Eu estive lá três dias em pleno Julho, retido - três dias - por uma névoa de não ver o bico da proa). Um dia, a senhora por quem tentava, desesperadamente, apaixonar-me ...enfim, não vos vou maçar com pormenores, mas a verdade é que, pela primeira vez, consegui perceber o sofrimento dos ciumentos.
Pour la petite histoire: a senhora (por quem, nem assim, consegui apaixonar-me, coisa que ainda hoje lamento amargamente) estava no pub, a beber Smithwicks.
Notas para uma história
Ele era muito bom no que fazia bem, e péssimo no que fazia mal. Ela era muito boa no acessório, e muito má no essencial (ou ao contrário, não quero ferir susceptibilidades: isto não passa de um exercício literário). E assim perderam, os dois, uma magnífica oportunidade de ser felizes.
Aniversário
O Don Vivo faz hoje três anos, e eu, pouco dado que sou a aniversários, não consigo impedir-me de pensar neste tempo: 4 casas, dois ou três amores, um ou dois futuros. Mas a vida é a mesma: ainda não chegou a hora deste ciclo, nem a do próximo.
O Don Vivo é, já todos nos apercebemos disso, um blog em que a memória ocupa um lugar central, paradigmático. Mas nem só do passado: aqui há também muitas memórias de coisas que ainda não aconteceram, de coisas que estão por acontecer.
O Don Vivo é, já todos nos apercebemos disso, um blog em que a memória ocupa um lugar central, paradigmático. Mas nem só do passado: aqui há também muitas memórias de coisas que ainda não aconteceram, de coisas que estão por acontecer.
Fim do ano
Passa, ano, passa e vai-te embora. Já fedes. Começaste mal e mal acabas. Dá lugar ao que aí vem, bem melhor que tu.
28.12.06
Retratos possíveis
Um dia decidiu acabar com o jogo do toca e foge. Na realidade, há muito que o jogo acabara, e ele jogava sozinho, sem se aperceber.
Fidelidades
Nem sempre fui fiel, e é um tema que me interessa. Na realidade, nunca fui infiel, isso posso garantir - mas não sei se se pode não ser infiel e não ser fiel, simultaneamente.
Verdades
Há verdades e verdades: são como as frutas, aparecem de todas as cores, e formas e feitios. Todas são interessantes, apaixonantes, gostosas, o que quer que seja - se bem que algumas sejam venenosas, ou amargas, ou - por vezes - estejam podres.
As únicas verdades que não interessam são as indiscutíveis.
As únicas verdades que não interessam são as indiscutíveis.
27.12.06
Lis...
...boa e bela, tão bela, hoje. À tarde o tempo ageniou, mas de manhã estava quente e solarenga e acolhedora, quase vazia.
Comprei velas nas Vellas Loreto, 200 anos (agora já são mais) a enrolar estearina; e discos na Trem Azul, já era tempo, termos uma discoteca de jazz; e objectos diversos na Tom Tom, todos bonitos, a preços mais do que acessíveis, mesmo para um empreendedor na área dos desportos náuticos - vela, para ser mais preciso.
Claro que em Paris e Londres e Madrid há Tom-Toms aos montes; e Vellas Loreto, e tudo isso. Mas não estão no Chiado, e não têm a vista da Rua do Alecrim para a luz boa do Tejo, e de Lisboa, tão bela.
Talvez amar uma cidade, ou um lugar, seja isso: não nos cansarmos do que conhecemos há 30 anos, porque não há dois dias iguais; ou talvez mesmo ao contrário, porque há coisas iguais, coisas que não mudam. Como numa pessoa, não é?
Comprei velas nas Vellas Loreto, 200 anos (agora já são mais) a enrolar estearina; e discos na Trem Azul, já era tempo, termos uma discoteca de jazz; e objectos diversos na Tom Tom, todos bonitos, a preços mais do que acessíveis, mesmo para um empreendedor na área dos desportos náuticos - vela, para ser mais preciso.
Claro que em Paris e Londres e Madrid há Tom-Toms aos montes; e Vellas Loreto, e tudo isso. Mas não estão no Chiado, e não têm a vista da Rua do Alecrim para a luz boa do Tejo, e de Lisboa, tão bela.
Talvez amar uma cidade, ou um lugar, seja isso: não nos cansarmos do que conhecemos há 30 anos, porque não há dois dias iguais; ou talvez mesmo ao contrário, porque há coisas iguais, coisas que não mudam. Como numa pessoa, não é?
22.12.06
África ahead
As fotografias de África que se seguem são de Manuel Paias (Aviso: o site não te nada a ver com o fotografia, ou África. Mas merece uma visita).
21.12.06
Colisão dos Recreios, ou Coliseu ... Etc.
Pois. Fomos, de facto (e digo desde já aos leitores machos deste blog que sim, comi a Vida, comi-a várias vezes, abocanhei-a, mordia-a, vivi-a. E aproveito para dizer às leitoras femininas do DV que sim, ela também me fodeu, muitas vezes, mordeu-me e mandou-me passear e pergunto-me, por vezes, se me traiu. Acho que não. Não sei).
Enfin, toujours est-il que fomos beber um copo, mas começámos por nos zangar imediatamente. O pretexto sendo, de quem a culpa do acidente. Não sou dado a discussões; detesto-as. E, sobretudo, não me apetecia nada discutir com a Vida: ela tem, por definição, sempre razão.
Enfin, toujours est-il que fomos beber um copo, mas começámos por nos zangar imediatamente. O pretexto sendo, de quem a culpa do acidente. Não sou dado a discussões; detesto-as. E, sobretudo, não me apetecia nada discutir com a Vida: ela tem, por definição, sempre razão.
Teleologia
Deus sabe qe não sou crente. Mas eu sei que Deus existe, por vezes, ou pelo menos existiu: se não, como explicar esta mistura de Patti Smith e de Alexander?
Colisão dos Recreios, ou Coliseu dos Receios? (Nâo sei).
A história passa-se há alguns anos, não sei bem quantos, na Baixa de Lisboa. Eu ia de bicicleta, pelo passeio, claro, a ver umas montras. Ela vinha no mesmo passeio, sentido contrário, de bicicleta também, e a ver as mesmas montras. Chocámos, claro.
- Olá, eu sou a Vida - disse-me, ainda estávamos os dois no chão, com o maior sorriso que já vi.
- Viva. Desculpe. Estava distraído - eu ainda não me apercebera que ela também (na realidade, só uma distracção de um e outro nos poderia ter posto em contacto).
- Ora, não se preocupe. Eu também. Os meus amigos passam a vida a dizer "é a Vida", só para brincar comigo. É a vida. - Encolheu os ombros, levantou-se e começou a sacudir a poeira.
- Quer vir beber um copo comigo? - perguntei-lhe à queima-roupa. De qualquer forma, o pior que ela poderia dizer era "Não".
- Quero.
- Olá, eu sou a Vida - disse-me, ainda estávamos os dois no chão, com o maior sorriso que já vi.
- Viva. Desculpe. Estava distraído - eu ainda não me apercebera que ela também (na realidade, só uma distracção de um e outro nos poderia ter posto em contacto).
- Ora, não se preocupe. Eu também. Os meus amigos passam a vida a dizer "é a Vida", só para brincar comigo. É a vida. - Encolheu os ombros, levantou-se e começou a sacudir a poeira.
- Quer vir beber um copo comigo? - perguntei-lhe à queima-roupa. De qualquer forma, o pior que ela poderia dizer era "Não".
- Quero.
Wagner por Nietzsche, caril de borrego e outras coisas
Nietzsche era, todos nós o sabemos, dado a excessos. Quando eu era adolescente deliciava-me com as páginas que ele escreveu sobre Wagner - na realidade, deliciava-me com tudo o que escreveu.
Ontem, encontrei por acaso umas linhas que me trouxeram à memória esses dias da adolescência (que não foram muito bons, a minha adolescência foi chata) e outros, mais recentes:
"Wagner's art is sick. The problems he presents on stage - nothing but problems of hysterical people -, the convulsiveness of his emotional state, his overwrought sensibility, his taste, always calling for continually spicier seasoning, his instability, which he disguises as principles, and last but not least his choice of heroes and heroines, these regarded as physiological types [- a gallery of sick people! -]: All together portraying a syndrome leaving no room for doubt. Wagner est une névrose.
O retrato é um bocadinho injusto, reconheçamo-lo. Mas Nietzsche nunca aspirou à justiça: o objectivo dele era a exactidão - e, infelizmente, justiça e exactidão são duas coisas diferentes (o que só constitui problema para os engenheiros sociais...); forçoso é reconhecer, contudo, que ele também não atingiu o seu objectivo, e as descrições que nos faz da morte de Deus ficaram, por exemplo, bastante circunscritas no tempo: foi uma morte temporária, um desmaio, por assim dizer. Hoje Deus está em todo o lado, mais vivo do que nunca, o que é um bocadinho aborrecido.
Enfim, a verdade é que, devido a, ou apesar de, Nietzsche, nunca entrei muito bem em Wagner. Mal o conheço, na realidade. Nunca me atraiu.
Hoje, contudo, resolvi procurar uma "spicier seasoning", e fiz um caril de borrego. À hora a que escrevo ainda a coisa coze, portanto não sei o resultado. Mas lá que o fiz spicy, "Wagneriano", fiz: curcuma, gengibre, piripiri, noz moscada, tomilho, pimenta, cominhos e - claro está - pó de caril, tudo em grandes quantidades, num caril que praticamente só levou leite de coco, água quase nenhuma.
Vamos a ver. A verdade e que ando há muito tempo para comprar Wagner - e pode ser, quem sabe? - que este caril seja o catalisador.
Nunca sabemos o que está do outro lado do muro, e o muro é "agora" - ou "hoje", para os mais optimistas.
PS, 1 hora mais tarde - do lado dos acompanhamentos (aquilo a que, em Quelimane, chamávamos "os molhos") também houve excessos: noz de côco ralada e amendoim misturados e fritos (é delicioso, experimentem); noz de côco ralada; dois tipos diferentes de pickles (manga e alho); e uns pappadums, desses de fazer em casa, que se não fossem maus eram bons. O caril estava assim assim, melhor que mau e menos bom do que óptimo. A hora de Nietzsche passou: chegou a dos Alexanders.
Ontem, encontrei por acaso umas linhas que me trouxeram à memória esses dias da adolescência (que não foram muito bons, a minha adolescência foi chata) e outros, mais recentes:
"Wagner's art is sick. The problems he presents on stage - nothing but problems of hysterical people -, the convulsiveness of his emotional state, his overwrought sensibility, his taste, always calling for continually spicier seasoning, his instability, which he disguises as principles, and last but not least his choice of heroes and heroines, these regarded as physiological types [- a gallery of sick people! -]: All together portraying a syndrome leaving no room for doubt. Wagner est une névrose.
O retrato é um bocadinho injusto, reconheçamo-lo. Mas Nietzsche nunca aspirou à justiça: o objectivo dele era a exactidão - e, infelizmente, justiça e exactidão são duas coisas diferentes (o que só constitui problema para os engenheiros sociais...); forçoso é reconhecer, contudo, que ele também não atingiu o seu objectivo, e as descrições que nos faz da morte de Deus ficaram, por exemplo, bastante circunscritas no tempo: foi uma morte temporária, um desmaio, por assim dizer. Hoje Deus está em todo o lado, mais vivo do que nunca, o que é um bocadinho aborrecido.
Enfim, a verdade é que, devido a, ou apesar de, Nietzsche, nunca entrei muito bem em Wagner. Mal o conheço, na realidade. Nunca me atraiu.
Hoje, contudo, resolvi procurar uma "spicier seasoning", e fiz um caril de borrego. À hora a que escrevo ainda a coisa coze, portanto não sei o resultado. Mas lá que o fiz spicy, "Wagneriano", fiz: curcuma, gengibre, piripiri, noz moscada, tomilho, pimenta, cominhos e - claro está - pó de caril, tudo em grandes quantidades, num caril que praticamente só levou leite de coco, água quase nenhuma.
Vamos a ver. A verdade e que ando há muito tempo para comprar Wagner - e pode ser, quem sabe? - que este caril seja o catalisador.
Nunca sabemos o que está do outro lado do muro, e o muro é "agora" - ou "hoje", para os mais optimistas.
PS, 1 hora mais tarde - do lado dos acompanhamentos (aquilo a que, em Quelimane, chamávamos "os molhos") também houve excessos: noz de côco ralada e amendoim misturados e fritos (é delicioso, experimentem); noz de côco ralada; dois tipos diferentes de pickles (manga e alho); e uns pappadums, desses de fazer em casa, que se não fossem maus eram bons. O caril estava assim assim, melhor que mau e menos bom do que óptimo. A hora de Nietzsche passou: chegou a dos Alexanders.
"What is a man, what has he got?"
And now, the end is near;
And so I face the final curtain.
My friend, Ill say it clear,
Ill state my case, of which Im certain.
Ive lived a life thats full.
Ive traveled each and evry highway;
And more, much more than this,
I did it my way.
Regrets, Ive had a few;
But then again, too few to mention.
I did what I had to do
And saw it through without exemption.
I planned each charted course;
Each careful step along the byway,
But more, much more than this,
I did it my way.
Yes, there were times, Im sure you knew
When I bit off more than I could chew.
But through it all, when there was doubt,
I ate it up and spit it out.
I faced it all and I stood tall;
And did it my way.
Ive loved, Ive laughed and cried.
Ive had my fill; my share of losing.
And now, as tears subside,
I find it all so amusing.
To think I did all that;
And may I say - not in a shy way,
No, oh no not me,
I did it my way.
For what is a man, what has he got?
If not himself, then he has naught.
To say the things he truly feels;
And not the words of one who kneels.
The record shows I took the blows -
And did it my way!
20.12.06
Bestiário ontológico
- Cabra, cabra, cabra! - Ele sabia que não era verdade, mas não encontrava maneira de lho dizer: não se pode chamar a alguém "falsa cabra!", pois não? Isto é, "falsa cabra" é um elogio - algo paternalista, mas elogio, e ele estava chateado, e queria chateá-la.
- Paternalista não: serôdio - respondeu ela, meses mais tarde, quando, finalmente, se encontraram. Ele é um lagarto, coitado, desses que acabam debaixo das rodas de um automóvel ou atados pelas patas de trás dentro de um aquário que se enche lentamente, às mãos de um miudo sádico. Baixote, gordo, está sentado na esplanada da Suiça a beber Piñas Coladas, umas atrás das outras. A rua está juncada de bocadinhos da cauda dele, arrancados pelos mais variados bichos com que, ao longo de uma longa existência (é propositada, a repetição), se cruzou. Ainda tremelicam, muitos deles. Ela está dentro da fonte no meio do Rossio a gritar:
- Voglio una volta! Voglio una volta!
"Não é dentro de uma fonte que se grita voglio qualcosa", pensou o lagarto. É em cima de uma árvore". Mas logo se deixou de cinefilias: "uma Piña Colada", rememorou, "é uma mistura de rum, leite de côco e sumo de ananás em igual medida. Oxalá as cabras, e os lagartos, e o resto do jardim zoológico da existência, fossem tão fáceis de definir. Além de que, minha cara, ninguém dá uma volta sozinha".
O lagarto fartou-se dos Fairport Convention, e mudou para Wagner. Enfim, aquilo que Uri Caine fez a Wagner: "Je fus surpris à plusieurs reprises, à la fin du repas, par le soudain retentissement de mes ouvertures. Lorsque, assis à la fenêtre du restaurant, je m'en remettais à cette impression, je ne savais pas ce qui agissait sur moi de manière la plus enivrante: l'incomparable place, magnifiquement illuminée, envahie d'innombrables flâneurs ou la musique portant tout cela dans les airs, comme dans une glorieuse harmonie".
A cabra ("ainda é cedo para começar a tratá-la por «falsa cabra»: a história perderia em verosimilhança, e de qualquer forma não passa de uma intuição; vá la saber-se se é verdade", pensou o lagarto) tinha-se ido embora sem ele reparar. Entretanto, à mesa sentaram-se mais duas ou três bestas: uma cobra, uma vaca, um cabrão. A vaca era verdadeira, via-se-lhe pelos cornos e pelo olhar mortiço. Mas o cabrão parecia-se imenso com a cobra, e não só foneticamente. "Porra, já não me basta uma falsa cabra, agora tenho um verdadeiro cabrão, ou uma meia-cobra".
O lagarto não sabia o que lhes dizer, nem o que ouvir, nem o que fazer: ficar, ir-se embora, ouvir a Jeannne Lee e o Archie Shepp, insistir, mudar para outra bebida? A cara do cabrão (ou cobra?) não lhe era estranha, nem a da vaca. "Esta merda deste jardim zoológico..." não soube como continuar. "Que se foda o jardim zoológico!".
A cabra transformara-se em leoa, a vaca em falsa pantera e o cabrão em cabrão. Entretanto, um avião sobrevoa o deserto da Namíbia; em Macuto (não confundir com Maputo: é na Venezuela, perto de La Guaira) um marinheiro bêbado fode uma lontra num hamac; em Cape Town o imediato de um navio de pesca tem longas conversas com a chefe de uma rede de putas; no centro de África morrem alguns milhares de pessoas, como mosquitos; no Canadá, uma interminável mulher faz amor com o marido e tenta afastar da memória uma felação velha de meses, quem sabe, ou mesmo anos, que um dia fizera a um toiro enraivecido - ou revoltado? "Nunca o saberei"). No Porto, uma mulher (outra) sofre e finge que não; em Lisboa, no Rossio, um lagarto desorientado ouve a Ressurreição de Mahler; nas praias da Flandres francesa um velejador invencível tenta seduzir uma jovem, mas eterna, mulher; nas Honduras um passado espera o momento em que se vai realizar, finalmente; em Veneza, dois adolescentes fingem que são adultos. E em Maputo - Maputo um homem banal em coma psicológico profundo tenta morrer de sida, e nem isso consegue ("não deixa de ser uma forma agradável de procurar a morte", pensou o filho da puta do lagarto).
Está sozinho, graças a Deus. O mundo deixou-o: ele tornou-se o mundo. Mahler, que sabia duas ou três coisas sobre cabras, diz que a morte não é certa e faz uma sinfonia; a tarde esvai-se, num vermelho que não é bem sangue, mas podia ser. As Piñas Coladas acabaram. Tudo acabou, menos o tempo, a luz, e as palavras.
- Paternalista não: serôdio - respondeu ela, meses mais tarde, quando, finalmente, se encontraram. Ele é um lagarto, coitado, desses que acabam debaixo das rodas de um automóvel ou atados pelas patas de trás dentro de um aquário que se enche lentamente, às mãos de um miudo sádico. Baixote, gordo, está sentado na esplanada da Suiça a beber Piñas Coladas, umas atrás das outras. A rua está juncada de bocadinhos da cauda dele, arrancados pelos mais variados bichos com que, ao longo de uma longa existência (é propositada, a repetição), se cruzou. Ainda tremelicam, muitos deles. Ela está dentro da fonte no meio do Rossio a gritar:
- Voglio una volta! Voglio una volta!
"Não é dentro de uma fonte que se grita voglio qualcosa", pensou o lagarto. É em cima de uma árvore". Mas logo se deixou de cinefilias: "uma Piña Colada", rememorou, "é uma mistura de rum, leite de côco e sumo de ananás em igual medida. Oxalá as cabras, e os lagartos, e o resto do jardim zoológico da existência, fossem tão fáceis de definir. Além de que, minha cara, ninguém dá uma volta sozinha".
O lagarto fartou-se dos Fairport Convention, e mudou para Wagner. Enfim, aquilo que Uri Caine fez a Wagner: "Je fus surpris à plusieurs reprises, à la fin du repas, par le soudain retentissement de mes ouvertures. Lorsque, assis à la fenêtre du restaurant, je m'en remettais à cette impression, je ne savais pas ce qui agissait sur moi de manière la plus enivrante: l'incomparable place, magnifiquement illuminée, envahie d'innombrables flâneurs ou la musique portant tout cela dans les airs, comme dans une glorieuse harmonie".
A cabra ("ainda é cedo para começar a tratá-la por «falsa cabra»: a história perderia em verosimilhança, e de qualquer forma não passa de uma intuição; vá la saber-se se é verdade", pensou o lagarto) tinha-se ido embora sem ele reparar. Entretanto, à mesa sentaram-se mais duas ou três bestas: uma cobra, uma vaca, um cabrão. A vaca era verdadeira, via-se-lhe pelos cornos e pelo olhar mortiço. Mas o cabrão parecia-se imenso com a cobra, e não só foneticamente. "Porra, já não me basta uma falsa cabra, agora tenho um verdadeiro cabrão, ou uma meia-cobra".
O lagarto não sabia o que lhes dizer, nem o que ouvir, nem o que fazer: ficar, ir-se embora, ouvir a Jeannne Lee e o Archie Shepp, insistir, mudar para outra bebida? A cara do cabrão (ou cobra?) não lhe era estranha, nem a da vaca. "Esta merda deste jardim zoológico..." não soube como continuar. "Que se foda o jardim zoológico!".
A cabra transformara-se em leoa, a vaca em falsa pantera e o cabrão em cabrão. Entretanto, um avião sobrevoa o deserto da Namíbia; em Macuto (não confundir com Maputo: é na Venezuela, perto de La Guaira) um marinheiro bêbado fode uma lontra num hamac; em Cape Town o imediato de um navio de pesca tem longas conversas com a chefe de uma rede de putas; no centro de África morrem alguns milhares de pessoas, como mosquitos; no Canadá, uma interminável mulher faz amor com o marido e tenta afastar da memória uma felação velha de meses, quem sabe, ou mesmo anos, que um dia fizera a um toiro enraivecido - ou revoltado? "Nunca o saberei"). No Porto, uma mulher (outra) sofre e finge que não; em Lisboa, no Rossio, um lagarto desorientado ouve a Ressurreição de Mahler; nas praias da Flandres francesa um velejador invencível tenta seduzir uma jovem, mas eterna, mulher; nas Honduras um passado espera o momento em que se vai realizar, finalmente; em Veneza, dois adolescentes fingem que são adultos. E em Maputo - Maputo um homem banal em coma psicológico profundo tenta morrer de sida, e nem isso consegue ("não deixa de ser uma forma agradável de procurar a morte", pensou o filho da puta do lagarto).
Está sozinho, graças a Deus. O mundo deixou-o: ele tornou-se o mundo. Mahler, que sabia duas ou três coisas sobre cabras, diz que a morte não é certa e faz uma sinfonia; a tarde esvai-se, num vermelho que não é bem sangue, mas podia ser. As Piñas Coladas acabaram. Tudo acabou, menos o tempo, a luz, e as palavras.
19.12.06
Paraíso, Inferno
O Paraíso é um sítio onde os polícias são ingleses, os engenheiros alemães, os cozinheiros franceses, os amantes italianos - e tudo isto é organizado por um suiço.
O Inferno é um sítio onde os amantes são suiços, os polícias alemães, os cozinheiros ingleses, os engenheiros franceses e tudo é organizado por um italiano.
O Inferno é um sítio onde os amantes são suiços, os polícias alemães, os cozinheiros ingleses, os engenheiros franceses e tudo é organizado por um italiano.
A melhor das boas intenções soçobra no real, ou o que tem de ser tem muita força
O Nuno cedeu. Quem sou eu para resistir? É verdade que andava a pensar nisto há muito tempo, que a long list era reduzida (é a dos links aí ao lado), e da short então nem se fala, mas enfim, cá vai: este ano, ao longo do ano todo, não foi só agora, o meu blog favorito foi, feliz coincidência, o Tradução Simultânea. E não é só devido ao amor pelos mesmos green fields que partilhamos, nem por uma forte propensão para gostar da mesma música do que eu (e postá-la antes de mim - especialmente esta). Não, nada disso. É por tudo, pelo blog todo.
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