30.9.20
Tonya
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 29-09-2020
Amanhã faço sessenta e três melancólicos outonos... Fomos jantar ao Auberge de Chambésy. O núcleo duro da família aumentou: S., eu, os dois filhos e respectivos cônjuges (as aspas não se vêem mas estão lá). Paradoxalmente, nunca os senti tão "meus" como agora, que os partilho (e eles a mim, mas isso sempre aconteceu). Aos trinta anos vê-se o produto acabado. Daqui para a frente será apenas evolução. As bases estão lá.
Estão sólidas e bonitas, seja S. louvada e agraciada.
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Na escola ao lado de casa não vejo quase ninguém de máscara no recreio, atulhado de miúdos até aos doze anos, creio. Os putos brincam como sempre brincaram, agarrados uns aos outros de todos os modos e feitios.
Cada vez gostaria mais de ver um estudo sobre a relação entre severidade e abrangência das medidas anti-Covid e PIB per capita.
27.9.20
Jantar improvisado - Frango guisado em cerveja
Começou da maneira clássica: a carne a alourar em lume forte, flamejada (com Kirsch); na mesma frigideira - mas uma vez retirados os peitos do jovem galináceo - cebola, pimentos, duas cenouras pequenitas, um belíssimo ramo de salsa frisada e pimenta rosa em grãos. A seu tempo, vai tudo junto para a panela, cobre-se de cerveja (Super Bock, por acaso) e tempera-se com paprika doce, curcuma, sálvia, orégãos e rosmaninho fresco. Cozeu até ficar pronto.
Os dois convivas gostaram, mas o que cozinhou não tem a certeza de conseguir repetir - prova de que é um péssimo cozinheiro (e não se importa nada com isso, infelizmente).
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 27-09-2020
Domingo de votações na Suíça. A nível federal, uma iniciativa xenófoba da UDC foi recusada, o governo viu aprovado um envelope de seis mil milhões de francos para comprar um avião militar (50,1% a favor, 49,9% contra), o PDC perdeu a votação para incluir os custos da guarda das crianças nas deduções fiscais (coisa que deixou a esquerda toda contente, claro. Baixar impostos provoca-lhe urticária) e os cantões urbanos ganharam contra os rurais uma alteração de lei para aliviar as regras sobre a caça de lobos. A lei actual é de 1986, quando praticamente não os havia. «Agora há em excesso e atacam os rebanhos», dizem os agricultores. «Queremos poder abatê-los.» Que nenni, responderam os betos urbanos. Um congé paternité (direito de os pais terem uma folga remunerada aquando do nascimento dos filhos) de duas semanas passou a rampa. Ao nível cantonal, uma má notícia para Genebra: o «soberano» (o povo) aceitou a introdução de um salário mínimo. Vinte e três francos / hora (aproximadamente vinte e um euros / hora). De uma maneira geral, estas eleições foram ganhas pela esquerda (felizmente, no caso da iniciativa sobre a imigração) e se eu cá vivesse teria ficado chateado. Chatice essa mitigada por um facto simples e inegável: aqui são as pessoas quem escolhe. Não são os políticos. Abençoado país! (E a UDC levou outra nega. Que venham muitas mais.) Agora só falta ver esta malta começar a rebelar-se contra as máscaras e outras medidas «anti-Covid» idiotas (entre aspas porque são tão eficazes na luta contra o vírus como eu no salto em altura).
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A três dias de fazer sessenta e três anos entusiasmo-me tanto com as votações como me entusiasmava quando cá cheguei, com vinte e dois. O que mudou foi que agora tenho mais conhecimento de causa, o que torna o entusiasmo mais agradável. Só espero já não ser deste mundo se um dia o soberano votar positivamente a adesão à União Europeia (a menos, claro, que esta adopte o sistema político suíço, o que faz parte do campo do possível tanto como ver-se António Costa transformar-se num homem de Estado.)
25.9.20
Gemelidade quase perfeita
Eram gémeos como duas bananeiras do mesmo bananal mas diferiam numa coisa: A. detestava-se, B. não. A. matou B.: não suportava ver-se como poderia ter sido.
Veneno, autocarros
O autocarro está parado porque a rua está bloqueada. Uma senhora pergunta delicadamente ao condutor se pode descer ali. "Não", responde o jovem. Simpaticamente acrescenta "Porque se lhe acontece alguma coisa a culpa é minha." Não é uma paragem, mas o autocarro está na faixa junto ao passeio. Todos sabemos que cada vez que descemos de um autocarro acontece qualquer coisa, não é? É arriscadíssimo descer de um autocarro. Não tarda pedem-nos capacetes. Já bom senso não vale a pena pedir. A cultura da ausência de risco e da desresponsabilização é pervasiva como um gás. E venenosa, mas isso é outra história.
24.9.20
Escritores, preguiça
Os melhores escritores são aqueles que parecem preguiçosos e não escrevem uma única palavra que possa ser lá posta pelo leitor. Parecem: é dobro do trabalho.
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 24-09-2020
Ontem, a G. ofereceu-me um bon cadeau [como é que se diz isto em português? Vale presente? Cheque presente? Não me lembro]. Trinta francos em livros na Payot, a maior livraria de Genebra. Comprei três: Le Clézio, Orsenna e d'Ormesson. Preciso de francês puro, elegante, o francês de filigrana. Gosto desta língua tanto como gosto do português: a este, amo de amor, nasci nele e com ele cresci. Àquela, amo de razão, é amor construído e tardio. São os que duram mais. (Nota nada neutra: o Avenida está a ser traduzido - e bem - para francês.)
23.9.20
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-09-2020
A melhor razão para se gostar de cozinhar chilli con carne é ser uma coisa que se cozinha devagar. Uma tarde, no mínimo. Comecei por refogar a carne e o toucinho (com a pimenta rosa em grão, essa convém estar desde o início), separadamente as cebolas, os pimentos, as cenouras (com os orégãos) e por fim os alhos, Misturei tudo, deixei-os a conversar um bocado, juntei o tomate (três, grandes), mais uma volta de conversa até o tomate deixar de ser tomate e entram a água (até acima, a panela era alta) e as especiarias: um nada de noz-moscada, outro de cravinho, um montão de paprika e um igual de cominhos. Cozeu quatro horas. Sinal de que estava sintonizado: não tive de juntar nada, nem água nem especiarias. Ficou um bocadinho curto de sal para uma das convivas, só. Ficou bom porque: a) o pimentão doce, a paprika fumada, a paprika picante e os cominhos eram excelentes; b) a carne idem; c) a sorte ajudou, ajudada pela vontade de fazer um bom chilli. Era muita, esta. O objectivo era mesmo que ficasse bom, um querer que vinha de dentro, como quando estamos numa regata e não vamos deixar o gajo ao lado rondar a bóia antes de nós.
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Esta discussão em torno do vírus e da ciência parece-me estéril. Não é preciso «ciência» para se ver que a abertura das escolas sem máscaras e em condições normais não aumentou o número de mortos nos países que fazem isso, ou é? É. A ciência é empírica. Recusar-se a ver esses dados é religião, não é ciência.
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G. era vizinha da S. quando cheguei a Genebra e fui viver lá para casa. Foi por seu intermédio que arranjei o trabalho no Marchand de Sable. Era uma actriz que trabalhava num café para sobreviver. Depois foi trabalhar para um tribunal e lá ficou até à reforma, contra todos os prognósticos. É uma personalidade e uma personagem e um dia, eu sei, vai ser preciso falar dela. Não será hoje: precisa de um vasto espaço.
Por agora, chega-me o prazer que é falar com ela sobre cinema ou teatro. Às vezes penso que tive sorte. Isto é, ainda mais sorte.
22.9.20
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 22-09-2020
Dia desastrado, dia desastroso? Sim e não. Fui ainda mais desajeitado do que sou habitualmente. À primeira vista parece dificil, quase impossível. Deixei cair a máquina fotográfica e tenho de a mandar reparar. Com a maré no estado em que está e sem dar sinais de mudar, o mínimo que se pode dizer é: "Não foi oportuno." (Isto para não mencionar que vou ficar muito tempo sem poder fazer fotografia, o que bem vistas as coisas tão-pouco é agradável.) Depois lá mais para o fim do dia a coisa balançou um bocadinho para o outro lado. Isto é: não ficou tão em baixo.
Há dias assim, em que me pergunto por que milagre consegui habituar-me a viver comigo.
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Amanhã é dia de chilli con carne, não a pedido de várias famílias mas sim de vários na família. A memória das famílias é feita de coisas assim. Ocorrências recorrentes: chilli, fondue, qualquer dia amêijoas à Bolhão Pato, a distracção e a falta de jeito do pai. Estatisticamente, ainda tenho uns bons vinte anos disto (a menos que venha uma Covid e me prolongue a vida), mas como sei por experiência própria que vinte anos passam num ápice, mais vale aproveitar e sugar cada segundo.
Até ao tutano.
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Amanhã começo uma campanha de promoção do Avenida. Seja o diabo cego, surdo e mudo se não conseguir vender coisa que se veja. Quero continuar a trabalhar no segundo volume.
En attendant, parece que desta vez acertei com a tradução para francês. Hallelujah!
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Pequena nota privada: é incrível, inesperado, assustador quão todas as cabeças, mesmo as de que menos se espera tal coisa, são permeáveis ao zeitgeist, à l'air du temps, ao ar do tempo. Estou "proibido" de usar os termos "pédé" (maricas) e "gouine" (fufa). Devo dizer "homosexuel". As aspas em "proibido" servem para mostrar o que tenciono fazer da "proibição".
Malditos tempos... Antes o chili, ainda que pouco picante. Um dia, homosexuel e gay terão a mesma carga semântica que têm hoje maricas e fufa, mas já cá não estarei para me rir. Todas as épocas se esquecem das que as precederam e erigem-se em absolutas. Nas que lhes sucederão, então, nem pensam. Somos - nós e as palavras - um ponto no espaço-tempo, um degrau na escada semântica, um sopro na evolução dos valores. Sopro tão fraco que nem para apagar um fósforo chegaria. Quanto mais definir eternidades.
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Por exemplo: quem apostaria um avo em que eu seria, ao fim de tantos anos, forçado a reconhecer o meu gosto por Genebra, maior do que agora sou capaz de dizer?
Uma cidade é feita de pessoas e uma vida também.
21.9.20
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-09-2020
E os supermercados, claro. Os queijos. Na Suíça há todos os queijos franceses, mai-los suíços. Em França, só há os franceses. Adivinhem quem fica a ganhar?
20.9.20
Jantar improvisado - Frango com emoções
Comecei por dourar os peitos de frango em lume forte e flambeá-los numa bela porção de kirsch. Enquanto isso, na panela vizinha estrugiam em azeite uma cebola às rodelas e um pimento encarnado, com um fundo de bagas de pimenta rosa. A isso, em devido tempo, juntei dois tomates pequenos cortados aos bocados e um bocadinho de salsa que languescia no frigorífico. Depois de um compasso de espera, vieram umas batatas tanbém elas em cubos.
Deixei que se misturassem bem, polvilhei com «paprika» fumada (entre aspas porque não tenho a certeza de que tenha vindo da Hungria), cominhos (que ao cheiro parecem sublimes), orégãos e uma boa colher de sopa de mostarda Maille à l'Ancienne, a marca e o modelo são importantes. O sumo da flambée juntou-se à festa, eu bebi um absinto (ou dois, vá lá, que absinto deste nem todos os dias me atravessa o estreito, vem das montanhas, etc.), desliguei o fogão e sentei-me a escrever tudo isto.
Agora passamos à mesa, as emoções e eu.
Excessos?
Pergunto a quem sabe: aquela regra segundo a qual tudo o que é em excesso faz mal também se aplica a mulheres e a dinheiro? Nunca tive de mais nem de um nem das outras.
17.9.20
Auto-citações da «gripe»
«Isto é tudo muito bonito e tal até que o corpo se lembra de que sem ele a festa fica incompleta e hoje me pespegou uma gripe de caixão à cama.»
«A doença vira um gajo do avesso. As costuras belas e regulares mostram a sua natureza interior e parecem-se com cicatrizes mal tratadas; as costuras das bainhas, até ali invisíveis, ficam a ver-se (e não são nada bonitas); e por aí fora: a tosse é de tal forma que se não tenho cuidado qualquer dia apanho os pulmões no céu da boca, a hiper-sensibilidade faz-me pensar que dormir em cima de lixa deve ser mais agradável do que nos lençóis. Nada apetece - nem estar deitado, nem sentado, nem de pé. »
«As mulheres gozam com a nossa reacção às gripes porque elas não as têm. As mulheres têm gripinhas, gripes cor-de-rosa e não esta mistura de gripe e peste bubónica que nos aflige.»
«A S. chegou e com ela os remédios: spray nasal, muitos comprimidos, supositório, tudo. Ela queria ser veterinária mas a meio resolveu mudar para psicologia. Comigo pode praticar as duas disciplinas. Tentei reclamar com o supositório - não sou contorcionista nem artista de cabaret - mas não serviu de nada.»
(Conjunto de excertos de posts escritos quando tive aquilo que na altura era conhecido por gripe e hoje seria, provavelmente, Covid-19. Fevereiro de 2020.)
Marta
Quando o doutor chegou à nossa aldeia estava a manhã quase no fim.
- Obrigado e até à próxima - (ao motorista).
Desceu e dirigiu-se
imediatamente ao mercado, do outro lado da aldeia.
- Boa tarde - (à miúda que vendia tremoços, conhecida por «a tremoceira»).
- Bom dia - respondeu a
outra, espigada de feitio. - Ainda não é meio-dia.
- Está quase.
- Quase é uma palavra que engana muito.
- Obrigado. Tem tremoço de barrela?
- Isso é coisa do norte e vossemecê está no sul, homem. Não acerta nem na
hora nem no lugar.
- Não é bem do norte, é mais do centro.
- Seja de onde for, não tenho. Quer alguma coisa ou só fazer-me perder
tempo?
A tremoceira era conhecida na aldeia e nenhum dos ouvintes estranhou.
Salvaguardava-a o facto de ser bonita e ter os melhores tremoços da região.
Vinham pessoas de longe para lhos comprar. (Muitos só para a ver e lhe cantar a
canção do bandido, mas a esses despachava-os ela em menos tempo do que leva a
trincar e deitar fora uma casca.)
- Se quiser, eu ensino-a a fazer tremoços de barrela.
A rapariga hesitou. Não era todos os dias que alguém lhe respondia como se
não a tivesse ouvido.
- Obrigada, não preciso. Ensine-me antes coisas que eu não saiba. - Tinha
uma reputação a defender.
O doutor era duas vezes mais velho do que ela mas parecia três. Conservador
excêntrico, gostava de desestabilizar os interlocutores, mantendo sempre uma
educação e uma cordialidade inatacáveis. O seu maior gozo, contudo, era
encontrar alguém que não se deixava enredar. Percebia tanto de tremoços de
barrela como eu de astropaleontologia. Era um indivíduo alto, magro, cabelos
brancos impecavelmente aparados, óculos sem aros, roupa de qualidade no
género «falso desleixado». Tudo nele era falso excepto ele próprio.
(Isto pede uma clarificação: o que havia de falso no doutor - o bom doutor,
como ficou conhecido na aldeia - era o que dava a ver. Não havia qualquer
correspondência entre o que mostrava - «exportava», dizia - e o que dele não se
via. Em tempos tivera um carro, um 2Cv que transformara de forma a acolher um
motor quatro vezes mais potente do que o original. A transformação fora
perfeita, de fora nada se via. Só o mecânico que a fizera a conhecia - e
tinha-o avisado: isso não vai durar muito tempo. Durou dois anos, talvez três.
O bom doutor não era dado a precisões numéricas. Já as palavras o
entusiasmavam.)
- Se você - dirigiu-se à tremoceira por você durante alguns anos, apesar de
tratar toda a gente por tu e pedir reciprocidade - se enganar num número o erro
é total, já viu? Se escrever 908 em vez de 1908 é possível que ninguém se
aperceba do erro. Pode ser que nunca o encontre. - Olhou-a de frente e beijou-a
levemente na testa. - Mas se disser «múnero» ou «númaro» em vez de
"número" toda a gente percebe.
- Me troço - respondeu a miúda.
- Tremo, só.
- Te, moço?
- Tremo, seira, eira, beira, leira.
A tremoceira não percebia metade das palavras que ele lhe dizia, mas sabia
duas coisas: estava apaixonada por ele e ele por ela. São duas coisas
diferentes, isso sabia de experiência. O bom doutor todos os dias a acompanhava
ao mercado e todos os dias a ia buscar. No intervalo, «escrevia livros».
- Mas que escreves tu? Porque não posso ler o que escreves?
- Um dia a menina lerá.
- Estúpido. Trata-me por tu! - A rapariga não tinha perdido a sua
truculência. Domesticara-a, quando muito.
- Mas alguma vez não te tuteei?
Os diálogos eram sempre curtos. Ela tinha de digerir novos vocábulos e ele
um amor que se renovava cada vez que falava com ela. Era uma mulher orgulhosa e
não se envergonhava da sua ignorância. Usava-o como um trampolim.
- Ensinar é a coisa que fazes melhor, a seguir a foder-me.
- O terceiro lugar vai para quê?
Chama-se Marta embora o doutor, velho cinéfilo, me tivesse pedido Laura.
Marta olha o bom doutor nos olhos. Estão na casa que ele comprou poucos
meses depois de chegar à aldeia. É um edifício grande, de esquina, com dois
pisos, um terraço, um jardim grande. As portadas são azuis, as paredes
brancas. Estão no jardim, o dia acaba e como sempre no Verão da planície o calor não
se vai embora. Desliga-se, simplesmente. A aldeia é no sul do país, esteve
muito tempo sob domínio árabe e o jardim – que provavelmente não existia nesse
tempo - parece lembrá-lo. Marta tem trinta e poucos anos, não tem cultura para
perceber porque gosta tanto disto, mas gosta e tem inteligência suficiente para
saber que é melhor aproveitar a vasta sabedoria do doutor. Sobretudo, o seu gosto
em ensinar. Sobretudo, o seu amor por ela.
Com a ajuda dele, o negócio dos
tremoços prosperou. Marta e a mãe dirigem agora uma pequena equipa que os
tempera, envasa e expede para vários pontos do país. Comprou-lhe um carro para
ela poder contactar novos clientes dava-lhe um conselho aqui e ali, se via que
precisava. Se não, deixava-a aprender sozinha. O bom doutor baseava a sua
pedagogia no método de «ensinar a ver» e não no de «forçar a ver». Aspas porque
o cito.
Quando chegara à aldeia não tinha a menor
intenção de se apaixonar fosse por quem fosse. Uma pequena herança dera-lhe a
possibilidade de se reformar antecipadamente do seu trabalho de professor de literatura
francesa numa universidade da capital. Era apreciado pelos seus pares, que lhe
agradeciam a falta de ambição e não se apercebiam de quão indiferentes lhe
eram. A mulher deixara-o havia alguns anos, provavelmente devido a essa mesma
falta. Era uma senhora de boas famílias. Quando se separou comprou-lhe metade
da casa, dinheiro que ele pôs a recato. Era um homem frugal. Alugou um
apartamento pequeno, ia comer todos os dias à tasca da esquina, pagava
correctamente uma senhora que lhe fazia a limpeza da casa uma vez por semana e
a outra que também uma vez por semana (mas em dias diferentes) ia lá dormir,
«para não perder de todo a prática», explicou um dia a uma colega que lhe
perguntou como lidava com a solidão. A mulher nunca mais lhe dirigiu a palavra
para além de «bom dia» e «boa tarde», o que o satisfez pois era esse o
objectivo. Sabia que poucas semanas depois a universidade inteira pensaria que
organizava orgias em sua casa todos os dias, mas isso deixava-o indiferente. (A bem da senhora, devo dizer que o bom doutor se enganava: não disse a ninguém,
receando que alguém lhe perguntasse como é que sabia. E porque não era o género
dela, verdade seja dita.) Não gastou o dinheiro da casa todo em livros, mas ao
princípio esforçou-se bastante. Comprava livros a torto e a direito. A certa
altura parou, porque já não tinha sito para os guardar. O apartamento era
pequeno e num quarto andar, o que não ajudava. Decidiu só comprar um livro
depois de ter acabado o que estava a ler. Posteriormente, lembrou-se de que
tinha centenas de volumes não lidos e deixou de comprar livros novos. Lia
simplesmente os que tinha. «Mesmo assim, precisarei de duas vidas para os ler
todos», disse um dia à tremoceira, que nunca tinha visto tantos livros juntos
na vida, exceptuando as visitas que com a escola fizera a uma biblioteca da
capital do distrito.
- Então para que os queres?
- Para me lembrar de tudo o que não sei.
- Para isso, basta-te olhar para mim.
- Bastar-te-ia olhar para mim, minha querida. Usa o condicional.
Passava-lhe as mãos pelos cabelos, pelos seios, pelas pernas. Bebiam um
vermute no jardim, os pássaros gritavam uns aos outros para definir a posse de
um território ou para impressionar as fêmeas, a brisa fazia as folhas
mexerem-se devagar. Era mais tremer do que mexer. Marta tinha olhos verdes e
uma basta cabeleira negra. Parecia fazer parte do cenário.
- A primeira noite que dormi contigo, alguém foi dizer à minha mãe. Um
velho cá da aldeia, chamávamos-lhe Manuel da Arrifana porque no Verão ele ia
trabalhar para lá. A minha mãe zangou-se comigo. Disse-me que podias ser meu
pai e eu respondi-lhe que sim, claro: nasceste no mesmo ano do que ela. Têm a
mesma idade. A certa altura perguntei-lhe se estava com ciúmes. Não me bateu
por um triz. Talvez não te lembres, mas mudei-me para cá muito depressa. Já não
conseguia ouvi-la. Nunca te falei nisto porque estou capaz de apostar que já o
sabes. Ou pelo menos sentiste-o. E depois, no trabalho continuávamos a
entender-nos bem, ela e eu. Era só nisto da vida contigo que nos desentendíamos.
O bom doutor não disse a Marta que tinha tido uma conversa com a mãe dela.
Não dizia muitas coisas, fiel a uma máxima de Camus que o perseguia desde a
adolescência: «Um homem é mais homem pelo que cala do que pelo que diz.»
Explicara gentilmente à senhora que também ele estava surpreendido, que nunca
mais pensara apaixonar-se e muito menos por uma miúda com metade da idade dele.
Não disse que de qualquer forma não tinha muito tempo de vida, que aqueles
meses com Marta tinham sido um bónus, uma gratificação inesperada. Retirara-se
para aquela aldeia para escrever e morrer, não para amar e viver.
Marta e o doutor estão no jardim. Acaricia-a levemente, como o vento as
folhas das árvores. Foi naquela casa que passaram o confinamento. Coabitavam havia
três anos e aqueles meses tinham-lhe feito ver os limites de «coabitar»: um
habituado a estar sozinho, outra que se realizava no contacto com a clientela.
Nunca gostara de relações simbióticas e aquela convivência forçada custara-lhe
mais do que conseguia admitir; para ela, também não fora fácil: passar os dias
com uma só pessoa, ademais sempre a mesma, ia contra o âmago do que era.
Antes de morrer, o doutor queria casar-se com Marta e perguntava-se se
devia falar-lhe nisso agora que o amor deles tinha sido sacudido daquela forma.
Ter-lhe-ia o terremoto atingido os alicerces? Viviam juntos havia três anos,
talvez três e meio. O livro estava pronto. Tinha sido aceite por uma editora,
revisto e paginado. Faltava o título e escolher um pseudónimo: não queria que
as pessoas da aldeia soubessem que tinha sido ele a escrever aquilo a que injustamente
chamava «uma longa jeremiada». Durante o confinamento não fora ao médico e o
cancro que lhe roía os intestinos não parara. Perguntava-se também se lhe devia
dizer que ia morrer. Sabia que para ela o confinamento também tinha sido
difícil, que os negócios tinham retomado mas não muito, que tinha saído daquela
prova magoada. Casar-se era um acto egoísta ou, pelo contrário, ajudá-la-ia nos
trâmites de heranças, etc.? O testamento estava feito e era simples: «Deixo
tudo o que tenho e os eventuais proveitos futuros à senhora Marta Barbosa,
etc.» Tinha sido visto por um advogado, segundo o qual casar-se não alteraria
muito as coisas. Quando muito, simplificá-las-ia. O doutor lembrou-se do que
sempre pensara sobre o casamento: é um acto social, nada tem de pessoal.
«Caso-me perante os outros ou perante Deus. Para mim, estou casado com Marta
desde a primeira vez que a vi. Não preciso de papéis.»
Resolveu dizer-lhe metade.
- Marta, quero casar-me contigo. Aceitas-me?
- Sim.
Morreu três meses depois da cerimónia, sem saber que Marta tinha deixado de tomar contraceptivos e ia ser pai. Passou o último mês morfinado, deitado numa cama a definhar sem se aperceber de nada do que o rodeava. O livro foi publicado, teve um sucesso de estima e caiu no esquecimento. O miúdo chamou-se Henrique, como o pai, mas na aldeia ficou conhecido por «o filho do doutor». Era igual ao progenitor que nunca vira: alto, magro, ensimesmado, delicado e pouco dado às aparências (ou muito, consoante o ponto de vista: nada do que mostrava de si era verdade). De Marta, só sei que o negócio continuou a prosperar e que se reconciliou totalmente com a mãe. Ignoro se voltou a casar-se: uma vez esta história terminada perdi o contacto com ela. O livro chamou-se «Amar até ao fim», título escolhido pelo editor e de que o doutor não gostou, mas já não teve forças para contestar. Nunca chegou a escolher um pseudónimo e a obra apareceu com o seu nome.
16.9.20
Diário de Bordos - Lisboa, 16-09-2020
Lisboa, de «cidade branca» - apodo tolo - a «cidade triste» (injusto).
Gazeta Rural VI - OS LUGARES QUE DEIXAMOS
Pensamos muitas vezes nas cidades que já visitámos, nos países onde estivemos, naqueles aonde gostaríamos de ir. Mas quantas vezes nos lembramos dos lugares que tivemos de abandonar, voluntária ou involuntariamente? (Sim, há «ter de» voluntário: uma vez estava na Horta, na Pousada. Era o meu aniversário, tinha ido jantar com uma senhora fotógrafa e bailarina – isto é uma combinação que não se inventa – americana de ascendência açoriana, o que explica a sua presença no Faial. Não seria justo dizer que era minha namorada – tínhamos iniciado uma relação afectiva uns dias antes, semana, talvez duas – mas tão-pouco era aventura de passagem. Depois do jantar – num dos restaurantes chiques da Horta, não me lembro o nome – fomos para a Pousada. Como provavelmente sabem dá directamente para a marina. A senhora era muito bonita, morena e musculada, inteligente e culta. Às duas da manhã eu ainda não tinha adormecido, ela sim. Dormia ao meu lado, solta e feliz, os longos cabelos negros espalhados pela almofada, o ventre e as pernas musculadas da bailarina à vista, a dizerem-me: «Não me deixes.» Às duas e meia da manhã decidi que tinha de me ir embora. Vesti-me, ela acordou, expliquei-lhe que ia para Lisboa e se ela quisesse vir era bem-vinda a bordo porque ia fazer a viagem sozinho. Hesitou um pouco, disse «Não vou», combinámos encontrar-nos em Lisboa e vim-me embora. Creio que este é o melhor exemplo, se bem não seja o único, de uma pessoa querer ir-se embora porque tem de ir-se embora. «Os teus cabelos, o teu amor, o teu ventre, as tuas pernas de bailarina são um repto demasiado forte para a minha fraqueza. Vou-me embora e quando nos reencontrarmos em Lisboa estaremos em igualdade.»)
De que sítios saí, ao longo da minha
vida? Saí de Quelimane e de Lourenço Marques, sem querer. De Nakhodka, idem. De
Caracas, querendo. Detestei aquele país, hoje vejo que injustamente. De Lisboa.
La Chaux-de-Fonds, duas ou três vezes. Aveiro, onde acabara de passar um ano.
Zurique... Que horror! Ainda não estou em metade da minha vida e já deixei
metade de meio mundo. Passei a vida a deixar lugares, pessoas, vidas. Viajar,
muito mais do que chegar a qualquer lado é largar desse lugar, seja ao fim de
quatro meses seja depois de mil sonhos. Como quando larguei dos Açores pela
última vez, desta vez de avião, parecia que deixava para trás uma tonelada de
basalto que trazia agarrada às costas. O meu barco chegou depois, chamava-se
Don Vivo e ficou arrestado na marina de Vilamoura por causa de um polícia
marítimo maldoso. Havia muitos, nesses longínquos anos oitenta.
De onde é que já
saí? De Maputo, mas ainda é cedo para pensar nisso. De Bocas del Toro –
larguei, voltei a entrar, voltei a largar e ainda hoje penso no Palmar Tent
Lodge onde ia todos os dias ao fim da tarde beber um rum punch e ver o
mar numa das praias mais bonitas que me foi dado ver. (Não sou grande
apreciador de praia, por isso dizer que aquela praia está ao nível da de
Salines, na Martinique ou das do Parque Nacional Manuel António, na Costa Rica,
ou daquela onde ia nas Filipinas, não recordo o nome, é dizer muito.)
Deixei Genebra aos bocadinhos, levei
quase dois anos a mudar-me para Cascais – daqui a dias estarei ali de novo, o
que me leva a pensar no que é «deixar um sítio», partir. Alguma vez partimos,
verdadeiramente? Onde é que ia, antes deste desvio todo? Zurique. Nunca mais
ali voltei. Morava na Niederdorf, no centro do centro. O apartamento ficava por
cima de uma boutique da moda, que não tinha cabines para as senhoras mudarem de
roupa. Quando saía para ir trabalhar – trabalhava nas limpezas, para um
refugiado político checoslovaco que só não me surpreendeu porque já tinha
estado na Rússia Soviética. O homem conhecia o conceito de exploração até ao
fundo e levava-o a sério - via as
senhoras na boutique a mudar de roupa no meio da loja, visão abençoada naquele
tempo em que ninguém usava soutien. Limpava bancos (literal, não
metaforicamente). Um dos que limpava tinha uma quantidade que me parecia
ilimitada de obras do Christo e ali me familiarizei com as obras deste
artista.
Outra cidade que deixei várias vezes e
nunca deixei foi S. Luís do Maranhão, onde ainda hoje um bocadinho de mim se
passeia pelas ruas e ao fim da tarde vai beber uma cerveja ao Mercado do Peixe,
ver o decote da Jeny e trocar com ela sorrisos de entendido: «Este decote serve
para vender cervejas», diz-me. «Eu sei, Jeny». Falávamos sem trocar uma só
palavra. (Não sei de onde vem este gosto pelo entendimento tácito. Suponho que
seja a noção de pertença a um grupo. Esta grande fraternidade de pessoas que
não se conhecem, mas conhecem as mesmas coisas, viveram as mesmas situações,
passaram pelo mesmo e sabem que hoje sou eu e amanhã és tu e depois de amanhã
será outro e é para isso que estamos cá.)
Deixei Antigua, aonde espero nunca
mais voltar; Bequia, onde quero voltar para morrer. Deixei St. Martin, ilha
mágica porque mistura tudo o que as outras são. Deixei Jost van Dyke vezes de
mais porque ali se bebe o melhor
cocktail do mundo – chama-se Painkiller e é o único cocktail que conheço cujo
nome corresponde à realidade. Deixei Bitter End, fim amargo de tudo o que de
bom aquelas ilhas têm. Deixei o Burundi, vencedor vencido e o Zaire, vencido
mas revoltado. Deixei Kindu, uma evacuação como aquelas que se vêem nos filmes,
soldados armados por todo o lado, o avião a parar para me deixar entrar, uma
mãe a ter de escolher qual dos filhos a acompanharia na fuga.
As
partidas marcam mais do que as chegadas, com a possível excepção de Bequia
(pronuncia-se Béqüei) porque ali mal cheguei e pela segunda vez na vida vi o
lugar onde quero morrer (o primeiro é praticamente inacessível. Chama-se
península de Burton e fica na margem oeste do lago Tanganica. Não se pode
querer morrer num lugar ao qual não se pode voltar). A Bequia quero voltar,
todos os marinheiros querem. Richard Dey escreveu as coisas mais bonitas que há
sobre esta ilha. Não tenho o livro comigo, mas é de lá que vem aquele verso que
não me deixa: «I know them. I am one of them.»
Já deixei mais sítios do que aqueles a
que cheguei: a matemática das viagens não é algébrica, é alquímica.