Os meus dias começam invariavelmente com um duche, ao qual se segue vestir-me e o pequeno-almoço. Excepto quando não começam. Este «invariavelmente» não deve ser levado à letra. Às vezes começo com tudo menos o duche. Procrastino e faço aquilo que toda a gente faz quando procrastina: nada, disfarçado de fazer qualquer coisa. Sei lá, arrumar loiça, fazer a cama, ver televisão, pensar em tudo o que devia estar a fazer e não estou, escrever disparates e repetir palavras de que não gosto, como procrastinar. Faço-o com o objectivo único e mais ou menos confesso de protelar o começo do dia, de fazer como se vivesse alternadamente nos dois pólos durante o respectivo inverno, passar de uma noite para outra com o mínimo possível de luz. Como se lava a loiça num igloo? Será que aquilo derrete e começa a pingar água em cima dos edredons, como nos barcos de madeira nos quais comecei a navegar? A televisão é muito depressiva e só fala de coisas que não interessam, como hoje, por exemplo: meia dúzia de putos querem «salvar o planeta». Invadiram umas instalações de não sei o quê porque estava lá um ministro e eles querem que o homem deixe de o ser. E ainda há quem queira baixar a idade do voto. Ver adultos a querer «salvar o planeta» já é doloroso; mas putos ainda é pior. Ainda por cima «apoiados» pelos professores e por políticos oportunistas, tão débeis mentais como os ditos «activistas climáticos» (quem esfregasse um pano sujo nas trombas de alguns jornalistas e repórteres de televisão mereceria uma medalha de mérito. E não é só por causa do «c» em activistas, é por causa da palavra toda). O planeta sobreviveu a terramotos, asteróides, incêndios, dilúvios, ciclones, extinções em massa e estes palermas querem «salvá-lo». Salvá-lo? Só se for da sua própria estupidez, que essa sim é uma ameaça. Enfim, o dia lá acaba por começar, expressão deliciosa, saborosa e maliciosa, «acabar por começar». Já o inverso não existe, as coisas não começam por acabar, nada começa...? Não sei: o dia começou por acabar a noite, por exemplo. Não é a mesma coisa. O dia continuou a começar, agora com Sonny Rollins no leitor de CD, eu a debitar disparates, saco de ontem desfeito, caldo verde comido, duche tomado, vinho tinto oxidado de tanto tempo aberto, há lá direito, estragar vinho tinto é pecado, de qualquer foma tenho de ir ao supermercado comprar leite e o vinho vem por arrasto, apesar de ter decidido que agora só compro vinho na adega aqui perto e na casa Cafélia, onde descobri Magarogipe da Nicarágua, um dos meus cafés preferidos, juntamente com o de Sumatra e também tem vinho bom e barato e assim se arrasta o começo de um dia que para variar não começou com um duche, começou cinzento e não começou no Pólo Norte mas sim a trinta e oito graus, quase trinta e nove (norte também, claro). Quase poderia dizer que o dia pegou de tchova, não fosse o duplo sentido do termo. Para clarificar: o dia pegou de tchova, não eu.
E quem diz o dia diz a vida.
Adenda: «Salvar o planeta»? Pensar que o homem o poderia destruir já é uma insuportável hubris; que o poderia salvar (se fosse caso disso) é ainda pior.