19.12.19

O que não é meu

- Era um amor artesanal, feito à mão... Escrevíamo-nos todos os dias com canetas de tinta permanente e em papel que ele comprava na papelaria Brachard, em Genebra. Era o único papel decente para cartas, dizia-me. Falava-me do futuro, das suas visões, dos seus sonhos e eu contava-lhe o dia-a-dia, as contas por pagar, as conversas (ou discussões, ou o que fosse) com os vizinhos. Era uma correspondência assíncrona, por assim dizer. Enfim, todos os dias é um exagero, uma vez por semana, por vezes duas. Mas não passava uma semana sem uma carta dele, isso é garantido. Cartas enormes, que ia escrevendo ao longo dos dias, até as considerar prontas. «As cartas acabam por si próprias», explicava-me.

Dizia-me que tinha bastante a aprender comigo, apesar de eu ser muito mais nova. "Em troca, ensino-te a diferença entre um bico, um broche e uma felação; mais: ensino-te a fazer cada um deles como deve ser. É a única coisa que te posso ensinar. Aproveita, é uma proposta desinteressada." Tinha o humor de quem já viveu muito e tem poucas ilusões sobre si próprio e sobre os outros.

Sei perfeitamente o que viu em mim: esta mistura de humor e sensualidade, a que ele chamava "um pleonasmo. Não existem separadamente."

"Respiras sexo como as outras oxigénio. Um gajo olha para ti e pensa que está a ver uma imagem da lubricidade. Mas ouve-te e vê que não: antes uma imagem da inteligência. Depois não sabe bem o que é, perde a cabeça, desinteressa-se - não vá o diabo tecê-las - mas a verdade é que cabeça perdida ou não tu não sais de lá e já que por ali andas, ao menos que andes nua, como dizia já não sei quem." Isto vinha logo numa das primeiras cartas que me escreveu, ainda eu me perguntava se aquilo era uma estupidez, uma loucura, uma simples palermice ou se valeria a pena experimentar. Pagar para ir a jogo, como ele dizia.

Nas cartas eu incluía por vezes fotografias de mim. Nua, a masturbar-me, em poses mais ou menos eróticas... Um dia desafiei-o para nos filmarmos, cada um do seu lado - ele andava sempre a viajar, não tinha poiso fixo. Acedeu, para minha grande surpresa. Tornou-se uma rotina, mas nem assim as cartas acabaram. Era um amor artesanal, garanto-te. Foi construído peça a peça, dia a dia, letra a letra, selo a selo ("lambe-se uma glande como se lambe um selo").

Um dia, ao pequeno-almoço, disse-me que devíamos acabar. Estava em Lisboa, entre duas viagens.
- Há quanto tempos andamos nisto? Um ano? Dois anos?
- Dois anos e três meses.
- Temos de acabar, antes que nos apaixonemos um pelo outro.
- Já estamos.
- Apaixonados sim. Mas ainda temos espaço para descer mais fundo. Ou subir, se preferires.
- E depois?
- Depois, tu és vinte anos mais nova do que eu e terás de te fazer à vida. Melhor que isso aconteça quando ainda és boa e bonita. Mais dois anos comigo e só atrairás intelectuais tesos, depressivos crónicos ou maníacos possessivos. Agora ainda tens cabedal para atrair um gajo decente, chefe de empresa ou director-geral na função pública.

Quase lhe dei uma bofetada.

- Obrigado pela contenção. Vou-me embora. Fica com tudo o que é meu e está cá em casa.

Morreu pouco tempo depois, no mar. Sabemos que foi um suicídio porque deixou uma nota a bordo. Fez as coisas de tal maneira que o barco fosse encontrado sem provocar danos, chamou o CROSS de manhã cedo, avisou que era possível ter de ir ao hélice e desapareceu.

A nota era-me dirigida. Dizia: "Não posso devolver-te o tempo que me deste e não gosto de ficar com o que não é meu."

(Para a T., com um beijo.)

(E para a Sandra Viva, da Tasquita d'Esquina, pela paciência)

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