27.6.20

A Fé, o milenarismo e outras digressões teórico-sentimentais

Há aproximadamente quatro ou cinco vidas interessei-me por neurologia, biologia e outros ias. Lia François Jacob, Jacques Monod, Edward Hall, Gregory Bateson, Paul Watzlawick, descobria Jean-Pierre Changeux, devorava o Morin do Paradigma Perdido e do Método... Foi um período que durou alguns anos e de que ainda hoje guardo muitos traços. Lá para o fim dele li uma tese segundo a qual a fé religiosa é uma parte constitutiva do cérebro humano e não uma opção. É o resultado de um processo evolutivo. O homem seria naturalmente religioso e o ateísmo uma desviância. Não me lembro do autor mas lembro-me de que na altura não levei aquilo muito a sério. Ateu desde os catorze anos, habituara-me a olhar para as manifestações de fé como formas particularmente bem sucedidas da superstição, um pouco à imagem da diferença entre dialecto e língua: "uma língua é um dialecto que tem um exército e uma marinha" diz a piada (que não o é assim tanto). Acreditava que as pessoas têm fé porque pensar dá mais trabalho do que acreditar. A fé não me interessava muito mais do que as práticas voodoo. Era-me mais próxima porque a conhecia, mas não havia grande diferença entre estas e aquela.

Hoje o meu interesse pela fé religiosa vai um pouco mais longe. Continuo a pensar que não há grande diferença entre comer uma hóstia acreditando que se está a comer o corpo de Cristo e espetar alfinetes num boneco pensando que assim se vai vingar uma ofensa qualquer; mas acredito, sim, que ambas as crenças são parte intrínseca do humano, que o nosso cérebro evoluiu com a necessidade de fé - com ou por causa da capacidade do simbólico, se preferirem. A fé tem a ver com o símbolo, é a estruturação do simbólico. E o homem precisa de símbolos, está "programado" para simbolizar.

Mas não é isso que está em causa. O que me fez pensar nisto tudo é a fé que as pessoas continuam a depositar em jornalistas e em políticos, duas classes profissionais cuja capacidade de fazer mal é conhecida há muitos séculos (na Roma antiga não havia jornalistas mas havia manipuladores de opinião. A actividade não é de hoje).

Os próprios jornais confessaram, há poucos dias, que tinham manipulado a opinião pública em favor do confinamento; a capacidade que os políticos têm de fazer qualquer coisa bem feita espelha-se perfeitamente na pobreza crónica do nosso país, na corrupção de que somos vítimas, no nepotismo, na endogamia das nossas «elites» (entre aspas porque é um sarcasmo). Mas as pessoas continuam a acreditar nuns e noutros da mesma forma que acreditam na virgindade da Senhora, coitada. 

(Há tempos li uma coisa sobre um fenómeno de hiper-plasticidade do hímen: parece - confesso que não dediquei muito tempo a pesquisar o assunto pela razão simples e explícita de que o hímen da senhora me interessa zero - que é possível engravidar mantendo-se tecnicamente virgem. Talvez haja aí um leitor médico que me confirme ou infirme isto. Quanto a mim é irrelevante e não chega para me fazer regressar à fé. Suponho porém que um fenómeno semelhante faz as pessoas acreditarem num político ou num jornalista: há uma possibilidade remota de o que ele diz ser verdade, portanto acredita-se no bolo todo.)

O problema desta necessidade de fé é que não se limita ao Bom. Quem acredita em Deus (no sentido lato) precisa de acreditar no demónio. Sem este, aquele não faz sentido, não pode existir. Do demónio as teorias milenaristas são parte integrante: "o fim está próximo", andam doidos a gritar pelas ruas e pelos caminhos desde que o primeiro homem se lembrou de cortar um tronco de árvore às rodelas e pô-las debaixo de uma carga pesada. Aliviar a carga é desafiar a ordem divina. O homem nasceu para sofrer e tudo o que lhe reduza o sofrimento é intrínseca e inevitavelmente mau.

Para grande pena minha, esses doidos hoje têm acesso a jornais e a políticos e anunciam o fim do mundo em termos bonitos: aquecimento global, micro-plásticos, Covid-19. Preferiria de longe que o demónio regressasse, o bom velho demo. E que os curas deixassem de invadir as redacções e não pudessem ser eleitos. 

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