11.1.21

Na minha bicicleta

Saí de casa com o objectivo final de ir buscar a bicicleta. Devagar, devagar. De caminho descobri um restaurante que me parece excelente - chama-se Zebras do Combro e ainda estou por perceber como não o conhecia antes. Pelo menos a julgar pelos croquetes e pela simpatia da senhora; comprei um maço de cigarros - acho estúpido que não se possa comprar cigarros avulso. Isto de forçar quem quer fumar um cigarro a comprá-los aos maços só incentiva as pessoas a fumar e a gastar dinheiro inutilmente; e lá fui, engrossando-me devagarinho, passando pelo anjo do arco (a designação é minha, inútil procurá-lo. Tem as melhores pataniscas da cidade), pela ginginha... É uma vantagem muito grande, um gajo poder embebedar-se passo a passo e não ter aquela necessidade compulsiva de ficar embriagado. Assim, as coisas vão entrando em nós aos poucos - tudo: a cidade, as ruas, esta luz, o frio, o sol, os prédios. Comprei um garrafa de Mei Kwei Lu encarnado. Não é tão bom como o azul, mas que se lixe. Não havia outro. O Mei Kwei Lu tem uma característica de que gosto muito: um homem não se apercebe de que está bêbedo antes de o estar completamente. Quando chegar a casa vou fazer um chá e beber um Mei Kwei. As minhas taças de Mei Kwei estão em Mértola, mas não faz mal. Bebê-lo-ei na mesma.  Às vezes gosto de comparar o Mei Kwei à coca, mas percebo incomparavelmente mais daquele do que desta. Género cem a um, ou mil a um. Acho apreciável que em Lisboa se possa comprar Mei Kwei Lu, mesmo sendo encarnado (já me tinham avisado que o azul acabaria em breve, e isto foi há uns anos).

Agora preparo-me para apanhar um táxi. Um Uber seria muito mais barato, mas só em termos relativos. Em termos absolutos, a diferença vai ser talvez de um euro, euro e meio. É forçoso reconhecer que aquele gesto urbano de estender o braço e parar um carro que vai a passar é infinitamente mais bonito do que pespegar o olhar no telefone portátil. São gestos que vão morrer e quanto mais não seja por isso devemos preservá-los tanto quanto possível, como se tenta preservar uma pessoa doente mesmo sabendo que ela vai  morrer. A linguagem diz tudo, como sempre: apanha-se um táxi, chama-se um Uber. Também se chama um táxi, mas não quando se está na rua. Um táxi chama-se do conforto de um restaurante ou de o alívio de uma cama, não de um passeio frio e ventoso da Almirante Reis. 

Devagar. A palavra-chave é devagar. Tudo é bom quando é feito devagar, incluindo viver. Deixar as coisas entrar em nós, as ruas pelas quais deslizo, bêbedo e cego. Não estou nem uma coisa nem outra, note-se, mas olho para esta luz que entra pela cidade, escorrega pelos prédios e penso que também ela está cega e que se estivesse bêbeda não se comportaria de outra forma. Entro por esta cidade dentro como se entrasse por um corpo que me ama, mesmo sabendo que esta Lisboa não me ama. Está-se a marimbar em mim, mas sabe que mesmo assim não deixo de gostar dela. Se calhar gosto dela porque se marimba em mim, não seria a primeira vez que me rendo ao bom-senso. Não sei. Ninguém sabe nada, seja como for. Sei que deslizo por estas ruas bêbedo e cego e que não estou nem bêbedo, nem cego e não deslizo, porque tenho de pedalar. E que todo este conjunto de coisas, leve como um autocarro de dois andares desgovernado, vai devagar.

Tenho duas bicicletas: uma preta de cidade; e uma cinzenta de estrada. Gosto igualmente das duas. Isto não é nem um analogia, nem uma metáfora e muito menos um pedido de desculpa. É - quando muito - uma explicação: gosto igualmente de dois contrários que em comum só têm a beleza. A preta é pesada, bonita e confortável; a cinzenta é leve, rápida e bonita. A beleza tem várias formas e todas elas são apreciáveis. A beleza pode ser lenta e confortável ou leve e rápida. Talve seja essa a diferença entre o amor e a paixão. Não sei. A paixão é rápida e fulgurante e o amor lento e sedimentado. Talvez. Ou a diferença entre dois amores.

Nada sei, na verdade. Excepto que a beleza é o que é, que a luz é o que é, que estas ruas são a minha casa. Ou melhor: as janelas da minha casa, a partir das quais olho, oiço e vejo o mundo e nele passeio, na minha bicicleta.

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