2.4.21

Encruzilhada, ética

O drama desta crise, escrevi há pouco tempo - perdoem-me a auto-citação - é que cada um dos intervenientes fez o seu trabalho: os media rentabilizaram-na, os governos cavalgaram-na, as pessoas aterrorizaram-se, como lhes competia e se esperava delas, os cientistas ou se venderam ou se acobardaram ou foram silenciados, consoante o lado em que se situavam.

Porém, o facto de os media terem aproveitado o vírus para melhorar tesourarias que estavam, na sua maioria, vazias levanta alguns problemas de ética. A responsabilidade social de uma empresa é ter lucro? É, sem dúvida, mas com alguns bemóis. Um ladrão é uma empresa e ninguém pensa que lucrar muito com a sua actividade é um bem social. Seria muito mais barato construir carros sem travões, mas não me parece que o mercado aprovasse incondicionalmente a ideia. Há na comunicação social um problema de ética e outro de liberdade de expressão cuja resolução me parece relativamente fácil (relativamente sendo, claro, irónico): se os media fizessem o seu trabalho de acordo com as normas (ou antigas normas, não sei se ainda estão em vigor) de distanciamento e contraditório poderiam simultaneamente usar a sua liberdade de expressão e melhorar as suas depauperadas tesourarias. 

(Ao contrário do que parece, o parágrafo anterior termina com um ponto de interrogação. O ponto final é uma ilusão ótica e óptica.)

Os governos poderiam ter agido como o governo sueco? Prefiro o exemplo do governo do Dakota do Sul, cujo video correu a net há algumas semanas: sem quaisquer constrangimentos legais, a governadora - em quem não serei o único a ver um futuro presidente dos EUA - escolheu não impor «medidas». Os números dão-lhe razão, claro, mesmo comparando com os estados vizinhos, como os apoiantes destas políticas gostam de fazer com a Suécia. Sim, podiam e deviam. Mas de um político a um estadista vai um passo grande e nem todos são a senhora do Dakota do Sul, cujo nome não fixei. Há aqui um problema ético e outro prático: governar reduz-se a procurar a reeleição? Quem nos garante que a tal senhora não vai ser reeleita governadora? Quem nos garante que se Costa, Sánchez ou Macron se tivessem comportado em estadistas - admitidamente, algo tão difícil como levar o Ayatollah Khomeini à Oktoberfest - não sairiam reforçados?

Das pessoas e respectivo medo pouco há a dizer. O homem é um animal e não há discurso anti-biologia pós-moderno que apague esse facto singelo. O medo é um mecanismo evolutivo, darwiniano, naturalmente colectivo. Por muito que me irrite, me frustre, me dê vontade de gritar, não serei eu quem as vai julgar. (Acresce que a modernidade e as suas crenças na omnipotência da medicina, na irrealidade da morte, na ideia de que tudo acaba forçosamente bem, na correcção política foi criada por gente da minha geração, não pelos jovens que se limitaram a absorver o que lhes despejámos pelas goelas abaixo ou pelo menos não impedimos de beber quando era tempo para isso).

Idem quanto aos cientistas. Muitos falaram e não foram ouvidos - a culpa não é deles - outros acobardaram-se, outros decidiram que vender medo dá mais massa e projecção do que vender razão (aliás, acredito que muitos destes o tenham feito por convicção, motivação essa que para mim não é essencialmente diferente da ganância. É-o marginalmente).

Ou seja: temos aqui uma encruzilhada apaixonante, por muito mal que tenha espalhado por essa Terra fora. E é muito, incomensurável, inimaginável. No centro da encruzilhada está a ética. O resto são adereços.

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