The Dead - John Huston
31.10.09
Why am I feeling this riot of emotions?
O final de um dos melhores filmes de sempre: The Dead, John Huston.
Numa Cinemateca perto de si.
Numa Cinemateca perto de si.
30.10.09
29.10.09
Um site a visitar
Creio já aqui ter falado do site Ler Por Aí, uma interessantíssima e sedutora ideia de Margarida Branco. Escrevi um dia um texto sobre um dos livros que a Margarida apresentou, o Dark Star Safari, de Paul Theroux (entretanto já traduzido para português) - o que, de passagem seja dito, não deve desencorajar ninguém.
Para quem gosta de viajar e de ler o site é de visita obrigatória. Em breve sê-lo-á também para quem gosta de comer.
Para quem gosta de viajar e de ler o site é de visita obrigatória. Em breve sê-lo-á também para quem gosta de comer.
Conversa de café
Mais um caso que as nossas elites classificarão, decerto, como "conversa de café". Este é paradigmático porque demonstra até que ponto alguns dos nossos juízes navegam noutro planeta, a inadequação das leis, o desequilíbrio de poder.
28.10.09
Post
E com isto tudo deixei passar o post número 4800, marco importante porque demonstra sem margem para dúvidas que este blog tem cerca de 4800 posts a mais.
Baixa na Baixa
O restaurante O Arco, na rua dos Sapateiros 161 deixou de ser a magnífica morada que era e transformou-se num restaurante de "comida tradicional portuguesa". Não provei, e não me parece que o venha a fazer.
O corpo, a língua
Um corpo é uma língua estrangeira que se aprende pouco a pouco. As primeiras carícias são imperfeitas; depois o corpo desvenda-se. Vocábulos desconhecidos tornam-se compreensíveis; transformam-se em carne, olhares, sons. Cada corpo é um léxico desconhecido ávido de se dar a conhecer, de se dar a falar. "Fala-me", dizes; e eu falo.
Um corpo é uma língua estrangeira. Sê-lo-á sempre: aprender-te leva uma vida. É uma vida.
Mario Vargas Llosa
Um texto imprescindível de Mário Vargas Llosa, aqui. Sempre é melhor do que as inanidades do outro.
Promessa
Prometo: só aqui escrevo o que nos dias, na vida, todos os dias escrevo - os dias, a vida, eu.
A teimosia e a semântica
Muitas tragédias são provocadas pela teimosia; mas todas as vitórias o são. Só que neste caso deixa de se chamar "teimosia" e passa a ser "perseverança".
Empreendedorismo
Às vezes parece-me que Portugal tem dois empreendedores: o Eng. Belmiro de Azevedo e a pessoa que, rotativamente, ocupa o cargo de Primeiro-Ministro.
27.10.09
Revista de Marinha
Para quem se interessa pelas coisas do Mar, o site da Revista de Marinha é de visita obrigatória. Para além de ser um apoiante de primeira hora do projecto Mares - Olhares da Língua Portuguesa, a Revista de Marinha tem riqueza de conteúdos e informações práticas e importantes.
26.10.09
Conversa de café
Portugal tem teóricos notáveis; académicos do melhor, políticos topo de gama; especialistas do mais especial possível. Somos os melhores a fazer análises e diagnósticos. Resumindo: a nossa estratosfera é fabulosa, soberba, a melhor entre as melhores.
Infelizmente tais e tão vastas qualidades não se replicam na biosfera: aí continuamos pobres, a divergir da Europa, com taxas de analfabetismo e de abandono escolar altíssimas, com desigualdades sociais gritantes, com uma justiça que não funciona, organismos públicos pejados de incompetentes, impunidade a granel, um sistema educativo que só é defendido por quem tem os filhos no privado, saúde idem aspas, uma burocracia asfixiante.
Há muitas razões para esta disparidade; uma delas é que a estratosfera despreza soberanamente o que se passa na biosfera. Vive nas alturas, e do país só tem o melhor: o clima, os preços acessíveis, etc. Tudo o resto é "conversa de café".
Infelizmente tais e tão vastas qualidades não se replicam na biosfera: aí continuamos pobres, a divergir da Europa, com taxas de analfabetismo e de abandono escolar altíssimas, com desigualdades sociais gritantes, com uma justiça que não funciona, organismos públicos pejados de incompetentes, impunidade a granel, um sistema educativo que só é defendido por quem tem os filhos no privado, saúde idem aspas, uma burocracia asfixiante.
Há muitas razões para esta disparidade; uma delas é que a estratosfera despreza soberanamente o que se passa na biosfera. Vive nas alturas, e do país só tem o melhor: o clima, os preços acessíveis, etc. Tudo o resto é "conversa de café".
Vaclav, Vasco, Valente
«Parece que, a troco de algumas concessões, o Presidente da República Checa, Vaclav Klaus, está finalmente - e presumo que muito contrariadamente - disposto a ratificar o Tratado de Lisboa. Até agora o homem tem resistido a uma eurofilia irritada, que não o percebe e que do fundo do coração o despreza. É um liberal impenitente e um discípulo confesso de Milton Friedman. Considera o aquecimento global um "mito", o "ambientalismo" uma "religião" e Al Gore um "apóstolo da arrogância". Detesta a esquerda e, particularmente, intelectuais de esquerda. Odeia o sentimentalismo de Havel. E, reeleito em 2007 pelo Parlamento, não depende da desaprovação popular. Mas, sobretudo, é um checo de Praga, coisa que a "Europa" ainda não conseguiu compreender. Ser um checo de Praga chega, e sobra, para desconfiar da "Europa". Em 1938, a Checoslováquia era a única democracia a leste da Alemanha. E era também a única potência militar capaz de opor a Hitler um obstáculo plausível. A Checoslováquia estava também aliada à França e à URSS. Mas foi - não há outra palavra - traída pela França e pela Inglaterra, que, em Munique, a entregaram, sem sequer a consultar, à Alemanha nazi. Como, a seguir à guerra, a entregaram a Estaline. A República Checa deve ao Ocidente 50 anos de ditadura. Não admira que lhe custe um pouco acreditar na íntima bondade de uma "Europa", em que precisamente a França e a Alemanha põem e dispõem. Vaclav Klaus explora, e representa, esse sentimento histórico? Com certeza que sim. Só que ele existe. Pior ainda, em 1945, a República Checa expulsou quase dois milhões de alemães do seu território. E teme, naturalmente, que, tarde ou cedo, as vítimas queiram recuperar o que perderam (ou parte do que perderam), à sombra de uma "Europa" supranacional. Os checos viveram até ao fim da I Guerra sob domínio austríaco, desde 1939 sob a ocupação do Reich e, pelo menos, desde 1948 sob o império soviético. É racional que recusem hoje qualquer espécie de ameaça, por remota que seja, à sua independência e liberdade. Vaclav Klaus pensa que Bruxelas (com ou sem o Tratado de Lisboa) acabará pouco a pouco por liquidar a democracia (que já não anda florescente) a favor de uma "pós-democracia" burocrática e autoritária e de um "europeísmo vazio". Talvez não se engane muito. A ameaça é real.»
Livro
O livro começa no princípio; e acaba com o que me levou a ti, ou o que te trouxe a mim, é quase a mesma coisa.
Todos os livros, dir-me-ás.
Charutos, analogias - uma pergunta
Apagar um bom charuto é tão difícil, longo, doloroso, complicado como acendê-lo. Isto aplica-se a muitas outras coisas, não é?
25.10.09
TGV - II
A empresa que quer fazer um TGV e não sabe gerir uma mudança de bilhética (entre outras coisas) fez uma exposição para celebrar os 120 anos da Linha de Cascais. Eu acho muito bem - tão bem aliás que quis saber onde, quando, quanto.
Acreditem se quiserem, mas o anúncio que a dita companhia colocou nos comboios não tem nenhuma destas informações. Nem local, nem datas, nem horários, nem indicações sobre o preço.
É esta companhia que quer fazer um TGV.
Acreditem se quiserem, mas o anúncio que a dita companhia colocou nos comboios não tem nenhuma destas informações. Nem local, nem datas, nem horários, nem indicações sobre o preço.
É esta companhia que quer fazer um TGV.
Racionalidade
"Inverno: Atrasar os relógios aumenta o consumo de energia e a poluição no Reino Unido"
Acabar com a mudança de hora seria um simples acto de bom-senso, é há muito tempo sabido. Esperemos que por via da "poluição" e do "aumento do consumo de energia" se faça luz, depressa. Ou enfim, para ser mais exacto: se encontre uma escapatória para salvar a face, já que aparentemenete o facto simples e humilde de dizer "estávamos enganados" não serve para quem dirige.
(Naquele abençoado país que é a Suíça - de um ponto de vista político, entenda-se - houve um ano em que o governo quis introduzir a hora de verão e o povo votou "não".)
Acabar com a mudança de hora seria um simples acto de bom-senso, é há muito tempo sabido. Esperemos que por via da "poluição" e do "aumento do consumo de energia" se faça luz, depressa. Ou enfim, para ser mais exacto: se encontre uma escapatória para salvar a face, já que aparentemenete o facto simples e humilde de dizer "estávamos enganados" não serve para quem dirige.
(Naquele abençoado país que é a Suíça - de um ponto de vista político, entenda-se - houve um ano em que o governo quis introduzir a hora de verão e o povo votou "não".)
Surpresa
"Terminal à medida da Mota-Engil". Aqui está uma coisa da qual não estávamos nada à espera.
(Via 31 da Armada)
(Via 31 da Armada)
24.10.09
Écoute-moi
Écoute-moi. Je veux - je vais - tout te dire. Tout. Ne rien taire. Ni la rage ni l'impuissance, sa mère; ni les seins caressés au troisième étage de la Tour Eiffel, Paris à nos pieds, ni le désir, "ce chien". Je raconterai tout. Je penserai aux mots, je te donnerai des paroles comme des fleurs ou des coups de poing. Attention: je penserai aux mots mais ne les penserai point: ils sont fait pour être dits, et vécus, les mots. Pas pensés.
Je te parlerai d'un ventre et des merdes qui te restent dans la tête comme les poils dans la bouche. Je te dirai "une pair de seins sans une pair de mains: cuisinière sans feu, chaise sans pieds, pied sans orteils". Regards sans regards. Mots sans sons.
Une paire de voix haletantes vaut une vie: je te le dirai aussi. Je te le dirai.
Je te caresserai les mots sur la peau jusqu'à ce qu'ils te pénètrent comme tu m'as penetré avec ta douceur, ton humour, ton regard, tes doutes, hésitations, tes souffles. Je te dirai tout. Écoute-moi; fais attention. Écoute attentivement les mots avec lesquels je vais te frotter, car tu ne pourras guère les entendre. Je te les passerai comme des baumes: lentement, doucement, suavement. Des mots comme des huiles de fragrances. Il faut taire ce que l'on ne peut pas dire et dire ce que l'on ne peut taire.
Je te parlerai d'un ventre et des merdes qui te restent dans la tête comme les poils dans la bouche. Je te dirai "une pair de seins sans une pair de mains: cuisinière sans feu, chaise sans pieds, pied sans orteils". Regards sans regards. Mots sans sons.
Une paire de voix haletantes vaut une vie: je te le dirai aussi. Je te le dirai.
Je te caresserai les mots sur la peau jusqu'à ce qu'ils te pénètrent comme tu m'as penetré avec ta douceur, ton humour, ton regard, tes doutes, hésitations, tes souffles. Je te dirai tout. Écoute-moi; fais attention. Écoute attentivement les mots avec lesquels je vais te frotter, car tu ne pourras guère les entendre. Je te les passerai comme des baumes: lentement, doucement, suavement. Des mots comme des huiles de fragrances. Il faut taire ce que l'on ne peut pas dire et dire ce que l'on ne peut taire.
23.10.09
21.10.09
As afinações e a dor
A idade - ou a maturidade, se preferirem - tem várias vantagens. Uma delas é que nos afina o desejo, torna-o mais selectivo. A grande desvantagem é que a dor é tanto maior, depois. Deixamos de nos enganar de um lado da linha para nos magoarmos mais do outro.
Não tenho a certeza de que seja uma vantagem; mas pelo menos magoamo-nos com razão.
Não tenho a certeza de que seja uma vantagem; mas pelo menos magoamo-nos com razão.
Má-fé
Há coisas que só por má-fé ou por maldade devem ser ditas, sob risco de serem incompreensíveis. Ou, pior ainda, inaceitáveis.
Mudanças
A pessoa que acaba de escrever um livro é diferente da que o iniciou; tal como, de resto, quem começa um amor é diferente de quem dele emergirá.
Tautologia
De certa forma o desejo é uma tautologia. Podemos tentar explicá-lo pela biologia, ou recorrendo à poesia. Podemos mesmo tentar o silêncio, como explicação. Mas nenhuma será completa: só o desejo se explica a si próprio - a maioria das vezes a posteriori, é certo.
20.10.09
Etapas
As coisas vão por etapas, que queres? Agora apagas-me a tristeza; amanhã devolves-me o riso. Não te iludas: é um trajecto longo.
Imagem, acto
Como a vela cheia de uma jangada te vejo sentada em mim; e te acaricio os seios, o ventre, o vento.
19.10.09
A Quida e o Môr
Ele chama-lhe Quida e ela a ele Môr, o que em si mesmo pouco mais seria do que muito ligeiramente irritante. Além de que ela tem os seios pujantes e em grande parte à vista, o que amenizaria qualquer irritação, por muito grande que fosse. Mas o Môr está com uma horrível constipação e funga repetida, esforçadamente - também se assoa, devo dizer, ruidosamente. Aliás tem um certo ritmo: uma frase (curta), uma fungadela, uma frase, um assôo, uma frase, uma fungadela e assim por diante. Isto já é muito mais irritante - tanto mais que estamos os três (em mesas diferentes) na minúscula sala de um restaurante (passe o exagero, ou generosidade) indiano que há muito tempo queria conhecer; e não há seios pujantes que compensem.
O restaurante é medíocre, mas tem uma vantagem: a comida é picante.
A certa altura penso em dizer qualquer coisa ao Môr, uma observação ligeira, discreta, do género "quer um lenço?". Não funcionaria, porque o Môr tem, visivelmente, lenços; e porque cada um dos braços dele é mais largo do que uma das minhas coxas; a testa mais estreita do que um dos meus dedos mindinhos; deve gastar mais em ginásios e em esteróides anabolizantes num dia do que eu em cerveja num mês; ainda lhe faltam quase trinta anos para chegar à minha idade; e é segurança numa discoteca - não sei qual, mas deve ser uma das mais seguras de Lisboa, desde que não sejamos nós o alvo da "segurança", claro. Ou seja: ele recusaria decerto a minha amigável sugestão e se se ofendesse eu não duraria trinta segundos nas mãos dele.
Quando uma pessoa está em casa triste e a chorar sem saber porquê (ou sabendo, mas sem querer dizer) ir a um restaurante indiano no qual a comida é picante revela-se uma das melhores soluções. Espalhamos o bom humor: os empregados riem porque pensam que estamos a chorar por termos presumido da nossa resistência quando respondemos "muito picante"; os outros clientes pensam (enfim, não é o caso da Quida e do Môr) a mesma coisa e trocam sorrisos entendidos; e nós próprios percebemos, finalmente, que estávamos a chorar por antecipação, apenas.
A Quida tem uma visão do mundo que lhe é, visivelmente, dada pelas "revistas", que ela cita continuamente, assim mesmo em termos genéricos: "li nas revistas, vi nas revistas, estava nas revistas". De um mundo, entenda-se, bastante fulanizado ou sicranizado. Não retenho os nomes (tenho que escrever isto) mas ela sabe quem se casou e quando, com quem e quando morreu (a taxa de mortalidade dos "revistáveis" deve ser elevada). O Môr, em contrapartida, sabe tudo sobre os movimentos de fusão, aquisição e falências da noite lisboeta.
Quando me venho embora estão a pedir palitos. "Para os dentes", acrescentam quase em uníssono; com estes indianos nunca se sabe.
Sinto uma enorme ternura por eles. Ternura? Não: inveja.
Noite, quadros
Um corpo numa cama, mãos que te afagam, um ventre que te acolhe, seios que te albergam a tristeza, uma pele que te acalenta o tacto, lábios que se beijam, um nome que pronuncias mil vezes, e são poucas. Cabelos e línguas e orelhas e ventres e coxas e pés e costas e nádegas que se misturam em impossíveis anatomias. O quadro é conhecido.
Mas não se repete, nunca.
Mas não se repete, nunca.
17.10.09
Mar, palavras
Estou no mar. Quinze, vinte nós de vento; mas o vento é circular, anda às voltas em torno de mim. Está um dia claro, luminoso, os azuis do mar e do céu entrecortados pelos carneiros no topo das vagas, escada azulada. Tento agarrar uma das vagas; transforma-se numa mulher, o branco da espuma em cabelo loiro ou castanho.
Ou em palavras: "não", "sim", "vem", "espera", "desaparece". As palavras também rodam, como o vento, em torno de um eixo que ora me parece estar dentro de mim ora está, claramente, fora. Aglutinam-se em frases: "gosto muito de ti", "vou-me embora", "não sei o que quero, nem o que não quero", "quando chegar a casa ligo-te", "quando chegarmos a casa vamos para a cama", "vamos para a cama hoje, só hoje", "leio em ti como num livro aberto".
O vento cresce, os círculos tornam-se mais apertados, as palavras uivam-me nos tímpanos. Para onde quer que me volte só vejo azul, branco, e olhos, peles, seios, ventres, pernas de todas as cores e formas. As vagas transformam-se em mãos - algumas apertam-me o pescoço e dão-me murros, outras afagam-me carinhosamente a pele, o sexo, o cabelo. Não posso afogar-me, mesmo que queira: o mar, as palavras, as mãos impedir-me-iam.
"Tudo isto devia transformar-se em dor", penso. "É fiável, coerente, conhecida. Não muda de um segundo para outro, não se contradiz, sabe o que quer: magoar-me. E consegue".
As mãos que me afagam e acariciam também, apercebo-me súbita, magoadamente.
O vento cai, as palavras apagam-se. As mãos retiram-se. Nada fica.
Ou em palavras: "não", "sim", "vem", "espera", "desaparece". As palavras também rodam, como o vento, em torno de um eixo que ora me parece estar dentro de mim ora está, claramente, fora. Aglutinam-se em frases: "gosto muito de ti", "vou-me embora", "não sei o que quero, nem o que não quero", "quando chegar a casa ligo-te", "quando chegarmos a casa vamos para a cama", "vamos para a cama hoje, só hoje", "leio em ti como num livro aberto".
O vento cresce, os círculos tornam-se mais apertados, as palavras uivam-me nos tímpanos. Para onde quer que me volte só vejo azul, branco, e olhos, peles, seios, ventres, pernas de todas as cores e formas. As vagas transformam-se em mãos - algumas apertam-me o pescoço e dão-me murros, outras afagam-me carinhosamente a pele, o sexo, o cabelo. Não posso afogar-me, mesmo que queira: o mar, as palavras, as mãos impedir-me-iam.
"Tudo isto devia transformar-se em dor", penso. "É fiável, coerente, conhecida. Não muda de um segundo para outro, não se contradiz, sabe o que quer: magoar-me. E consegue".
As mãos que me afagam e acariciam também, apercebo-me súbita, magoadamente.
O vento cai, as palavras apagam-se. As mãos retiram-se. Nada fica.
16.10.09
Serviço Público - Blogs
Hoje descobri um blog de desenho cuja visita aconselho fortemente; chama-se Sem interesse nenhum e é muito, muito interessante.
Rosa
a rosa é o tigre
a rosa é o tigre preso
a meio do voo
e o olhar da surpresa
preso no olhar do tigre
súbito susto
Manuel Gusmão in "dois sóis, a rosa / a arquitectura do mundo", Ed. Caminho, 1990
18 por cento
"18 por cento dos portugueses são pobres e a situação tende a piorar", diz o Público. Não acredito: um país com 18% de pobres não teria construído não sei quantos estádios inúteis (cf. post anterior).
As demolições dos fiascos
Começa a falar-se na demolição do estádio de futebol de Aveiro, esse monumental monumento a monumentais erros e à monumental incompetência de alguns dos nossos governantes.
O mesmo quer agora ampliar o Terminal de Contentores de Alcântara, fazer TGVs, etc. O problema é que demolir um estádio é relativamente fácil; mas demolir a ampliação do Terminal de Contentores e uma linha de TGV será muito mais difícil. E os custos não são os mesmos, naturalmente - nem os das obras nem os das desobras.
PS - as minhas desculpas por citar um pasquim.
O mesmo quer agora ampliar o Terminal de Contentores de Alcântara, fazer TGVs, etc. O problema é que demolir um estádio é relativamente fácil; mas demolir a ampliação do Terminal de Contentores e uma linha de TGV será muito mais difícil. E os custos não são os mesmos, naturalmente - nem os das obras nem os das desobras.
PS - as minhas desculpas por citar um pasquim.
PPS - é possível, claro, que esteja a aplicar, à escala que convém a um país rico como o nosso, aquela máxima de "cavar buracos e tapá-los logo a seguir" enunciada por um eminente economista.
(Via Câmara de Comuns)
(Via Câmara de Comuns)
Dores, espectáculo, exibição
Um gajo sai à rua em dias de tristeza daqueles que o fazem perguntar-se se ainda terá uma molécula, uma que seja, de serotonina no cérebro; sorri, responde a quem lhe fala "sim, tudo bem, obrigado, fuck you too". Sai com uma perna partida e explica sem problemas de maior que a pista e quê e tal e coisa e ski e assim e não se sente pior por isso. Já que o vejam na cama a torcer-se de dores, ou a vomitar como se se quisesse virar do avesso é coisa que lhe repugna.
A dor dá-se mal com a exposição.
A dor dá-se mal com a exposição.
15.10.09
Simplificação - II
Há palavras que só são suportáveis quando ditas no segundo grau. "Tadinho" é uma das minhas favoritas. Aplico-a muitas vezes a mim próprio, e gosto de a ouvir. No outro dia disseram-me que há quem a use no primeiro grau, mas eu não acredito.
Acordo linguístico, simplificação
Poder-se-á dizer de uma abominável dor abdominal que ela é abdominável?
Diálogos imaginários
- Tu es méchante.
- Oui, je sais. Je suis méchante, gratuitement méchante. Et ça me fait un plaisir fou.
- C'est pour ça que je t'aime.
- Oui, je sais. Je suis méchante, gratuitement méchante. Et ça me fait un plaisir fou.
- C'est pour ça que je t'aime.
A doença infantil do comunismo
Os economistas têm por hábito explicar que os baixos salários em Portugal são consequência da nossa baixa produtividade.
Recentemente encontrei uma pessoa que trabalha numa empresa de importação e exportação. No princípio do ano os patrões (quatro) explicaram, coitados, afogados em mágoa, tristeza e em dor de alma aos empregados que não lhes seria possível aumentar os salários. A crise. A maldita, terrível, avassaladora crise.
Isto foi em Janeiro. Desde aí compraram, cada um deles, um apartamento de luxo no Parque das nações, um automóvel topo de gama e fizeram, os pobres, viagens à neve, aos resorts, à praia, ao shopping (o da 5ª avenida, não o de Almada). Ora eu que não sou economista pergunto-me, perplexo e coberto de vergonha pela minha ignorância: se a produtividade dos funcionários fosse assim tão baixa eles (os donos da empresa) poderiam ter comprado isto tudo? Mesmo assumindo que os preços dos ditos bens baixaram, claro.
Recentemente encontrei uma pessoa que trabalha numa empresa de importação e exportação. No princípio do ano os patrões (quatro) explicaram, coitados, afogados em mágoa, tristeza e em dor de alma aos empregados que não lhes seria possível aumentar os salários. A crise. A maldita, terrível, avassaladora crise.
Isto foi em Janeiro. Desde aí compraram, cada um deles, um apartamento de luxo no Parque das nações, um automóvel topo de gama e fizeram, os pobres, viagens à neve, aos resorts, à praia, ao shopping (o da 5ª avenida, não o de Almada). Ora eu que não sou economista pergunto-me, perplexo e coberto de vergonha pela minha ignorância: se a produtividade dos funcionários fosse assim tão baixa eles (os donos da empresa) poderiam ter comprado isto tudo? Mesmo assumindo que os preços dos ditos bens baixaram, claro.
Pergunto-me também se os nossos sindicatos não fizeram um erro terrível ao sacrificar salários decentes à segurança de emprego. É que assim de repente parece-me que nem uma, nem outra. Os salários baixos de certa forma compreendiam-se numa altura em que a economia rural podia suprir algumas das necessidades dos operários urbanos, mas hoje? E da segurança vamos ver o que resta, quando o desemprego começar a subir - o que de passagem seja dito já devia ter acontecido há muito tempo.
Organizem-se
E se não o conseguirem fazer sozinhos, a minha amiga Helena Espinha dá uma preciosa ajuda. A Helena - cujo talento para a organização fica amplamente demonstrado quando ela nos conta o que faz num dia (quando nos descreve uma das suas semanas, então, entramos no domínio da vertigem) - é uma personal organizer (para além de mãe, trabalhadora, voluntária numa agência de apoio aos sem-abrigo e mais duzentas e cinquenta coisas).
Vai a casa das pessoas hiper-ocupadas e trata-lhes da agenda, da correspondência, dos impostos, dos pagamentos, da gestão da senhora da limpeza, do jardineiro, electricista, canalizador - enfim, de todas as tarefas que as pessoas com um emprego absorvente não podem fazer, ou podem, mas mal.
Só isto já é muito, claro. Mas a Helena fá-lo com um sorriso e um olhar meigo (e uma mão de ferro, mas essa não se vê. Está dentro de uma luva de veludo).
Se alguém precisar de a contactar: lubango60@gmail.com.
Vai a casa das pessoas hiper-ocupadas e trata-lhes da agenda, da correspondência, dos impostos, dos pagamentos, da gestão da senhora da limpeza, do jardineiro, electricista, canalizador - enfim, de todas as tarefas que as pessoas com um emprego absorvente não podem fazer, ou podem, mas mal.
Só isto já é muito, claro. Mas a Helena fá-lo com um sorriso e um olhar meigo (e uma mão de ferro, mas essa não se vê. Está dentro de uma luva de veludo).
Se alguém precisar de a contactar: lubango60@gmail.com.
14.10.09
Diálogos possíveis
- Assim não chegas a lado nenhum.
- Não quero chegar a lado nenhum; bastava-me chegar onde estou.
- Não quero chegar a lado nenhum; bastava-me chegar onde estou.
Memorandum
Nunca é demais recordar certas pessoas que ser-se mentecapto e cobarde (conjunta ou separadamente) e mostrá-lo é um direito; mas não é, de modo algum, um dever.
13.10.09
TGV
Uma pessoa chega à estação do Areeiro porque quer ir para a Póvoa de Sta. Iria (Póvoa, daqui em diante). Vai à bilheteira e pede "um bilhete para a Póvoa, se faz favor". A jovem senhora do outro lado responde-lhe que "esta bilheteira é da Fertagus e os comboios para a Póvoa são da CP. Tem que ir à bilheteira ali do lado". A pessoa recua e confirma que efectivamente aquela bilheteira é da Fertagus e a do lado é da CP. Ligeiramente perplexa a pessoa vai à bilheteira do lado. "Porque raio", pergunta-se, "não vendem as bilheteiras bilhetes uma da outra"?
Na bilheteira do lado o senhor informa-a, delicadamente, que aquela bilheteira não vende bilhetes para a Póvoa. "Tem que ir à máquina ali ao lado". A pessoa está agora pouco mais do que perplexa - tinha dado uma larga margem para apanhar o comboio e chegar a horas à reunião, mas a continuar assim a margem não daria para muito.
A máquina do lado é uma máquina "das novas", que só aceita os novos bilhetes da CP, verdes, magnéticos e - lembra-se de um texto que leu recentemente no Público - "de cantos arredondados". "Que sorte", pensa a pessoa, "tenho um desses cartões".
Mas o cartão da pessoa já tem uma viagem de outra linha onde ela costuma viajar e não há maneira de carregar o trajecto Areeiro - Póvoa. A pessoa vai à bilheteira, onde o senhor lhe tenta vender um novo cartão [o qual custa mais 50 cêntimos do que o preço normal do bilhete]. A pessoa lembra-se da interminável quantidade de cartões verdes, novos, magnéticos que tem em casa e recusa. Pergunta "há máquinas das antigas?"
"Se estiverem a funcionar são ali". O funcionário é cortês, calmo, bem-educado. A pessoa dirige-se à máquina e compra o bilhete, antigo, "de papel", na terminologia habitual dos funcionários da companhia. Já tinha perguntado, na bilheteira, "a que horas e em que linha é o comboio para a Póvoa, se faz favor?" "Na linha 1 tem um comboio às nove e nove (as horas são aproximadas, mas os intervalos correctos) e na 3 outro às nove e dezassete".
São nove e cinco. A pessoa corre para a linha 1. Não há a mais pequena menção ao comboio das nove e nove nos monitores (de resto poucos e mal colocados, mas isso por agora é irrelevante). Às nove e nove a pessoa pergunta a um funcionário da segurança (o único que se vê) sobre os comboios para a Póvoa. "A maior parte deles são na linha 3. Na linha 1 também há, mas menos".
A pessoa vai para a linha 3. São nove e doze, ou treze. Não há a mais pequena menção do comboio das nove e dezassete em qualquer dos monitores, etc. A pessoa telefona para o número de telefone que está num dos monitores ("Informações"). As horas que lhe dão são as mesmas das do funcionário da bilheteira "mas não sabemos em que linha vai entrar o comboio. Isso só na estação". Continua a não haver um único funcionário da CP à vista.
Às nove e 17 a pessoa ouve um anúncio nos altifalantes: vai entrar na linha 1 um comboio para a Póvoa. A pessoa (com, chegou a altura de o dizer, uma bicicleta pela mão) corre - isto é, desce e sobe escadas rolantes - para a linha 1. Apanha o comboio in extremis e chega a horas à reunião. Pensa "ainda bem que dei uma larga margem".
No dia seguinte a mesma pessoa tem que apanhar um comboio da CP na linha que habitualmente frequenta. O trajecto que tem no cartão verde, magnético e novo (o qual, de raspão seja dito, não lhe permite passar no Metro sem tirar da carteira o respectivo cartão, em tudo menos nos cantos igual ao da CP) não lhe permite carregar o trajecto que vai fazer: o trajecto que tem no cartão é diferente, e para carregar trajectos diferentes dos que estão no cartão é necessário "ou um cartão novo (isto é, mais 50 cêntimos), ou que esse esteja a zeros". A pessoa vai para as máquinas dos bilhetes "em papel".
É esta companhia que quer fazer um TGV.
Na bilheteira do lado o senhor informa-a, delicadamente, que aquela bilheteira não vende bilhetes para a Póvoa. "Tem que ir à máquina ali ao lado". A pessoa está agora pouco mais do que perplexa - tinha dado uma larga margem para apanhar o comboio e chegar a horas à reunião, mas a continuar assim a margem não daria para muito.
A máquina do lado é uma máquina "das novas", que só aceita os novos bilhetes da CP, verdes, magnéticos e - lembra-se de um texto que leu recentemente no Público - "de cantos arredondados". "Que sorte", pensa a pessoa, "tenho um desses cartões".
Mas o cartão da pessoa já tem uma viagem de outra linha onde ela costuma viajar e não há maneira de carregar o trajecto Areeiro - Póvoa. A pessoa vai à bilheteira, onde o senhor lhe tenta vender um novo cartão [o qual custa mais 50 cêntimos do que o preço normal do bilhete]. A pessoa lembra-se da interminável quantidade de cartões verdes, novos, magnéticos que tem em casa e recusa. Pergunta "há máquinas das antigas?"
"Se estiverem a funcionar são ali". O funcionário é cortês, calmo, bem-educado. A pessoa dirige-se à máquina e compra o bilhete, antigo, "de papel", na terminologia habitual dos funcionários da companhia. Já tinha perguntado, na bilheteira, "a que horas e em que linha é o comboio para a Póvoa, se faz favor?" "Na linha 1 tem um comboio às nove e nove (as horas são aproximadas, mas os intervalos correctos) e na 3 outro às nove e dezassete".
São nove e cinco. A pessoa corre para a linha 1. Não há a mais pequena menção ao comboio das nove e nove nos monitores (de resto poucos e mal colocados, mas isso por agora é irrelevante). Às nove e nove a pessoa pergunta a um funcionário da segurança (o único que se vê) sobre os comboios para a Póvoa. "A maior parte deles são na linha 3. Na linha 1 também há, mas menos".
A pessoa vai para a linha 3. São nove e doze, ou treze. Não há a mais pequena menção do comboio das nove e dezassete em qualquer dos monitores, etc. A pessoa telefona para o número de telefone que está num dos monitores ("Informações"). As horas que lhe dão são as mesmas das do funcionário da bilheteira "mas não sabemos em que linha vai entrar o comboio. Isso só na estação". Continua a não haver um único funcionário da CP à vista.
Às nove e 17 a pessoa ouve um anúncio nos altifalantes: vai entrar na linha 1 um comboio para a Póvoa. A pessoa (com, chegou a altura de o dizer, uma bicicleta pela mão) corre - isto é, desce e sobe escadas rolantes - para a linha 1. Apanha o comboio in extremis e chega a horas à reunião. Pensa "ainda bem que dei uma larga margem".
No dia seguinte a mesma pessoa tem que apanhar um comboio da CP na linha que habitualmente frequenta. O trajecto que tem no cartão verde, magnético e novo (o qual, de raspão seja dito, não lhe permite passar no Metro sem tirar da carteira o respectivo cartão, em tudo menos nos cantos igual ao da CP) não lhe permite carregar o trajecto que vai fazer: o trajecto que tem no cartão é diferente, e para carregar trajectos diferentes dos que estão no cartão é necessário "ou um cartão novo (isto é, mais 50 cêntimos), ou que esse esteja a zeros". A pessoa vai para as máquinas dos bilhetes "em papel".
É esta companhia que quer fazer um TGV.
Noite
Dedos ameaçadores, enormes, metálicos, a apontar obsessivamente para baixo: são escadas. Frias, baças, negras. Não se podem subir. Tremo. A noite rasga-se, aos bocadinhos. Alguém os lança pela janela, como se fossem confetti, migalhas de pão preto, cacos de uma esfera de vidro opaco que se partiu. Tremo. Um comboio desce as escadas, estremecendo como se tivesse malária. O fumo é feito dos pedaços da noite. Crianças agitam os braços à janela; não sei se dizem adeus ou pedem socorro.
No cais um velho pensativo está sentado num guindaste; um miúdo olha-o, sorridente. Não se encontrarão, nunca.
Escadas metálicas. Tenho frio. A noite rasga-se em bocados cada vez mais pequenos, como uma folha de jornal que se dobra em dois, quatro, oito, dezasseis, trinta e duas, sessenta e quatro. As letras escapam-se, com gargalhadas trocistas, ruidosas. As luzes apagam-se umas a seguir às outras. Nada fica, senão um cheiro repelente a pesadelo. É um deus louco, frenético, violento, caótico que rasga a noite e nos rasga em bocados pequenos, mudos.
As escadas dançam um French cancan. Oui cancan. O teu sorriso reaparece. "Estou melhor", dizes-me. A leste a manhã pesponta-se.
Acordo: dormes ao meu lado, tranquilamente, os seios em descanso, uma das pernas dobrada, a pele quente e macia como a paz, ou a solidão depois de um pesadelo.
No cais um velho pensativo está sentado num guindaste; um miúdo olha-o, sorridente. Não se encontrarão, nunca.
Escadas metálicas. Tenho frio. A noite rasga-se em bocados cada vez mais pequenos, como uma folha de jornal que se dobra em dois, quatro, oito, dezasseis, trinta e duas, sessenta e quatro. As letras escapam-se, com gargalhadas trocistas, ruidosas. As luzes apagam-se umas a seguir às outras. Nada fica, senão um cheiro repelente a pesadelo. É um deus louco, frenético, violento, caótico que rasga a noite e nos rasga em bocados pequenos, mudos.
As escadas dançam um French cancan. Oui cancan. O teu sorriso reaparece. "Estou melhor", dizes-me. A leste a manhã pesponta-se.
Acordo: dormes ao meu lado, tranquilamente, os seios em descanso, uma das pernas dobrada, a pele quente e macia como a paz, ou a solidão depois de um pesadelo.
Alfabeto, tu, fonte
Sonhei que o alfabeto se desfez. Tive que refazer um, só para ti. Encontrar as letras das palavras de que és feita, que te fazem. Os meus dedos tacteavam no quarto de súbito escuro. Encontrei "medo", claro. Foi a primeira. Algumas eram fáceis: alegria, leveza, brisa, música. Outras não: custam, as palavras, quando tu és as letras, todas as letras.
As poucos aparecem: inevitável; brilho; carícia. O alfabeto recompõe-se: ágil; tensa; sensual. Reescrevo-te como és, como te vejo, como as palavras te fazem. O mundo refaz-se. Sou parte desse mundo - eu e as letras que te escrevi e com as quais tu fazes o mundo: as palavras, como os homens, têm que voltar à nascente, às origens. À fonte.
As poucos aparecem: inevitável; brilho; carícia. O alfabeto recompõe-se: ágil; tensa; sensual. Reescrevo-te como és, como te vejo, como as palavras te fazem. O mundo refaz-se. Sou parte desse mundo - eu e as letras que te escrevi e com as quais tu fazes o mundo: as palavras, como os homens, têm que voltar à nascente, às origens. À fonte.
Vitórias, lutas
António Costa ganhou Lisboa com maioria absoluta. O movimento contra a ampliação do terminal de contentores de Alcântara - que, lembro aos mais distraídos, recolheu 18,000 assinaturas em dois ou três dias - tem trabalho pela frente. O Terminal não é do âmbito exclusivo da Câmara - se bem fosse, naturalmente, importante que o Governo não se pudesse apoiar nela - e Sócrates, que eu me recorde, teve uma maioria relativa.
Aquele terminal não é um problema exclusivamente lisboeta - Sines tem muito mais condições para um terminal deep water do que Lisboa.
Não é decerto por acaso que a Mota-Engil foi a empresa de obras públicas que maior crescimento registou na Europa - na Europa, repito. Aquela ampliação é um seguro - caro, prejudicial e absurdo - da vida pós-política de alguns dos nossos governantes. Devemos continuar a lutar contra ela.
Aquele terminal não é um problema exclusivamente lisboeta - Sines tem muito mais condições para um terminal deep water do que Lisboa.
Não é decerto por acaso que a Mota-Engil foi a empresa de obras públicas que maior crescimento registou na Europa - na Europa, repito. Aquela ampliação é um seguro - caro, prejudicial e absurdo - da vida pós-política de alguns dos nossos governantes. Devemos continuar a lutar contra ela.
10.10.09
Olhos
A primeira coisa que vi dela foram os olhos: castanhos, muito grandes; estávamos sentados e voltados para poente, no fim de uma daquelas tardes de Outono em que o sol parece lamentar-se por ter de se ir embora, para Sul. A luz entrava-lhe por aqueles dois poços enormes, iluminava-os por dentro e voltava a sair, ainda mais forte, ainda mais densa. Como se fosse ela a iluminar o fim do dia.
9.10.09
Nobel
Será que os prémios Nobel da Física, Medicina e Química são atribuídos como os da Literatura e Paz?
8.10.09
Deserto
Um deserto é uma forma particularmente violenta de obsessão.
Um deserto deve atravessar-se lentamente, como se se tivesse uma perna partida. Aliás: se um acidente não ocorre logo nos primeiros dias deve provocar-se um. Pode partir-se uma perna com uma pedra, um pau ou entalando-a em qualquer buraco adequado.
Só com uma perna partida se deve atravessar o deserto: não é feito para a rapidez. Aliás, essa é uma das formas de identificar quem está correctamente no deserto e quem não.
O deserto é uma longa via crucis onde as peles se queimam e as mãos se gastam à força de esgaravatar na areia ressequida. Alimenta-se de e a si próprio, tal como quem o atravessa, que não deve senão contar com os seus miseráveis recursos. E é essencialmente solitário; só se entra nele e só dele se sai.
O deserto tem vários sentidos, vários espíritos. O sucesso da travessia – isto é: chegar vivo ao outro lado – requer que se oiçam e se compreendam todos. Para isso há por vezes que dar voltas sobre voltas, passos sobre passos, que se ande para trás quando se pensa avançar e que se veja, por vezes, o sol nascer no lado oposto àquele em que o esperávamos.
Pouco importa: a travessia do deserto deve ser lenta, longa e dar tempo aos ossos de se partirem e solidificarem, de novo. Só assim se perceberão a luz e os sentidos que nele se ocultam. Só assim se poderá com propriedade dizer “eu estive no deserto”. Ou melhor ainda: “eu sou o deserto. Atravessem-me”.
Um deserto deve atravessar-se lentamente, como se se tivesse uma perna partida. Aliás: se um acidente não ocorre logo nos primeiros dias deve provocar-se um. Pode partir-se uma perna com uma pedra, um pau ou entalando-a em qualquer buraco adequado.
Só com uma perna partida se deve atravessar o deserto: não é feito para a rapidez. Aliás, essa é uma das formas de identificar quem está correctamente no deserto e quem não.
O deserto é uma longa via crucis onde as peles se queimam e as mãos se gastam à força de esgaravatar na areia ressequida. Alimenta-se de e a si próprio, tal como quem o atravessa, que não deve senão contar com os seus miseráveis recursos. E é essencialmente solitário; só se entra nele e só dele se sai.
O deserto tem vários sentidos, vários espíritos. O sucesso da travessia – isto é: chegar vivo ao outro lado – requer que se oiçam e se compreendam todos. Para isso há por vezes que dar voltas sobre voltas, passos sobre passos, que se ande para trás quando se pensa avançar e que se veja, por vezes, o sol nascer no lado oposto àquele em que o esperávamos.
Pouco importa: a travessia do deserto deve ser lenta, longa e dar tempo aos ossos de se partirem e solidificarem, de novo. Só assim se perceberão a luz e os sentidos que nele se ocultam. Só assim se poderá com propriedade dizer “eu estive no deserto”. Ou melhor ainda: “eu sou o deserto. Atravessem-me”.
Preguiça
A maioria dos artistas póstumos são-no por preguiça, suponho. (Alguns até se suicidam, para ver se ficam póstumos mais depressa).
Coisas da vida
A miúda da mercearia (mais ou menos 25 anos) arranjou um namorado (aproximadamente 30). A minha vizinha (48 certos) também. É o mesmo; pergunto-me quanto tempo vão levar a descobrir.
Foi rápido: pouco mais de seis meses. Mas encontraram um modus vivendi aceitável: quando a merceeira traz as compras da semana a casa da vizinha traz o namorado também. E na semana seguinte leva-o. Assim, estão as duas seguras de que ele não encontra mais nenhuma.
Foi rápido: pouco mais de seis meses. Mas encontraram um modus vivendi aceitável: quando a merceeira traz as compras da semana a casa da vizinha traz o namorado também. E na semana seguinte leva-o. Assim, estão as duas seguras de que ele não encontra mais nenhuma.
Betinhos e trogloditas
Nos restaurantes e nas escadas é o homem que vai à frente. Eu sei. Isto faz de mim um betinho? Não te preocupes: tenho milhares de provas de que sou um troglodita. E não há, que eu saiba, trogloditas betinhos.
Porque será?
"Câmara de Lisboa pagou meio milhão a restaurantes do Parque Mayer sem esperar por decisão do juiz"
Deve ser para ajudar a sanear as contas da CML.
Deve ser para ajudar a sanear as contas da CML.
7.10.09
Silêncios, fantasmas, esperança
Nada ficava por dizer, naqueles dias: esgotava as poucas palavras que lhe restavam da noite em correspondências inúteis com fantasmas de vidas anteriores, e futuras. Para o presente ficavam os silêncios, vários: o do medo, o da esperança, o do espanto.
Não gostava de equilíbrios: via-se como uma encarnação do funâmbulo de Klee, no qual o equilíbrio é um milagre à espera de um sopro para se desfazer. Talvez o sopro fosse o de uma palavra, tua; ou o de um silêncio, teu; ou de um olhar, uma pele, um par de seios que, oferecidos, fariam tudo desabar; e recusados também.
Procurava na solidão uma companhia perene, mas só encontrava o inverso: solidão nas companhias perenes. Tentava - tentou, a vida inteira - substituir "companhia" por "palavras"; falhou: não há palavras perenes. Há, é certo, palavras quase sem fim, como insónia, noite, medo, opacidade, obscuridade, tristeza, tristeza. Mas mesmo essas acabam, quando acaba quem as diz, ou - mais exactamente - quem as ouve.
Ficava-lhe a música: Hidegarde von Bingen, por exemplo.
Não gostava de equilíbrios: via-se como uma encarnação do funâmbulo de Klee, no qual o equilíbrio é um milagre à espera de um sopro para se desfazer. Talvez o sopro fosse o de uma palavra, tua; ou o de um silêncio, teu; ou de um olhar, uma pele, um par de seios que, oferecidos, fariam tudo desabar; e recusados também.
Procurava na solidão uma companhia perene, mas só encontrava o inverso: solidão nas companhias perenes. Tentava - tentou, a vida inteira - substituir "companhia" por "palavras"; falhou: não há palavras perenes. Há, é certo, palavras quase sem fim, como insónia, noite, medo, opacidade, obscuridade, tristeza, tristeza. Mas mesmo essas acabam, quando acaba quem as diz, ou - mais exactamente - quem as ouve.
Ficava-lhe a música: Hidegarde von Bingen, por exemplo.
Mas nem ela era suficiente: nesses dias só um espesso manto de silêncio o protegia dos fantasmas, um espesso e gelatinoso manto de silêncio. Amanhã seria outro dia, e com sorte outro silêncio. Com sorte.
Se não, haverá outros silêncios aos quais recorrer? Seria a morte um silêncio? Não: é ensurdecedora, como um solo de Cecil Taylor, como um dia a olhar para ti à beira mar. Tu e o mar: como a vida.
Nada fica por dizer: as palavras esgotam-se; ou repetem-se, o que é a mesma coisa. Protegido da vida, da morte, das palavras, de ti por um espesso e gelatinoso manto de silêncio procuro um refúgio nas entranhas do futuro: é a isso que se chama esperança.
Diga Não aos contentores da Liscont
Divulguem este video. Voltemos as costas a Costa, e não ao Tejo.
6.10.09
Até que enfim
Ouvi recentemente o Dr. Ernâni Lopes defender o turismo náutico como sendo um dos vectores estratégicos de desenvolvimento de Portugal. Até que enfim! Ando a dizer a mesma coisa há 30 anos. Suponho que tenho menos audiência do que ele.
Bicicletas
Ando a hesitar - tinha pensado mudar-me para Gondomar antes das eleições por causa dos bilhetes para o Tony Carreiras; mas agora que em Lisboa o Dr. António Costa oferece bicicletas, talvez valha a pena ficar por cá.
Adenda: Infelizmente a imagem não mostra a marca das ditas cujas; serão das boas, ou das pechisbeque?
Adenda: Infelizmente a imagem não mostra a marca das ditas cujas; serão das boas, ou das pechisbeque?
Os metros do sítio
O Don Vivo voltou à sua condição de Sitemeter et al. free zone. Já não há traquers - passe o neologismo, elegante.
5.10.09
Pudicícias - III
O Dr. António Costa, por exemplo, é provavelmente mais honesto do que Isaltino de Morais; mas é incontestável e incomensurávelmente pior presidente de Câmara. Além disso, gosta de nos tomar - nós, aqueles que podemos (mas não devemos) elegê-lo - por parvos. Cinco alturas de contentores é altura habitual da maioria dos equipamentos de desembarque de contentores (apesar de já haver alguns que chegam a seis).
Pudicícias - II
Em recente conversa sobre Isaltino de Morais, defendi que o homem ia ser eleito porque é um bom presidente da Câmara. Ponto final.
O poder democrático é um contrato implícito: "nós elegemos-te para o cargo que queres, e em contrapartida tu dás-nos aquilo que nós queremos. E desde que tenhamos aquilo que queremos, trata de ti". O que não é grave. Muito mais o é quando as pessoas são eleitas e não cumprem a sua parte do acordo. ("Trata de ti" deve ser visto em sentido lato: sou daqueles que acredita que há pessoas que vão para a política por sentido de dever; estão a "tratar delas").
Se, na troca, o eleito se abotoar com um bocadinho mais do que estava previsto, e der também aos eleitores mais do que aquilo a que eles estão habituados, é perfeitamente normal e compreensível que estes o reelejam. Pena é que a bitola dos eleitores esteja tão baixa - mas disso não se pode acusar Isaltino de Morais.
(Por isso penso que a democracia directa é o melhor dos sistemas políticos, mas isso é outra história).
O poder democrático é um contrato implícito: "nós elegemos-te para o cargo que queres, e em contrapartida tu dás-nos aquilo que nós queremos. E desde que tenhamos aquilo que queremos, trata de ti". O que não é grave. Muito mais o é quando as pessoas são eleitas e não cumprem a sua parte do acordo. ("Trata de ti" deve ser visto em sentido lato: sou daqueles que acredita que há pessoas que vão para a política por sentido de dever; estão a "tratar delas").
Se, na troca, o eleito se abotoar com um bocadinho mais do que estava previsto, e der também aos eleitores mais do que aquilo a que eles estão habituados, é perfeitamente normal e compreensível que estes o reelejam. Pena é que a bitola dos eleitores esteja tão baixa - mas disso não se pode acusar Isaltino de Morais.
(Por isso penso que a democracia directa é o melhor dos sistemas políticos, mas isso é outra história).
Pudicícias
Em certos meios, dizer-se que se apoia Pedro Santana Lopes é como anunciar-se, numa assembleia de mórmons, que vamos casar com uma artista de cabaret.
4.10.09
Chanson d'amour
Não se deixem enganar pelo sotaque do apresentador. Esta versão é das melhores que conheço.
Manhattan Transfer, "Chanson d'amour":
(Para não falar dos colarinhos dos senhores que cantam).
De bicicleta
De Sintra à Ericeira são 22,5 km, que percorri em pouco mais de uma hora, para lá; e muito mais, para cá - um almoço, um jantar e um engano depois. O trajecto é feio: constantemente semi-urbano, com casas que parecem querer fazer parte de um concurso para a casa mais bimba do ano e se esmeraram pela vitória, restaurantes em que o "Frango assado no churrasco" tem uma predominância injustificada numa região onde tão bem se come; muito trânsito, constante. Não deve haver três quilómetros planos seguidos, mas os desníveis são ligeiros.
O ponto forte são as gloriosas descidas para a Foz do Lizandro e as subidas, muito menos penosas do que temia. E a magnífica companhia - mas isso são contas de outro rosário.
O ponto forte são as gloriosas descidas para a Foz do Lizandro e as subidas, muito menos penosas do que temia. E a magnífica companhia - mas isso são contas de outro rosário.
2.10.09
1.10.09
A força dos fracos - II
E depois, como se tudo isso não bastasse, bebem Grants, ponto e vírgula, num balão. "Com gelo, por favor".
Dor (cont. e fim)
Espessa, densa como o alcatrão derretido que vias porem nas ruas, nos anos de eleições autárquicas;
(Da qual só sais quando te fartas, e começas a ouvir a palavra "Chega!" percorrer-te a pele - um ou dois pares de mãos dos quais te começas a lembrar, pouco a pouco; uma pele que te sorri e te espera, ou acolhe; um ventre - a vida).
E que depois disso é totalmente inútil, senão para ser percorrido por automóveis barulhentos, cuspido por velhos tísicos e mijado por cães impacientes.
(Da qual só sais quando te fartas, e começas a ouvir a palavra "Chega!" percorrer-te a pele - um ou dois pares de mãos dos quais te começas a lembrar, pouco a pouco; uma pele que te sorri e te espera, ou acolhe; um ventre - a vida).
E que depois disso é totalmente inútil, senão para ser percorrido por automóveis barulhentos, cuspido por velhos tísicos e mijado por cães impacientes.
Olissipoterapia
Dias sofridos, magoados, agitados, inquietos. Ao almoço esqueço-me de qualquer coisa no restaurante; agora, doutra na loja de bicicletas. Esqueço-me de tudo, de todos: dias em que o universo se transforma numa bola de dor, de impotência, se apaga e apaga tudo.
Regresso ao rio, aos telhados, à luz do fim do dia, a esta esplanada com vista para a cidade, às antenas de televisão - rídiculas e ubíquas grades de uma prisão invisível na qual cada lar português esconde a sua indigência, o seu individualismo. No beiral de um dos telhados um pombo coça-se frenético; um pouco mais acima um outro procura comida; num banco, uma senhora em contra-luz faz a mesma coisa que eu: olha para a cidade e escreve-se, se calhar. Pouco a pouco as coisas recompõem-se; recompor-se-ão. Penso em ti. A dor de cabeça recede, tal como a maré, que agora está a baixar (vejo-o pelo cacilheiro que atravessa, todo de lado) e vai, irremediavelmente, mudar. Daqui a pouco o sofrimento não será mais do que a irreconhecível folha de uma árvore de onde pendem milhares; daqui a pouco, a luz será luz e as antenas antenas; daqui a pouco Lisboa terá agido, de novo; como se fosse, sempre, a primeira vez.
"Time to be positive" diz o cartaz que vejo quando saio. "Too late, meu caro".
Regresso ao rio, aos telhados, à luz do fim do dia, a esta esplanada com vista para a cidade, às antenas de televisão - rídiculas e ubíquas grades de uma prisão invisível na qual cada lar português esconde a sua indigência, o seu individualismo. No beiral de um dos telhados um pombo coça-se frenético; um pouco mais acima um outro procura comida; num banco, uma senhora em contra-luz faz a mesma coisa que eu: olha para a cidade e escreve-se, se calhar. Pouco a pouco as coisas recompõem-se; recompor-se-ão. Penso em ti. A dor de cabeça recede, tal como a maré, que agora está a baixar (vejo-o pelo cacilheiro que atravessa, todo de lado) e vai, irremediavelmente, mudar. Daqui a pouco o sofrimento não será mais do que a irreconhecível folha de uma árvore de onde pendem milhares; daqui a pouco, a luz será luz e as antenas antenas; daqui a pouco Lisboa terá agido, de novo; como se fosse, sempre, a primeira vez.
"Time to be positive" diz o cartaz que vejo quando saio. "Too late, meu caro".
Todos por Lisboa
...já que António Costa está contra. Mais vale votar em quem disse "não" claramente à ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara, que é - embora muitos disso não se apercebam - a maior ameaça que pesa sobre a nossa cidade actualmente. É um gigantesco, inútil, feio e custoso passo atrás; é adaptar Lisboa ao que foi, e não ao que vai ser. É o equivalente (guardadas, claro, as devidas proporções) a dizer que a revolução industrial é que é, e que a sociedade digital pode esperar. É uma desgraça que vai condicionar a cidade para as próximas gerações. É recusar, e recusar-lhes, o futuro, e abrir em grande as portas do passado. O terminal de contentores já devia ter sido feito há 20 anos na margem Sul. Não foi. Não é agora, ali. Não se corrige um erro com outro erro.
O melhor é sermos, realmente, todos por Lisboa. E não votar em António Costa.
A força dos fracos
Há posts que parece foram escritos por encomenda.
PS com dedicatória - é bom poder dizer que conheci recentemente uma excepção.
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