29.8.21
Diário de Bordos - Vilamoura, Algarve, Portugal, 29-08-2021
28.8.21
Contra os "direitos"
Esta coisa dos "direitos" (aspas porque cito) intriga-me. Sera que nas sociedades canibais a alimentação é um direito? Se assumirmos que não há direitos sem deveres associados (assumpção defensável, todas as moedas têm duas faces), qual o dever associado à alimentação? Comer saudável? Se é o Estado que paga a saúde e quem paga manda, todos temos a obrigação de viver saudavelmente? Vamos começar a contar os copos de vinho que bebemos ou as colheres de açúcar que se põe no café? Quantos cafés posso beber por dia? E rum, posso beber? Porque é que o Estado me obriga a usar cinto de segurança num carro e não me obriga a fazer vinte minutos de exercício diário? Está mal.
27.8.21
Posso escolher?
(Declaração de interesses: tenho uma paixão insana por Sevilha, cidade que conheço muito parcialmente.)
O aeroporto de Sevilha é uma cópia em negativo dos de Madrid ou Barcelona. Parece que aterrámos na casa do guarda-linhas. Em quinze minutos estava cá fora, merdices sanitárias fintadas - sem grandes manhas, há que dizê-lo.
Meto-me num táxi, peço-lhe para me deixar na Macarena e - resumindo imenso - como agora um Adobe absolutamente magnífico, peixe frito com uma interminável lista de ingredientes, seja Deus louvado. Vou ao balcão pedir outra tapa, o homem pergunta-me "confia em mim, señor?" respondo sim, claro. O marido da cozinheira é português de Leiria, digo-lhe que tenho lá família, pergunto-me se é de Sevilha que gosto se é do sitio onde estou, decido: é dos dois.
A camisa branca de linho que pus há bocadinho dá mostras desta batalha. Já tenho uma condecoração.
A segunda tapa está tão boa como a primeira. É de carne, porco, podre de boa. Carrillada, diz ele e eu acredito. Tudo isto por quatorze euros e vinte cêntimos, quantia com a qual em Palma teria direito a olhar para um prato vazio.
Agora, sentado na camioneta que me levará a Faro, pergunto-me porque não viajo mais vezes como turista, como toda a gente?
A resposta é simples: não sou toda a gente. E complicada: não quero ser toda a gente. Não sei é se se pode escolher, mas isso é outra história.
Questões de gosto
Talvez devesse começar por dizer que não acho Portugal um país particularmente bonito. Com a excepção total dos Açores e parcialmente da Madeira não há uma região (das que eu conheça) da qual se possa dizer que é linda de morrer (ou viver, se preferirem).
Mas ninguém gosta de uma mulher só porque é bonita, pois não?
Dos voos à TAP num ápice
Se o amor faz milagres este foi um deles. A tal ponto que o escrevo no ar, os aviões agora têm net. Só foi perigoso enquanto as companhias não aprenderam a facturar as ligações. Aprenderam depressa e agora não há voo que não a tenha. Ou quase: na TAP ainda não vi.
A Alitalia foi para o galheiro. Há muito tempo que voava nas bordinhas, como a TAP. Para sorte dos italianos, eles não têm um Pedro Nuno. Ou azar, vá saber-se. Assistir ao descalabro de um país sentado no camarote da direcção, servido e impune deve ser muito bom. Para quem usufrui das benesses, claro. Para quem as paga é menos agradável.
Compreensão lenta
Não sei se isto é trágico se cómico, se dramático ou irrelevante: foi preciso chegar aos (quase) sessenta e quatro anos e a um vírus fraudulento para perceber porque nunca fui um "deles".
Não tem nada a ver com arrogância, é o contrário, uma constatação. Olhar para esta gente de açaimo na boca ajuda-me a perceber muito do que está para trás.
Partida, re-partida
O aeroporto de Palma está como sempre o conheci (e odiei). Hoje não odeio, amo. Cheio de gente, bichas até ao céu, a única diferença é a máscara, que todos insistem em usar. Levo a minha pelo queixo e ninguém me chateia (até agora). O chauffeur do táxi que me trouxe (e enganou no preço, uns míseros três euros) acredita na utilidade da coisa mas não a exige. Tem muitos clientes sem ela, explica.
Estou-me nas tintas. A verdade é que raramente uso máscara, quando a uso é pelo queixo ou pelo nariz e é cada vez mais raro chatearem-me. Posso estar enganado, estou muitas vezes, mas esta palhaçada vai arder como palha.
25.8.21
Só, só
Vive onde sempre viveu: fora do tempo, fora da estrada. Àquele, tem-no contado, como todos; desta, sabe que o levará aonde leva todos. Não é diferente, limita-se a ser só, só.
Maldade
Uma das coisas que esta pandemia exacerbou foi a maldade: a facilidade com que se privaram velhos e crianças de afectos e das coisas que mais sentido fazem para as suas vidas é de tirar o fôlego a qualquer pessoa decente. Tirar a vida para a salvar tor tornou-se prática corrente, aceite. Deixar de tratar doentes graves por causa da Covid... A maldade tornou-se o novo cimento social. Quanto mais maldoso, mais social, mais altruísta, mais preocupado com outrém.
Vacinar crianças é simplesmente um prolongamento deste modelo de sociedade.
24.8.21
Diário de Bordos - Cala Covas, Menorca, Baleares, Espanha, 24-08-2021
Pus a máquina a trabalhar para carregar as baterias. (Abro aqui um parêntesis dedicado aos meus amigos maquinistas da marinha mercante: a máquina é de costura, eu sei. Mas é o que há e não haveria lugar para mais. Mesmo assim faz demasiado barulho. Fecha parêntesis.) Nas Baleares no Verão noventa por cento da navegação é a motor. Os outros dez por cento são abençoados, como a hora e meia de largo de hoje de manhã. O bote é uma desgraça, os panos mais parecem trapos (e a grande é de enrolar) e mesmo assim viemos até cala Covas a sete / oito nós, com 15 nós de vento e mar chão. Nas Caraíbas a proporção inverte-se, mas se se quer mar de senhoras não há vento: a sota das ilhas não há sombra de alísios. São dez e quase meia da noite e a frota dos bárbaros do dia já foi embora há muito tempo. Daqui a dez minutos apago a maquininha e a calma voltará.
[Não foram dez. Foram zero. Farto do barulho.]
Somos uma dúzia de botes a passar aqui a noite, dos quais só uma pequena minoria passou um cabo a terra. Tinha um preparado, decidi que não precisaria dele mas quando o ia buscar apareceu um cata e propus-lhes o cabo. Aceitaram e como agradecimento o senhor (é um casal) veio trazer-me uma garrafa de vinho. Português, de Setúbal e nada mau. Vinha da não sei quantos, fica para depois.
O barulho das hordas do dia é-me insuportável. A boçalidade, já aqui algures a mencionei, é uma praga; mas não é específica dos tempos presentes. Aposto que os velhos da Idade da Pedra desprezavam os jovens que utilizavam o bronze. O conservadorismo não só é inato, mas também se acentua com a idade. (Isto dito, não passam de um bando de selvagens sem sombra de gosto, decência ou educação.)
O harém provocou tudo o que a cala tinha de machos jovens e acabou num cata de franceses. E ainda há quem não goste dos francos! Estou-lhes mais grato do que um tóxicomano ao dealer que lhe traz a dose da manhã.
Já o estado em que me deixaram o PAMPERO é desolador. Oito advogadas de vinte e sete anos, colegas de escola, barulhentas, guinchonas, provocadoras, incultas, desarrumadas e negligentes com a loiça e a limpeza. Amanhã sai ordem de arrumação: só saio daqui com o bote limpo. Não sou o skipper indicado para esta faixa etária, nada a fazer.
Extremos
Recebo uma notícia devastadora numa das calas mais bonitas das Baleares; moralista convicto e militante, sou acusado de promiscuidade; passo duas semanas a revoltar-me com a boçalidade e e e... e nada, não há nada que a contradiga, à boçalidade. A modernidade sempre foi boçal aos olhos dos velhos (que fizeram a modernidade, convém não esquecer e a deixam aos mais novos).
Se alguém quiser saber o que é uma vida de extremos é bem vindo.
23.8.21
O Sol e a vida
Diário de bordos - Calas S'Aigua Dolça, Mitjana e Galdana, Menorca, Baleares, Espanha, 23-08-2021
Estes diários de bordos têm andado escassos. Excesso de bordos e falta de diários, é o que é. Não me lembrava de quão absorvente isto é. Chego à metade da terceira semana de charter cansado mas não exausto como temia. Tive sorte com os passageiros, talvez seja por isso: uma família francesa, judia semi-praticante; outra espanhola, com duas raparigas giras e pirosas (uma é assessora jurídica do Vox e de burra não tem nada); e agora estas oito, que não sei o que fazem, são simpáticas e bonitas, o que não estraga nada.
Pontos a desenvolver: a variedade. Três semanas, três barcos, três grupos (se bem isto tenha que se lhe diga. Se variedade implica comer o que comi na semana passada e o barco desta, talvez seja dispensável). A capacidade camaleónica de nos fundirmos no meio continuando a ser nós. A falta nenhuma que o álcool me faz quando no mar. A dúvida: quero fazer isto o resto da minha vida (e respectiva certeza: não)? Outra dúvida e outra certeza: sei (ou seja, posso) viver sem isto? É uma sorte e ou uma maldição? Outra dúvida: como conciliar isto com a escrita? Está visto que pelo menos em charter são incompatíveis e preciso tanto de um como da outra. (Isto sendo o mar e a náutica de recreio, no sentido lato, o que talvez abra uma nesgazinha de porta: a) deixar de fazer «isto» profissionalmente e continuar a fazê-lo como hobby; b) continuar a fazer «isto», mas num trabalho em terra, desde que não tenha de entrar às nove e sair às cinco.)
Passei a noite em S'Aigua Dolça, onde cheguei à meia-noite. Vou para Macarella [não vim. Fui para cala Mitjana e agora estou em cala Galdana, mesmo ao lado]. De todos os achados, este foi o melhor: explicar aos clientes que arrancarmos de madrugada para eles acordarem num sítio diferente daquele em que adormeceram é uma boa ideia. Povoa-me a pior parte do dia (entre o meu despertar e o deles) e dá-lhes mais tempo de gozo na água.[Acabei por não sair de madrugada, mas o princípio mantém-se válido.]
Boa (ou estúpida?) acção do dia? Chego a cala Mitjana, que é pequena e apertada e para fundear sei que vou parar perto - muito perto - de um daqueles botes de aluguer sem carta, tripulado por quatro pujantes balzaquianas (no sentido original do termo, trintas) das quais uma estava nua, duas de mamas ao léu e outra vestida - isto foi o que vi muito de relance, não garanto a exactidão da contabilidade mas garanto a daquilo que vimos, o meu cérebro e eu. Ficámos ainda mais perto do que originalmente pensei, consequência sem dúvida de algum erro de leitura da sonda. Pensei, de tão perto estava, que as jovens semi-desnudas senhoras - entretanto já não havia nenhuma nua, o que me leva a concluir pelo engano na minha contabilidade original (ou então por um tão súbito como pouco provável ataque de pudicícia da senhora) levantariam ferro e iriam fundear mais longe. Não aconteceu tal. Ficaram ali, a meros dois metros de mim e do meu harém, como agora lhes chamo. O qual harém decidiu tomar o pequeno-almoço, etc.
A certa altura, incomodado por não poder olhar para lado nenhum - para onde quer que virasse a cara só as via a elas, as balzaquianas - resolvi recolher cinco metros de corrente, mas não serviu de nada. Continuavam ao meu lado. Resignei-me, claro. Já fizera tudo o que podia, que podia mais fazer? Nada e simultaneamente as senhoras decidiram levantar ferro. E não é que este estava entalado numa rocha e tive de mergulhar (oito metros) para o libertar?
Fica a pergunta: fiz o bem ou fui burro? É que mesmo não querendo, volta e meia não conseguia impedir o olhar de as ver, mesmo sem querer, insisto. (O harém de bordo não lhes segue o exemplo, nem o delas nem o meu, que me pus a andar de fato de banho com a expressa, explícita e solicitada autorização delas. Passam a vida completamente vestidas de bikini completo, oito miúdas que ainda não chegaram, pelo menos a maioria delas, àquele tão mágico quanto literário patamar.)
Pessoalmente, por mim, na minha óptica, do meu ponto de vista, na minha perspectiva acho que fiz bem. Além disso, e não despiciendamente, o gesto mereceu-me uma standing ovation do meu harém, muito mais importante para mim do que quatro balzaquianas semi-nuas num bote de aluguer.
Mais um ponto a desenvolver: a frustração de ter de andar sempre a motor, mesmo quando está um vento magnífico. Os passageiros querem ir a um sítio, não querem navegar e muito menos ficar num porto à espera do vento (admitidamente, aqui teriam de esperar muitos dias). Outra frustração: o meu P. não estar pronto. Quero um barco feito para velejar, não estes chaços feitos para imitar residências secundárias.
Fácil?
Oito cachopas dos seus trinta anos, todas elas giras e bem feitinhas de corpo e de cabeça como passageiras.
E ainda há quem diga que esta é uma vida fácil.
Sugestão
Aqueles cremes, pomadas, loções e outras matérias diversas com que as senhoras cobrem a cara funcionam mesmo?
A única maneira de o saber seria fazerem o que fazemos nos navios quando queremos comparar duas tintas anti-vegetativas: metade das obras vivas com uma, a outra metade com a outra. No caso dos cremes, seria: metade do rosto com eles metade sem, durante um ano.
Duvido muito que haja voluntárias, mas aqui fica a sugestão, prenhe de boa vontade.
Quase definição
Ser marinheiro não é só saber que um barco fala e perceber o que ele diz, mas essa é uma grande parte.
11.8.21
Calma
Não há um peido de ar (traduzo do francês, por se acaso: pas un pêt d'air), pus a máquina a trabalhar para carregar as baterias, estou feliz. Por onde começar esta série desordenada? Onde terminá-la?
Serviço público
Colonia de Sant Jordi: Sa Pamboleria tem as melhores Hierbas secas do planeta, quiçá da galáxia.
Procura-se
O optimismo do século dezanove perdeu-se nos gulags e nos Auschwitz do século vinte. Urge reencontrá-lo, fazer as pazes com a ciência, esquecer as Gretas e os milenarismos, reencontrar o prazer do risco, a excitação da descoberta, o prazer, o prazer simples de acreditar que amanhã será melhor do que hoje.
Tem sido, ao longo dos milénios e salvas algumas excepções. Não continuemos esta onde agora nos afundamos.
3.8.21
Diário de Bordos - Mas Nou, Catalunha, Espanha, 03-08-2021
Para além da fatiga e do teste, o catalão também contribuiu para alegrar o meu estado de espírito de hoje: não vi uma única palavra escrita em espanhol. Uma comunidade que troca a língua dos melhores escritores que a humanidade já produziu por este gargarejar infecto não merece tristezas. Não merece nada, aliás. O menu no restaurante onde fomos almoçar (soberbamente, é imprescindível dizê-lo) está em catalão. Peço à rapariga uma versão espanhola (percebo perfeitamente o que lá está escrito, mas gosto de espalhar a minha alegria de viver): «está no código QR.» «Também não falo isso.» «Então não temos.» Só alegria. Felizmente o excelente rodovalho no forno conseguiu amenizá-la e deu-me energia para ir até à clínica sem ver os idiotas mascarados.
A hipótese de ir à Sardenha com o M. voltou para cima da mesa. Ainda bem: não gosto de portas mal fechadas.