31.10.21

Manatee: (mais um) auto-retrato - este é sucinto, valha-nos isso

Não é muito sofisticado,  eu sei - nada em mim o é - mas gosto de tascas. Não lhes vejo qualquer propósito salvífico, note-se. Raras são as tascas onde se come bem, mas derivado à minha natureza rustre e troglodita é nelas que me sinto bem.

Quando se juntam a qualidade da comida mai-la qualidade de tasca sinto-me no paraíso. Um almoço no Beira-Rio ou na Merendinha do Arco, para citar duas das minhas favoritas, deixa-me perto do êxtase. Comer é uma função básica, biológica,  fundamental (de fundamento), orgânica. Nos bons restaurantes a essas funções acresce a de ritual, com todas as obrigações que daí decorrem. Gosto do strip-tease gastronómico que é comer numa tasca. Gosto do strip-tease de tudo o que é primevo, de resto, seja comer seja beber, seja música. 

Na verdade, agora que penso nisto, os gostos não se excluem. Oiço os Carmina Burana ou os cânticos de Hildegarde von Bingen como oiço as Suites Inglesas de Bach, Thelonious Monk, Sonny Rollins ou Miles Davis, Salif Keita ou as Mandé Variations de Toumani Diabaté, as vozes divinas de Sandy Denny ou Maddy Prior, Nico ou Marianne Faithful. Como na tasca como no Gambrinus (infelizmente, com frequências muito díspares). 

Gosto do Outono como gosto de todas as outras estações do ano, de uma mulher em especial como de todas em geral (gostar é diferente de amar, fica a nota não vá o diabo tecê-las), da aguardente que o J. M. (abençoado sejas, J.) me ofereceu como do melhor whisky ou rum. 

Sou um panhonha da vida, é o que é. Um panhonha feliz e sortudo, mas panhonha. Como as lontras do aquário ou os manatee da Florida. Se me virem reagir energicamente a qualquer coisa é porque me enganei. Não sou muito sofisticado, eu sei - mas sou o que me calhou na rifa genética e contra isso não posso fazer nada senão ouvir os Carmina Burana e beber a aguardente do J., abençoado sejam eles e ela. 

29.10.21

Diário de Bordos - Lisboa, 29-10-2021

A questão - única - é saber se não escrevo por ter chegado ao meu momento "fim da história". Será que a partir de agora os meus dias não serão mais do que uma simples réplica daqueles que já vivi? Tudo igual, excepto os pormenores? Hoje fui ao médico, ao hospital de Cascais. Não é a primeira vez. Fui de carro e chateei-me com os condutores que se metem à minha frente nas filas, aproveitando-se do facto de eu não gostar de andar a cheirar o rabo aos outros. Fiz uma carne guisada que não ficou mal e bebi vinho de Foz Coa, de que cada vez gosto mais. Avancei umas páginas - poucas - no livro que estou a ler, uma coisa apaixonante  sugerida pelo V. P.

Pois, isto é muito bonito, mas que tem de novo? Quantas vezes fiz cada uma destas coisas? Talvez seja isto a velhice.

Espero que não. Se for, é verdadeiramente horrível. 

20.10.21

Diário de Bordos - Lisboa, Portugal, 20-10-2021

Hoje fiz uma coisa que não fazia há muito tempo: comprei um pasquim e sentei-me a lê-lo num café. O pasquim chama-se Público, ficou conhecido por ter «despublicado» um artigo de opinião. Tem por missão promover as opções do governo (se este for socialista, claro. Se for do Pedro Passos Coelho a missão muda para defender o PS). Não vale muito a pena comentar as «notícias»: não são notícias, são publicidade (paga, verdade seja dita). Mas enfim, passei um bom momento e creio que estou pronto para mais dez anos sem gastar dinheiro em feuilles de chou. (Mentira: amanhã compro o outro quotidiano de Lisboa, para comparar as raivas que cada um deles me proporciona.)

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Almoço rápido no Pirata, renascido das cinzas. Agora é na Morais Soares. Lisboa é um incêndio que não pára de se reavivar.

Adenda para quem gosta de pica-pau: o do Pirata é estupendo.

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Aviso à navegação: o Continente Bom Dia da Carlos Mardel diz que tem seiscentos metros quadrados. Não pedi para ver a planta: a dois minutos de bicicleta há um Auchan onde ninguém põe em dúvida a desnecessidade total do uso de açaimos por pessoas civilizadas.

Os nomes das cores do amor

Não sei que nome dar ao amor fruto do sonho risonho de um deus feliz e livre. Sei as cores: rosa, minha canoa; azul, meu azul tão céu e tão mar; laranja, do Sol que nasce a leste e ateia o dia em chamas. 

A cor do amor é todas as cores, o nome do amor és tu.

13.10.21

Imagem, palavra, equivalência

Uma imagem vale mil palavras? Sem dúvida. (Enfim, isto discute-se. Compare-se os filmes com os livros e ver-se-á que não é assim tão líquido. Mas passemos.)

Mas tal como numa imagem o que conta é o que ficou de fora, num texto o que interessa é o que não foi dito. Aí já não sei se  equivalência se mantém.

Mil não-vistos valem um não-dito? Duvido. 

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 13-10-2021

Ontem passei à frente da Coop (uma das duas cadeias suíças, identitárias, de supermercados) às sete e dez da noite. Estava fechada. Não ia fazer compras, vinha de casa de um amigo, mas percebi que uma das coisas que sempre impossibilitou a minha vida em Genebra é esta discrepância entre horários internos e horários externos. É como eu dançar com uma senhora que dança extremamente bem: não há maneira de acertar os passos. A verdade é que me adaptei à maioria das coisas, mesmo aos preços, eterno tema de piadas familiares - não é a Suíça que é cara, eu é que sou um teso. Mas este permanente desajuste de relógios era - ainda é - difícil. 

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Fui fazer um teste antígeno (mais um...). Foi de manhã, por volta das onze e meia. Acabo neste preciso instante (seis da tarde) de receber uma mensagem do médecin cantonal (a DGS do cantão). O laboratório onde fiz o teste enviou-lhes o resultado. É de certeza obrigatório. Esta é outra das coisas que sempre detestei. A eficácia da burocracia é um pau de dois bicos. Se tivesse de escolher, prefiriria uma burocracia inapta, incompetente, anedótica como a portuguesa. Dou-me melhor com o caos do que com a ordem, apesar de esta ser bastante atractiva, esporadicamente. Felizmente posso alterná-las. E acrescentar-lhes a total ausência dos dois que é o mar. Alternadamente.

Mentira: o mar não é a ausência de ordem e de caos. É o seu (deles) ponto de confluência, onde se encontram, onde jogam às escondidas, onde fingem ser cada um deles o outro, um loop contínuo que depois se desfaz em terra, como um aguaceiro: de um lado a ordem, do outro o caos. No mar tudo é ordem e tudo é caos.

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Último jantar desta estadia em Genebra (solitário, S. foi trabalhar a França): carne guisada «à casa» (sinónimo de mixórdia super-picante), absinto, Leonard Cohen (sinónimo de melancolia), impaciência, saudades e uma Syrah «biológica e sem sulfitos», a seu tempo. Ao desenraizamento vou acrescentar uma categoria: o dilaceramento. (Exercício inútil: não saberia viver sem ele. Sem eles.)

E ao caos um território: as emoções.

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Projecto para o futuro: ler e escrever. «L'intendance suivra.»

9.10.21

Ou de como a poesia encontra sempre uma forma de se esgueirar para as nossas vidas

«com aquele punch inicial (Dom Pedro de Purtugall partindosse delle o corpo)

sei que vou ter uma velhice assombrada
provavelmente como a velhice das gentes
que percorreram muitos caminhos
ou como aqueles que não saindo de si
voaram séculos à volta de um quarto fechado

sei que vou ter uma velhice assombrada
por dias intensos vindos da juventude
e pelo momento eterno em que fiquei
suspenso na
mellencolia
perdido entre os cães do indefinido

anos inteiros de apatia sangrenta
noites de folguedo estenuante e gago
sobreviveram a esses rápidos tempos
de
Iffante de mui grande rancura
coração dilacerado
arrancado do peito e mostrado ao povo
como um molusco vermelho e latejant


Rosa Oliveira, in Desvio-me da bala que chega todos os dias, ed. não (edições)

Ziguezagueante

Foi numa noite assim que morri. Calma, silenciosa, delicadamente passei de uma noite para a seguinte. A noite é um arranha-céus com centenas de andares. A morte é simplesmente um deles. Nada de sustos. Morrer não passa de apanhar o elevador para o topo do prédio. Podes escolher um com música ambiente, groom fardado a rigor, se quiseres. Ou ir a pé, pelas escadas. Eu apanhei um elevador que funcionava mal, sempre aos solavancos, para cima e para baixo. Fiz uma parte do trajecto a pé, subi escadas até não poder mais. Finalmente cheguei. A morte é parca recompensa para a vida. A única coisa que conta é o trajecto até aqui acima. Tenta torná-lo o mais interessante possível,  o mais ziguezagueante. 

8.10.21

Diálogos de bistrot

- Bebes demais.
- Eu sei. Vá lá que ao menos bebo devagar. Esta garrafa levou três horas a ser bebida.
- Tu até o devagar fazes depressa.
- Verdade. Saio de ti devagar, por exemplo.
- Vais levar anos.
- E chamas depressa a isso?
- Chamo. 
...
...
- Esta música é de fazer chorar um bloco de basalto.
- É a adequada. O basalto é como tu, só chora por dentro.
- Viste-me chorar muitas vezes.
- Porque te conheço. Se não te conhecesse, pensaria que tinhas uma alergia qualquer nos olhos.
- Chorar é uma alergia.
- Palavras. É a única coisa de ti que dás a ver. Para o resto, é preciso conhecer-te.
- Tu conheces-me?
- O suficiente para te ver as lágrimas. Já é muito. Demais.
- Há lágrimas bonitas e lágrimas feias, mas não sei como as distinguir.
- ...
- Aprende a não as misturar.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 08-10-2021

S. e H. foram a França, usufruir de um prémio qualquer que uma delas ganhou; T. tem a sua vida de sexta-feira e eu estou sozinho em casa, a ouvir na rádio um concerto de Angélique Ionatos (Delémont, 2012, para quem possa interessar) e a beber um tinto bastante bom, Grenache e Syrah das Côte du Rhône, seis euros a botelha na Coop (idem). Saí para ir fazer fotografias ao Jet d'eau. Ficaram péssimas: esta porra destas máquinas digitais são difíceis de amestrar. Gosto do imediatismo do digital mas detesto a complicação. Ainda vou acabar a comprar uma máquina analógica. O que sonho com a F2...

(Além de que preciso de um tripé, mas isso é outra história.)

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Há em Genebra uma série de fornecedores de falsos certificados de vacinação. Quatro acabam de ser apanhados. Não quero entrar nesse jogo porque é aceitá-lo, de certa forma. Sou contra esta palhaçada. Falsificar um certificado é ceder-lhe. Continuarei a beber os meus copos de vinho nas esplanadas e a não ir ao teatro ou ao cinema. Esta palermice já foi longe de mais. A solução não é falsificar certificados, é recusá-los.

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Não tarda estarei em Lisboa de novo. A minha geografia é uma geografia de solidões.

Tempestades, amores

É no mau tempo que se vêm os bons marinheiros, sem dúvida. E se julgam os amores: os que não resistem a uma tempestade não resistiriam à paz podre do bom tempo.

Roupa velha

Soller, 27-10-2021

Os grupos sucedem-se e não se parecem, os charters sucedem-se e são totalmente diferentes. Um dos passageiros partiu uma perna. Passei três horas no hospital de Palma (Soller não tem, o que se compreende porque por estrada está a trinta quilómetros de Palma) e do meu bem amado porto vi raspas. Raspas boas, é preciso dizê-lo: jantar no La Sal, rum no bar da marina. É penoso ver Soller vazio às onze da noite, mas forçoso é reconhecer que é melhor assim, depois da época. Ou antes, em Junho, mas o grupo aponta-me imediatamente um senão: a água está mais fria. Como raramente nado - e quando o faço é pouco, a maioria das vezes para ir ver as obras vivas dos botes - aceito o reparo mas acho-o pouco importante. 

(Isto é mentira - na Grécia começava o meu dia com um mergulho. Não há regra sem excepção, muito menos para quem, como eu, recusa liminarmente o fundamentalismo.)

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A época chega ao fim. Não me posso queixar. Ou posso, mas de mim mas essa é inútil, de tão antiga.

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Soller faz-me lembrar uma mini-Funchal mas mais charmosa, mais doce e nostálgica. 

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 08-10-2021

Sempre admirei os escritores que escrevem para debelar a tristeza. A mim, esse monstro, essa cadela preta, essa cabra ata-me os braços e cobre-me a mente com um manto de betão armado, intransponível como se aquilo fosse uma central nuclear em vias de explosão. Consolo-me pensando naqueles aparelhos que monitorizam a saúde dos pacientes no hospital e vemos nos filmes: enquanto a linha está aos altos e baixos há vida, quando fica uma linha recta é porque chegou a morte. Talvez pudesse, pergunto eu, era haver uma linha com altos e baixos, sim, mas menos baixos (e quiçá menos altos, mas desta parte não tenho a certeza), não? E com uma frequência mais espaçada? Talvez pudesse, mas agora é tarde. A minha vida vai continuar o que tem sido até aqui: um carrocel de emoções, uma montanha russa, um temporal no qual às vezes ponho de capa e outras corro com o tempo. 

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A bise desistiu. As previsões diziam que ficaria três dias, mas abandonou. Em consequência, o tempo voltou à cinzentez habitual. Ficou a temperatura: onze graus. Vou dar um passeio, ver como o cinzento invade tudo, como, de vez em quando, o amarelo / encarnado de uma árvore o vence, como estas ruas, cinzentas ou não, continuam para mim um dos pés do tripé. Daqui a uns tempos terei de cá voltar, receber o neto. Em Lisboa deixo um livro (dois em breve), aqui uma vida. Árvores, no mar, só conheço a árvore seca com que, por vezes, resistimos a um temporal. Foram raras as vezes que tive de tirar o pano todo de um mastro, mas já me aconteceu. Às vezes precisamos de nos despir para sobreviver, de nos quedarmos imóveis, enrolados como um caracol na sua casca.

Talvez. Eu vou desenrolar-me, pegar na máquina fotográfica e olhar para o que vejo. E para o que não se vê - é para isso também que serve a fotografia, não é? É.

6.10.21

Escrito em 1938, validado de novo em 2020

"Logo que o espírito aceita o carácter substancial de um fenómeno particular, deixa de haver qualquer escrúpulo em defender-se contra as metáforas."

"Um dos mais claros sintomas da sedução substancialista é a acumulação de adjectivos sobre um mesmo substantivo (...)"

(Gaston Bachelard, La formation de l'esprit scientifique, éd. Vrin, pág. 134, tradução minha.)

Vírus, veneno

S. e B. (a sua melhor amiga) falam na cozinha. Refugio-me na sala. Inevitavelmente, a conversa descambou no tema proibido. Sempre foi assim: B. vem aqui jantar cada primeira quarta-feira do mês. Quando aqui estou, deixo-as sós para falarem dos seus assuntos e venho para a sala.

Hoje não venho sozinho. Trouxe a maldita doença comigo. É muito mais do que um vírus, esta merda. É um veneno.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 06-10-2021

Hallelujah! Graças ao «pass digital» acabo de poupar vinte e cinco francos suíços (mais coisa menos coisa vinte e cinco euros): para ir ao teatro necessito dessa coisa. Pergunto-me se os comboios de putas cujos filhos andam por essas ruas a exigir tais coisas (ou a exigir que as exijam) também pedem passes, sejam eles digitais sejam de outra natureza. Voltei para casa amuado e frustrado, combinação de emoções que só serve para me alimentar a teimosia - um dos traços do meu carácter que dispensa alimentação - e decidido, mais do que nunca: ponham a cultura no cu. Não me vacinarei por uma peça de teatro, nem por um prato de lentilhas, nem por uma refeição no interior do restaurante. Não farei parte desta palhaçada até ter uma pistola apomtada à têmpora. Vão para a puta que os pariu, se conseguirem apanhar o comboio e nele encontrar as vossas mães.

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Não fossem estes episódicos episódios, diria que esta estadia em Genebra está a ser um sonho. Fiquei a saber que vou finalmente entrar no selecto clube dos avôs, passeio-me por estas ruas limpas, calmas, sem buzinadelas excessivas, com montras bonitas e mulheres idem, compro livros como se tivesse mais três vidas para ler tudo o que tenho para ler, bebo vinho bom a preços excessivos e vinho assim assim a preços razoáveis, falo, zango-me e rio-me com S., confirmamos ambos que nunca poderíamos voltar a viver juntos mas que estar juntos é um prazer sem fim, pergunto-me que nacionalidade escolheria se hoje tivesse de escolher entre a portuguesa e a suíça (a resposta é: nenhuma. Só não sou apátrida porque não sei como se faz para o ser e para viajar com esse estatuto e de qualquer forma o assunto não me interessa o suficiente para perder tempo com ele).

Durmo em Genebra como não consigo dormir em mais lado nenhum, apesar de dormir num sofá chato de fazer e desfazer. Isto deve ter um significado, mas não sei qual é. Sei que ontem descobri finalmente o tripé do meu futuro: Lisboa, Genebra e mar. Parece-me bastante sólido: amor numa, amizade e família noutra, eu no terceiro. A ver, como dizia o ceguinho (à mulher que era surda).

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Comprei a revista Egoïste. Não sei se tem alguma coisa a ver com a portuguesa. No formato não tem, isso é seguro. Na qualidade da fotografia não sei. Há muitos anos que não via fotografia deste nível. Vou ver os artigos, mas duvido muito que me interessem: um deles é sobre a palerma da miúda sueca. Não percebo. Todas as proporções guardadas, é o equivalente daqueles restaurantes que capricham na carne e servem batatas fritas congeladas.   

5.10.21

Epistemologia, rebanho e outras observações

Já dei uma volta ao mundo, navegando sempre para Oeste (e às vezes para Norte ou para Sul, mas comparativamente pouco). Também já tive Covid. Na altura - Fevereiro de 2020 - ainda se chamava gripe, mas dados os sintomas penso que posso crismá-la a posteriori com o nome da doença da moda. Ter dado a volta ao mundo e ter estado uma semana de cama com uma gripe devastadora não me fez ter a certeza de que a Terra é redonda - já a tinha antes -; igualmente, ter sobrevivido à Covid não me fez saber que é uma doença cuja perigosidade varia não só com a faixa etária, mas também com outros factores de risco - a obesidade, a depressão / bipolaridade, a diabetes, o estado cardio-vascular, etc. Isso soube-o depois, tal como só depois soube que o que tive foi Covid e não «gripe» (uso aspas em gripe porque penso que a Covid é uma forma dessa doença, tal como o paludismo cerebral é uma das formas do paludismo). Podemos aprender de várias formas. A experiência directa não é de longe o único caminho para o conhecimento - e nem sequer é suficiente, muitas vezes.

As pessoas que pensam que usar uma máscara, paralisar a economia de um país, õbedecer a regras absurdas, criar situações horríveis de solidão e sofrimento para os mais velhos e os mais novos, acabar com as liberdades mais elementares são medidas adequadas, eficazes e proporcionais ao perigo da Covid poderiam muito bem acreditar que a Terra é um cubo, se fossem suficientemente matraqueadas pelos media, pelos governos e depois pelos fabricantes de globos e cartas. Deitariam fora, como deitaram, séculos de conhecimento (no caso da virologia o plural é admitidamente exagerado: foi só um e meio), rendidas à histeria. 

Resisto à tentação de trocar o r de rendidas por um v: as pessoas não se venderam. Ofereceram-se. Deram-se de corpo e alma ao medo e à respectiva irracionalidade. O medo não é pessoal e intransmissível. É colectivo e transmissível. Um homem sozinho com medo não passa disso mesmo: um homem sozinho com medo. Junte-se-lhe uma multidão e ele tem um andaime por baixo, está protegido, não é o único. Tem razões para ter medo: a prova é o facto de não estar sozinho. Daqui vem o carácter proselitista do medo: precisa de números, de quantidade, de «toda a gente sabe». 

Os diferentes métodos que a epistemologia reconhece como válidos para a aquisição de conhecimento foram postos de lado: a infusão substitui-os a todos. Acreditar que a Terra é um cubo é validado não por observação, dedução ou teoria, mas pelo simples número de pessoas que acreditam que a Terra é um cubo.

Sou optimista e sei que isto não vai durar sempre, que não vai ser o «novo normal».  Mas sou pessimista e temo que a nossa civilização leve muito tempo a recuperar o ponto onde estava. A censura aos cientistas que não alinham na narrativa colectiva é mais do que inquietante. É aterradora.

4.10.21

Entre dois nadas

Tiraste-me as palavras todas da boca excepto uma, mulher, a do tracinho. Agora ando por aqui às aranhas, longe daquele te que se lhe segue como amor e vida se seguem, ou ontem e hoje. Uma vida sem palavras, sem te, sem nada senão o maldito hífen pendurado entre dois nadas.

Desperdício - 2

Há várias maneiras de desperdiçar um silêncio. Falar sem dizer nada é apenas uma delas; não ter nada para se dizer é outra.

3.10.21

Readaptação - Desperdício

Desperdiçar é sempre criticável, mas desperdiçar um silêncio é imperdoável.