20.6.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-06-2020

Aos sábados, a madrugada em Palma acaba às onze da manhã. Só a essa hora as ruas ganham um pouco de vida e muitas mulheres bonitas, felizes porque é sábado, estão frescas e se sabem atraentes. A Rambla cheira a flores de uma ponta à outra e eu pedalo vagarosamente, distraído pelo cheiro e pela vista. Daqui a pouco o Lo Divino faz uma experiência e quero lá estar, fazer número e volume.

Comecei o dia à procura de uma escotilha para o P., irritação que me enfurece mais do que me irrita: a que temos está boa, mas precisa de uma fechadura, uma porcaria de uma peça de plástico que deve custar dez cêntimos a produzir e uns vinte euros a comprar. É uma Vetus que provavelmente está a bordo desde os tempos da Arca de Noé e já não há fechaduras para ela. Solução, uma de três: a) fechar a escotilha, impermeabilizá-la e esquecê-la. Esta era a opção original, mas agora decidimos fazer ali o armário de molhados e quero ter ventilação; b) comprar uma escotilha nova. Revolta-me, tanto pelo preço como pela ideia de substituir uma peça  que está em condições por causa de uma merda de um componente ínfimo (mas essencial); c) procurar uma escotilha em segunda mão, por muito que me chateie pôr material em segunda mão num barco que está a fazer um refit  de dois anos. Chateia, mas foi o que fiz. Creio que tive sorte. Vamos a ver. Se encontrar uma fechadura suplente para esta, fica. Se não encontrar, vem a nova. Não me apetece ter este problema na Patagónia.

Nem na Patagónia nem em lado nenhum, de passagem seja dito. Neste momento a minha mente já tem um espaço reservado para «compra de sobressalentes», actividade que para mim epitomiza o conceito de «dissonância cognitiva»: comprar uma coisa da qual se espera não vir a precisar, sabendo que a) um dia precisaremos e b) não compraremos nunca aquela de que viremos a necessitar. Múltiplas dissonâncias.

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No Lo Divino a festa prossegue. Já disse ao R. que não me sirva mais boquerones mesmo que eu os peça, pedido esse ao qual ele acedeu e que desrespeitou mal lhe voltei a pedir mais uma dose. A música está bem engendrada. É da A., uma rapariga italiana que viveu muitos anos no Porto e em Lisboa e fala um português escorreito. Não me lembro o que estudou. Ela disse-me, mas a minha memória anda por baixo (isto é pescar auto-cumprimentos. Nunca foi alta. Aliás sempre fui acusado de não ligar nenhuma ao que me dizem. Acusação injusta, ça va de soi. Posso não as ouvir, ou não me lembrar do que me dizem, mas sinto-as muito melhor do que parece).

Sou um urso sensível, essa é que é essa. Um bloco de granito écorché vif, pobre de mim. Por isso sou obrigado a defender-me com Albariño no Lo Divino, «cheio» de miúdas giras (aspas porque o restaurante está vazio. Está toda a gente lá fora, miúdas insensíveis ao meu appeal incluídas). A música é a que se podia esperar, o que já é bastante bom. Podia ser pior.

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O vírus já me provocou três ou quatro desamiganços no Facebook. Não sei que pensar. A priori parece-me pouco mas depois pergunto-me se não será simplesmente consequência de má escolha dos «amigos». Se os tivesse bem escolhido de começo teriam sido muitos mais.

Este último acusa toda a gente por «não cumprimentar a mãe há quatro meses». Preferiu acreditar em tretas, mas a culpa é dos outros, claro. É sempre dos outros. Sem as nossas asneiras os outros seriam o paraíso, não o inferno. 

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