27.12.20

O corpo, numa planície, nu

O corpo deixa-te, pouco a pouco. Vai-se tudo embora: os olhos, os ouvidos, a força, a vontade... Tudo. Ficas nu. À tua volta uma planície sem fim, desolada, cheia de animais jovens e belos. Começas a embuscar os mais velhos, os mais feios do que tu, a acarinhá-los. São eles que te dão a ilusão de que viver nu no meio da planície é possível. Tu sabes que é uma ilusão, mas não te preocupas. Importante é mantê-la controlada, seres tu o mestre. A savana à tua volta é abominável. Dois blocos de basalto, surdos, ignaros de conceitos como bondade, empatia, compaixão guardam-lhe a entrada. Tu olhas, sozinho, vês passar o teu antigo corpo, já te pertenceu, já foi teu, mas se o puseres agora não te serve. O quadro é simples: amarelo, o negro dos basaltos, corpos de todas cores. Às vezes chove. A planície reverdece, a água chilreia nos canais, os animais deixam-te em paz, os basaltos transformam-se e adquirem uma aparência humana. Há vida, temporariamente. Depois esvai-se e leva-te mais um bocado do corpo. Tudo volta ao normal. Aprendes a respirar lentamente, a ver devagar, a ouvir em surdina, como se o teu interlocutor fosse uma vasta gama de silêncios. Silêncios de todas as cores, gama toda da ausência de sons. Os teus movimentos tornam-se bruscos, descontrolados, azedos. Não vês, não ouves. Resta-te a voz, o olfacto, o... não, o tacto também já foi. 

As cores, os sons, os corpos fundem-se numa lava escura e fria, colante. Enterras-te. O teu corpo transforma-se numa vasta gama de nadas. As palavras deixam de ter sentidos: são dispensáveis. 

Sem palavras e sem corpo és - finalmente - livre.

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