30.3.21

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 30-03-2021

Pouco a pouco, nos supermercados o verde substitui as outras cores todas. As pessoas querem «natureza» e é na secção «bio» das super-lojas que a vão procurar, embrulhada em todas as espécies de plástico - mas na caixa já só têm sacos de papel, o «verde» começa quando se vai para a rua. Antes disso, impera o transparente. Não se pode dar um passo sem dar com iogurtes «bio», leite «bio», carne «naturaplan», alfaces «sem glúten», fruta «sem fosfatos» - tudo embrulhado em plástico. Salva-se o peixe - é preciso perguntar e auscultar cada etiqueta cuidadosamente para se saber se a peça é de piscicultura se de pesca. Ninguém se preocupa com o salmão - um dos grandes crimes ecológicos da nossa época, sobretudo o da Noruega, esse país que se prepara para proibir nos fiordes embarcações a combustíveis fósseis. Não tenho nada contra a hipocrisia - sem ela não se viveria em sociedade e não haveria supermercados - nem contra os mitos - cada época tem os seus, grand bien leur fasse. Tenho contra a ignorância, contra a mentira, contra o holier than you que invadiu esta porra deste tempo, contra esta esquizofrenia dicotómica, maniqueísta.

Vá lá que a meio da tarde de uma terça-feira o supermercado está praticamente vazio, as caixeiras - quase todas obesas, até nisto o tempo apanhou a cidade desprevenida - aproveitam um erro qualquer do planeamento para olharem os tapetes vazios e de caminho as unhas ou os telefones portáteis. 

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Já o verde que vejo da janela é outro, melhor e menos invasivo: as árvores aproveitaram estes dias de calor para se vestirem de folhas novas. Por enquanto pequenas e poucas, mas mais e maiores a cada dia. Não tarda vem frio outra vez, mas as jovens folhas resistirão e depois disso as ruas, parques e jardins estarão cheias de verde e de flores. Genebra no Verão é menos austera - ou parece, pelo menos.

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As «coisas» avançam, as bolas continuam a girar no ar. Parece-me que descobri finalmente um porto onde amarrar os dias que faltam até tudo se transformar num pasto de insectos e bactérias variadas, castanho escuro ou negro. A ver. Um monitor do tamanho de uma piscina, filmes, livros, música, ervas na horta - se alguém um dia me tivesse dito que sonho ter ervas plantadas por mim ter-lhe-ia respondido para se ir tratar com urgência, eu que mal olho para uma planta a faço morrer, coitada - e viagens com bilhete de ida e volta, como toda a gente. 

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Enquanto espero, apareceu no horizonte uma luz fraquinha de um transporte para o Canadá. Está muito longe e é mesmo fraca, mas estou tão sedento de mar que é suficiente para me fazer sonhar.

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Entretanto, vou cozinhando, dormindo e fazendo muito menos do que queria fazer. «Aproveita». diz-me S., cujos dias estão cheios como um ovo. Gostaria de aproveitar muito mais, sim, mas ainda não estou capaz. A encosta está cada vez menos íngreme e verde, a pedra cada vez menos pesada e a Lua ontem estava fascinante, de tão branca e brilhante. O resto virá por acréscimo, degrau a degrau.

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A demência continua, em todo o lado. Tento não pensar nela, mas depois ocorre-me que representa muito provavelmente noventa e nove por cento do peso da pedra e amaldiçoo-a de novo: que chovam asteróides sobre os malditos que nos condenam a esta sub-vida, como se fosse um substituto de vida, como se valesse a pena não-viver para sobreviver, como se um ano de palhaçada não fosse um ano a mais, um ano demais, um ano subtraído a uma vida traída. Que morram esmagados pela sua demência, exalto-me no sonho, como se os asteróides fossem teleguiados e não obra do acaso, o grande - o verdadeiro - mestre disto tudo.

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A vida não me deve nada, mas eu devo-lhe muito. Deve ser a única assimetria de que sou claramente ganhador.  

2 comentários:

  1. Luís, acompanho o seu blog; você escreve muito bem. Gosto de escrever também, você me serve de inspiração. Um abraço.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.