10.9.21

Uma cama

Andava a patinar pela vida fora como um paraplégico a quem alguém pusera patins nos pés e empurrara para a pista. Levantava os braços a pedir ajuda e os seus gestos desesperados e descoordenados eram interpretados como forma de se equilibrar: ningém acorria. Assim atravessou o ring de uma ponta à outra, sem aprender a elegância, caindo muitas vezes, mas chegando de pé, que era o que lhe interessava. Chegar de pé. Morrer de pé a olhar para a frente, como se para lá do horizonte ainda houvesse mundo. Como se lhe interessasse o que há para lá do horizonte. «Nem para cá, quanto mais para lá», dizia entre dois desequilibranços. Verdade: nada lhe interessava mais do que não cair, aqui e agora. Antes e depois eram automática e sistemáticamente relegados para o saco do lixo dos dias, um saco assíncrono e talvez por isso sempre cheio.Os marxistas, recordou, chamam-lhe «o saco do lixo da história», mas para isso é preciso acreditar na história. Acreditava, mas não lhe atribuía importância suficiente para o distrair das suas desajeitadas tentativas de não cair. «Imagina uma piscina na qual nadas sem direcção. A piscina é infinita: só tem dois limites - o princípio e o fim. Uma vez dentro dela, fazes o que queres, nadas para onde queres. Só há uma condição: não podes voltar atrás. Não podes voltar a de onde saltaste para a água. Podes tentar todos os estilos: crawl, bruços, costas, mariposa; podes mesmo inventar um estilo só teu. Podes fazer tudo o que queres menos voltar atrás. A piscina só tem uma direcção. Tem uma corrente e nadar contra ela é impossível. Podes divagar, podes perder-te, podes mesmo imaginar que não queres nadar e que vais à rola. Podes imaginar curvas - sinusóides. de Gauss, ciclóides, epiciclóides, parábolas, espirais, trissectrizes de MacLaurin (obrigado, Google). Podes imaginar um mundo plano, em forma de pera, de maçã oun de ananás. Podes imaginar o mundo como o queres - ele nunca deixará de ser o que é: o  ring de patinagem no qual alguém te deixou e no qual nadas ao sabor da corrente, tentando traçar curvas com nomes esquisitos enquanto ouves música com ritmos, melodias e harmonias esquisitas.

A vida não passa disso: um gigantesco desencontro onde por vezes e por acaso encontramos. Encontramos o quê? 

Um corpo, uma mente e uma cama onde juntá-los.

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