9.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-05-2023

Chego tarde e exausto ao mercado, já a fechar. Um mercado na hora do fecho é como uma mulher bonita depois do amor. A mistura de cansaço e satisfação - a que por vezes se dá o nome de saciedade - é irresistível.

Hoje percebi porque é que andar de bicicleta na cidade é mais repousante do que o automóvel. Os outros carros, bicicletas, peões, motas, scooters, trotinetas, camiões de entregas, patins, semáforos, sentidos proibidos, tão fáceis de evitar quando se pedala mal nos vêem ao volante de um carro saltam-nos para cima com a voracidade de tigres esfomeados, garras de fora e bocarra aberta para nos morder e amolgar o ego e a chapa. Amanhã entrego-o sem um bocadinho de luz traseira. A ver quanto é que o Egidio me vai cobrar por aquilo.

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Encontrei finalmente uma senhora bonita, eficaz e não muito cara para me fazer uma limpeza no P. Quase preciso de óculos escuros lá dentro, de tão brilhante ficou. Sexta começa um dos principais trabalhos que há para fazer e amanhã vou tratar da pintura da retranca, um dos poucos trabalhos de estética que conseguirei fazer. Não fazer os acabamentos como deve ser é como sair à rua com sapatos diferentes mas muito mais enraivecedor.

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Venho à Cantina transferir as fotografias da máquina - o cabo apareceu, provavelmente tão impressionado como eu pela beleza da senhora (jovem senhora) colombiana - e aproveito para beber um rum e um café. A meio misturo Coca-Cola (enfim, Pepsi). Deve ser o segundo beta dos últimos dez anos - não deve haver melhor medida para o cansaço.

Está a passar um jogo de futebol na televisão e como de costume há urros e suspiros. Um dia lerei os livros do Morris e do outro que o D. me sugere cada vez que falo de futebol no FB. É pouco provável que mude de opinião, mas pelo menos ficarei a compreender qualquer coisa.

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Sexta-feira tenho a reunião com o potencial curador. Se um dia alguém me dissesse que um dia teria um curador numa exposição minha responderia de certeza com um olhar trocista e uma observação do tipo «Sim, isso e uma exposição no MoMA». Bem, o curador já tenho e para a exposição a galeria onde ela terá lugar já excede bastante as expectativas. Ainda por cima o plano é lançar o terceiro livro ao mesmo tempo - não é bem dois em um, é tudo em um. O universo em um.

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Continuo a detestar deitar no lixo coisas ainda utilizáveis. Acho que nem nómada como deve ser sou. Suponho que seja o mesmo mecanismo que me leva a nunca deixar de amar as mulheres que já amei.

(Não é: a «culpa» é delas e das qualidades delas, não dos meus defeitos.)

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Viver com uma dor crónica é uma experiência interessante. É quase apaixonante ver o muro que a dor interpõe entre nós e o mundo, entre nós e os outros. É como se de repente olhássemos para tudo através de um espelho daqueles que deixa ver e tudo o que se vê nos reenvia a nós próprios. Nunca estamos ausentes da paisagem. Nem de nós, de resto. 

Hoje decidi voltar a tomar analgésicos, ver se me esqueço de que existo.

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Cheguei a bordo. Chove, fui afastar as adriças do mastro e esparramo-me finalmente no cansaço, no silêncio e no tamborilar da chuva. Parece contraditório mas não é. 

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