31.7.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-07-2023

Penso que todos nós temos períodos destes: tudo parece correr mal; ou pelo menos nada corre bem a cem por cento. Tudo está mais ou menos, umas coisas mais outras menos, umas muito mais outras muito menos, umas muito outras nada. Um tipo não sabe para onde se voltar. Eu opto por voltar-me para as boas, sem esquecer as más, acreditar nos amanhãs que cantam sem esquecer os ontens que choram e os hoje que não sabem para que lado da barreira vão cair.

Se fosse ferroviário, diria que hoje pus o «meu» P. nos carris, que o BP continua descarrilado, que o olho esquerdo está na estação à espera de sair, o ombro direito a andar bem mas com uma locomotiva meio falha de força. Já a neta prepara alegremente a vinda ao mundo, o transporte / cruzeiro da Suécia continua nos carris - ensombrado é certo pelos dois P, mas pronto, não se pode ter tudo, não é? Não, não é. Nada obriga os P. a estarem como estão excepto aquilo a que se convencionou chamar «o que tem de ser» (prefiro a designação árabe: fatalidade). Tudo menos «azar», designação detestável. Melhor cantar como os outros: «If it weren't for bad luck / I wouldn't have no luck at all». Verdade. No outro dia comparei-me a um maneta a fazer malabarismo. Mantenho a comparação, com um caveat: depende da quantidade de bolas. Se for só uma o maneta safa-se.

Verdade seja dita, a curta estadia no Alentejo ajudou-me pelo menos a perceber uma coisa: as decisões erradas, atabalhoadas e improvisadas das últimas semanas são-no porque estou a tomá-las com os dados que tenho a cada momento. Um bocado como um alpinista que assegura cada passo, até descobrir uma passagem melhor. Ou um navegador que dá volta a um cabo a cada braça que o iça: pelo menos para baixo não volta. E a verdade é que não tenho outra alternativa: não controlo nenhum dos elementos em jogo. Ando aos ziguezagues, não por não saber para onde vou mas por não haver caminho balizado. Só é pena os preços de cada zigue e de cada zague.

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Da série Diálogos possíveis:

- Quero vender livros, não quero vender a alma.
- Não queres vender a alma? Então oferece-a.

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«We will shortly be landing.» Esta frase é a coisa mais doce que tenho ouvido nestes últimos meses. Continua assim: «Please fasten your seatbelts... etc.»  Sim, sim. Eu aperto os cintos. Todos, meu caro piloto. Prometo-te que não falharei um. Nem o das calças.

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Conheci finalmente os meus sobrinhos-netos, que até agora só tinha visto de passagem e já há algum tempo. São uns putos porreiros, alegres e vivos. É bom saber que o futuro da família está bem orientado. Basta não ageniarem.

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(Cont.)

Já aqui o disse uma vez e nunca é de mais repeti-lo: o único inconveniente da solidão é sair tão cara.

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Tenho andado com mini-crises de Ménière. Nada de grave nem de particularmente inquietante. Chamo-lhes as Ménièrezinhas, enfio-lhes um Betaserc (nos casos piores - que, repito, não chegam sequer a ser maus, são só incómodos), readormeço e tudo volta ao seu lugar. Não sei de onde vêm, mas da solidão não é de certeza.

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A história não chega a ser uma. Foi no Antiquari. Uma mesa com dois senhores que gostam muito um do outro meteu conversa com a mesa ao lado (que estava ao lado da minha), ocupada por um casal de que o senhor é arquitecto - impossível não ouvir a conversa - e a senhora uma bomba sexual. Isto é, não tenho nenhuma prova empírica do que acabo de dizer, nem sequer auditiva, não passa de uma hipótese. Mas que ela tem escrito em cada milímetro quadrado de pele (felizmente pouco tatuada) «sou uma bomba sexual» isso tem. E se não é, eu sou a mulher do Papa. O que é interessante é que nem sequer é particularmente bonita, não é particularmente bem feita, não tem mamas e tem as coxas demasiado largas. Mesmo assim exala qualquer coisa que me faz sentir uma profunda empatia pelo arquitecto, que tem aspecto de quem vai ao ginásio todos os dias duas vezes por dia, no mínimo e bem precisa. A certa altura ao grupo juntou-se um senhor perdido de bêbedo que estava na mesa em frente, ainda cantaram um cântico qualquer do futebol (inglês, era mesmo impossível não ouvir a conversa, o Antiquari tem as mesas pertíssimo umas das outras) mas aquilo desfez-se rapidamente. Ele há mulheres cuja função na vida é pôr algumas hormonas masculinas em ebulição, prova de que a entropia não ganha sempre. Isto é, ganha, mas aos sobressaltos. 

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De maneira venho para bordo ouvir Paco Ibañez, beber hierbas secas e tentar reconstituir a mulher. É esta a vantagem dos pintores sobre os fotógrafos: se soubesse desenhar seria capaz de a plasmar numa tela só com o trabalho das sinapses. Nada de sais de prata ou daquilo que agora os substitui.

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