11.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 11-03-2024

A mercearia / libre service Lamon está para a vida no Marin como um salva-vidas para um navio de cruzeiro: serve para tudo, incluindo salvar vidas. É lá que compro os meus cigarros avulso (sessenta cêntimos cada contra cinquenta em Fort-de-France, a vida aqui é mais cara), raramente um gelado, de vez em quando uma garrafa de rum, de vinho ou de cerveja. Hoje comprei uma Adelscott, a cerveja chic do Marchand de Sable quando lá trabalhava. Não a consegui sequer acabar. E ainda há quem pense que no passado tudo era melhor. Hoje - deve ser a primeira Adel que bebo em trinta ou quarenta anos - perguntei-me como raio conseguia não só beber mas apreciar aquilo.

Sentei-me num banco do terminal marítimo a fumar um dos cigarros, beber a cerveja e olhar para o mar, coisa que evito geralmente fazer mais de doze horas por dia.

Há fundamentalmente duas coisas que dificultam muito a minha integração na economia portuguesa. Uma é a filosofia "isto chega". Não vou ao extremo de dizer que só o melhor chega mas penso que só o bom chega. A área de trabalho é o bom, não o assim-assim, o mais ou menos ou o mais barato. Escolhe-se o mais barato do bom, não o mais barato de tudo.

A outra é o "depois se vê". Não gosto do depois. Gosto das regras bem claras e explícitas antes do começo do jogo e não depois.

Por isso gosto tanto do norte do país. Está mais perto de mim e eu dele. Não fosse o tempo...

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A chuva continua. É exasperante. Antigamente pensava ser impermeável. Vinte anos de Suíça fizeram-me ver que não sou.

Gosto das pessoas do norte de Portugal e do clima do Sul.

Não sei como compatibilizar isto tudo. Vou deixar o tempo fazer o seu trabalho, que é tomar decisões por nós quando nós não as tomamos a tempo. 

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Acabei por jantar a bordo. O Liv, aonde me preparava para comer um bokit, está fechado às segundas, Fiz um molho de tomate, juntei-lhe pedaços de um resto de frango que tinha no frigorífico, precedi-o de e acompanhei-o com um planteur maison, pus a Pietra Montecorvino no Youtube e ecco, signora, só me falta lavar a loiça.

Conheço muita gente que detesta a tarefa, para mim nobre, de lavar o que ficou da refeição. É um momento de calma e de reflexão, como o sábado antes das eleições com a vantagem de ser depois. Pode reflectir-se sobre o que havia a mais ou a menos, sobre o que nos trouxe aqui, sobre o que nos levará alhures, sobre - até - aonde será esse alhures.

Não se pode dizer que não gosto desta indefinição geográfica. Gosto. Descobrir uma terra é como descobrir uma mulher, com a vantagem de haver mais terras do que mulheres (pelo menos para mim). Só me falta uma coisa: um lugar para os meus livros. Nunca, até hoje, me ocorreu pensar que os livros são - ou podem ser - uma âncora, um ferro em linguagem de mar. Estar fundeado, expressão que um terráqueo traduziria por estar ancorado, para mim vai ser estar livrado. A minha casa será aonde os meus livros estarão. E aonde está a minha língua, também. Nada de interpretações lascivas, por favor.

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À Montecorvine segue-se uma dessas misturas do you tube. Começa bem, com a Eleni Karaindrou, continua igual com o Kevin Ayers, dali passa para a Evanthia Reboutsika. Não há solidão que resista a um fluxo constante de boa música, rum e alísios.

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