30.5.04

Descoberta

Um dia descobriu que ser perfeito não é não cometer erros: ser perfeito é não existir. E desde esse dia começou a existir, finalmente.

29.5.04

Under the Volcano

Como estamos em maré de citações - e aproveito para linkar este site, sempre poupa algumas transcrições (infelizmente, o Lowry não figura na lista de autores) - três citações dessa obra seminal que é o Under the Volcano:

"...Night: and once again, the nightly grapple with death, the room shaking with daemoniac orchestras, the snatches of fearful sleep, the voices outside the window"...

"I wonder if it is because tonight my soul has really died that I feel at the moment something like peace."

"Time is a fake healer anyhow."

Fanny Hill

Raros são os livros eróticos em que o prazer da linguagem está ao nível do outro prazer. A Casa dos Budas Ditosos é um deles, claro. Outro é Fanny Hill, de John Cleland, de onde vem este pequeno extracto.


"My countenance expressed, no doubt, my surprise as my silence did my acquiescence. I was now embarked, and thoroughly determined on any voyage the company would take me on. The first that stood up, to open the ball, were a cornet of horse, and that sweetest of olive-beauties, the soft and amorous Louisa. He led her to the couch "nothing loth," on which he gave her the fall, and extended her at her length with an air of roughness and vigour, relishing high of amorous eagerness and impatience. The girl, spreading herself to the best advantage, with her head upon the pillow, was so concentred in what she was about, that our presence seemed the least of her care and concern. Her petticoats, thrown up with her shift, discovered to the company the finest turn'd legs and thighs that could be imagined, and in broad display, that gave us a full view of that delicious cleft of flesh into which the pleasing hair-grown mount over it, parted and presented a most inviting entrance between two close-hedges, delicately soft and pouting. Her gallant was now ready, having disencumber'd himself from his cloaths, overloaded with lace, and presently, his shirt removed, shew'd us his forces in high plight, bandied and ready for action. But giving us no time to consider the dimensions, he threw himself instantly over his charming antagonist, who receiv'd him as he pushed at once dead at mark like a heroine, without flinching; for surely never was girl constitutionally truer to the taste of joy, or sincerer in the expressions of its sensations, than she was: we could observe pleasure lighten in her eyes, as he introduc'd his plenipotentiary instrument into her; till, at length, having indulg'd her to its utmost reach, its irritations grew so violent, and gave her the spurs so furiously, that collected within herself, and lost to everything but the enjoyment of her favourite feelings, she retorted his thrusts with a just concert of springy heaves, keeping time so exactly with the most pathetic sighs, that one might have number'd the strokes in agitation by their distinct murmurs, whilst her active limbs kept wreathing and intertwisting with his, in convulsive folds: then the turtle-billing kisses, and the poignant painless lovebites, which they both exchang'd in a rage of delight, all conspiring towards the melting period. It soon came on when Louisa, in the ravings of her pleasure-frenzy, impotent of all restraint, cried out: "Oh Sir! . . . Good Sir! . . . pray do not spare me! ah! ah! . . ." All her accents now faltering into heart-fetched sighs, she clos'd her eyes in the sweet death, in the instant of which she was embalm'd by an injection, of which we could easily see the signs in the quiet, dying, languid posture of her late so furious driver, who was stopp'd of a sudden, breathing short, panting, and, for the time, giving up the spirit of pleasure. As soon as he was dismounted, Louisa sprung up, shook her petticoats, and running up to me, gave me a kiss and drew me to the side-board, to which she was herself handed by her gallant, where they made me pledge them in a glass of wine, and toast a droll health of Louisa's proposal in high frolic."

É um triplo prazer ler este livro: pela escrita, pela ironia feroz, e pelo resto, qualidade não despicienda num livro erótico.


Amizades

As amizades morrem, isso já o sabemos há muito. Mas não sabia eu que morrem como as pessoas: devagar, com avanços e recuos, com mais ou menos dor.

Um corpo

Um corpo ama-se por si. Um corpo é uma linha sobre a qual se respira, que nos respira, branca, estreita, ao fundo das mãos.

Um corpo é os cabelos, as mãos, os joelhos, as pernas, o ventre; um corpo és tu em mim. Um corpo. Um corpo mexe-se e ama-nos e fala-nos e acaricia-nos; e nós somos - um corpo, também.

Um corpo é uma noite, uma tarde, uma manhã. Um corpo é um sorriso, é um sopro depois do amor, uma vela que se afasta, uma vela que se acende, uma vela que se apaga. Um corpo é um lago imóvel num jardim, é uma porta que se fecha por dentro, para dentro. Um corpo é uma paisagem branca de neve, um temporal desfeito, uma nuvem bonita que se desfaz, uma vaga na praia, um cometa que passa.

Um corpo é um lugar, uma dádiva, uma esperança. Um corpo é o que os lençóis tapam, e destapam; um corpo é uma forma contra a parede, um arfar suave nas costas, um murmúrio que nos implora mais corpo. Um corpo é um olhar, é seios, coxas, lábios, pele, dedos; um corpo é uma linha estreita no horizonte, na água, no tempo, na noite, na vida.

Um corpo és tu, e é onde eu sou.

Tempo

Nao podia beber o tempo: por vezes tentava beber a vida; quase sempre, bebia, simplesmente.

27.5.04

O jantar da Lua

...já temos dia, hora, tema, local, preço - só nos falta o menu.

02 de Junho, pelas 21h, no Restaurante Lua (Av. 24 de Julho, 90), 25 euros por pessoa (incluindo entrada, prato principal, sobremesa, café e bebidas). O tema é "A Modernidade".

Morada: Av. 24 de Julho, 90 B-C, Lisboa

26.5.04

Le monde flottant

Je suis une partie de son monde flottant.

Fotografias

O Blogger criou, finalmente, uma maneira de pôr fotografias nos blogs. Alleluiah! A partir de agora, as jeremíadas vão começar a ser visuais, também.

Existência de Deus

Há várias provas da existência de Deus: tangíveis, intangíveis, corpóreas, incorpóreas.

Não são a mesma coisa: a barmaid do Pop Up, por exemplo, é corpórea, mas não é tangível.

25.5.04

Perdas

Perdera muito tempo na vida; e muita vida, no tempo.

Escrever

Urros, uivos e lamentações: os temas são reduzidos, as formas também.

Alternativas

Escrevia quando não podia amar, e amava quando não tinha nada para dizer.

"A porta dos mistérios"

Não sei bem para que serve a música, mas sei para que servem os Cânticos do Êxtase, de Hildegarde von Bingen: para abrir "a porta dos mistérios" (a expressão é dela).

24.5.04

Uma filha, uma ilha




Uma filha luminosa,
uma ilha.

Prazeres da vela: 18'


Sidney (não sei quem é o fotógrafo)


Cascais (fotografia de Júlio Quirino)

Grécia, 2003


Lua cheia em Santorini

Um barco, e a luz

As inevitáveis escadas gregas

Serviço Nacional de Meteorologia

O S. N. M. não é capaz de acertar nem no tempo que fez ontem, quanto mais nas previsões para amanhã e seguintes.

19.5.04

Vontades

Uma vontade furiosa de escrever, ou de amar, tomava por vezes posse dele. Infelizmente, não tinha nada para dizer.

Lisboa

O verão chegou, e é meio-dia. Lisboa transforma-se numa cidade tropical.

Doxa II

O meu pai vai buscar-me ao clube. Pergunta ao J., então um amigo da vela e mais tarde colega na Marinha, onde é que estou.
- Está a ver aquele barco sozinho lá ao fundo? É o Luis. É fácil saber qual é o barco dele: é sempre o que anda onde os outros não estão.

Doxa

De nada serve ser contra; melhor estar ao lado.

18.5.04

Carta (incompleta e confusa) ao meu filho

Meu querido filho,

algumas pessoas gostam de dizer aos outros aquilo a que elas chamam pomposamente “as verdades”. Geralmente, aqueles a quem elas são destinadas não gostam de as ouvir. A razão é que, a maioria das vezes, “as verdades” a que os primeiros se referem não o são: são opiniões. É da diferença entre “verdades” e “opiniões” que te quero falar hoje. Dir-me-ás que és demasiado novo para isso. Talvez, mas não precisas de perceber tudo já: basta ir pensando nisto ao longo do tempo, e um tempo chegará em que eu estarei todos os dias (ou muitos dias) ao teu lado para te ajudar.

Há muitas diferenças entre uma verdade e uma opinião. Apesar disso, é por vezes difícil perceber onde acaba uma e começa a outra. Há alguns métodos mas nenhum deles é simples, ou eficaz, ou absoluto:
 Frequentemente, as verdades dispensam adjectivos (“isto é uma mesa”), enquanto que as opiniões os exigem (“esta mesa é bonita”);
 As verdades unem, as opiniões dividem;
 As pessoa estão prontas a morrer por uma opinião, mas poucas dariam a vida por uma verdade;
 As verdades demonstram-se, as opiniões defendem-se;
 As verdades partilham-se, as opiniões confrontam-se.

Há pessoas, como a tua mãe, cujo trabalho consiste em destrinçar as verdades das opiniões. Elas elaboram aquilo a que chamam uma hipótese (outro nome para “opinião”) e depois tentam verificar se essa “hipótese” é verdade ou não. Isto só é possível em algumas áreas do conhecimento, da vida. Outras pessoas partem das verdades (“as maçãs caiem”) e elaboram depois opiniões que talvez se venham a revelar, por sua vez, verdades: a "a maçã cai por causa da gravidade", por exemplo.

O que há de comum nestas duas démarches é que estas verdades são transitórias, e as pessoas que as descobrem sabem-no: um dia alguém virá e, baseado numa verdade, descobre outra verdade. Isto não acontece com as opiniões: é por isso que nós podemos ler as opiniões de um filósofo grego, mas as suas “verdades” só interessam aos historiadores da ciência. Isto significa que as verdades são dinâmicas, enquanto que as opiniões são estáticas.

Porque é que é importante saber diferenciar uma verdade de uma opinião? Afinal de contas há milhares de pessoas que confundem as duas e não são menos felizes por isso. É preciso, primeiro porque sofremos - e fazemos sofrer - mais quando ouvimos -ou emitimos- opiniões do que quando descobrimos ou partilhamos verdades. Além disso, como tão bem o diz Cioran, é díficil viver com as verdades - mas é melhor pela simples razão que sem as verdades não se vive, morre-se: “Les "vérités", nous ne voulons plus en supporter le poids, ni en être dupes ou complices. Je rêve d'un monde où l'on mourrait pour une virgule.”

Podes construir as tuas verdades (a verdade é uma palavra esquisita que não tem singular...) como se fosse um Lego do qual as peças são as opiniões: algumas encaixam nelas, outras não - e com as mesmas peças constróiem-se verdades diferentes. Não obrigues nunca aqueles que te rodeiam a utilizar as tuas peças para construir as verdades deles - e não aceites as opiniões deles para construir as tuas verdades. Aceita-as, isso sim, para as comparares com as tuas. E sobretudo lembra-te que se as tuas verdades são melhores - é por isso que as tornaste tuas - não são mais "verdadeiras": as dos outros têm tanto direito de existir como as tuas. Porque para eles elas são melhores que as tuas.

Daqui poderíamos passar para as opiniões: fica para outro dia.

... Não ficou. Descubro a carta agora, 8 anos depois de a ter escrito e não ter enviado.

Depressão

Saltava de depressão em depressão como os soldados da primeira guerra mundial de trincheira em trincheira. Refugiava-se nelas um momento, e desde que se sentia ligeiramente melhor corria para a seguinte.

Incapacidade

Ele queria amar, mas nem ser amado sabia.

Dois factos sem qualquer ligação entre eles. Ou: o país do faz de conta.

I - Leio num jornal que cerca de metade dos advogados portugueses ganha menos de 1000 euros por mês.

II - Há anos, um amigo meu, suiço e arquitecto, resolveu ir viver para os Açores. Como gostava de cavalos e de os montar, decidiu abrir um centro equestre e, nesse centro, reconstruir um dos edifícios para nele fazer a sua casa.

Um dia encontrei-o, de olhos esbugalhados, a beber cerveja num dos cafés da cidade.

- Que se passa?
- Sabes que há meses que ando a lutar com a Câmara, que não me aprova a casa sem eu pôr um bidé na casa de banho.
- Sim, claro.
- E que eu não posso lá pôr um bidé porque a casa de banho é muito pequena, e para a fazer maior teria que mudar a casa toda.
- Sim.
- Bom, imagina tu que há umas semanas o funcionário da Câmara, já farto de mim, me disse para eu desenhar um bidé nos planos. No meio da casa de banho, num sítio impossível. Ele insistiu, e eu fiz. E hoje os planos chegaram-me aprovados. "Agora veja lá, não se lembre de pôr o bidé ali", disse-me quando me deu os papéis todos em ordem.
- Bemvindo a Portugal.


Vocabulário

- Vou só lá dentro buscar qualquer coisa e volta já. É muito rápido - diz-me B. Q. à saída da marina de Cascais. Quinze minutos depois vou ao escritório da marina, e ele ainda lá está dentro a discutir qualquer coisa com o funcionário.
- Desculpa, afinal demorou mais tempo do que eu pensava - esclarece-me, quando regressa ao barco.
- "Rápido" não é português - respondo.

Fio da navalha

Não sabia viver sem ser no fio da navalha. Um dia caiu.

Debates

Num recente debate off-blog com uma pessoa de quem aprecio o blog, o humor, a capacidade de análise e a criatividade, mas de quem discordo sobre pontos menores como a França e a luta contra a globalização, escrevi: "... e não consigo impedir-me de pensar por vezes que a “alterglobalização” é um mecanismo inventado pelo Ocidente para manter os outros países na situação em que estão...".

Não tive resposta. Penso que foi o fim do debate. É pena. Não sei calar o provocador que há em mim - mas desta vez nem me pareceu muito provocatório. Afinal de contas, quem verdadeiramente ganha com a "antiglobalização" (apellons un chat un chat) são os agricultores ocidentais, os proprietários de pequenas empresas locais que se baseiam em trabalho barato - mesmo em termos relativos - toda uma série de classes profissionais que vive de um estado providência que mais tarde ou mais cedo acabará (pelo menos na sua forma actual); não é, claro, essa gente que se manifesta, parte vidros, diz mentiras de bradar aos céus e ignora soberanamente o que pensam os naturais dos países que pretendem "defender" - mas por agora isso é irrelevante.

A ideia não é reacender o debate. É lembrar um aforismo do qual, infelizmente, não recordo o autor, mas que dia a dia me parece mais verdadeiro: "On n'avance pas vers la lucidité. On change de dogme, c'est tout".

Relevante seria discutir os novos dogmas: a ecologia; a anti-globalização (versão actual do anti-capitalismo, só que ainda, se tal é possível, mais indigente do ponto de vista intelectual); o relativismo, com o corolário pernicioso de "a democracia é boa para o ocidente, mas talvez não seja a forma ideal para África".

Mas não se pode, por definição, discutir a doxa. Resta-nos a tolerância. "Sou tolerante, não sou relativista".

Inimigo

Ele era o seu próprio inimigo, o melhor, mais forte, mais poderoso, mais hábil.

17.5.04

Futebol II

PS - e vejo agora que o Primeiro Ministro anulou uma viagem ao México por causa de um jogo de futebol.

Claro que o Dr. Durão Barroso só faz isso porque considera, e está provavelmente podre de razão, que ir assistir a um jogo de futebol lhe dá mais votos do que ir ao México. De quantos Rui Rio precisamos?

16.5.04

Futebol

O futebol é um jogo de selvagens e de bárbaros, jogado por idiotas que ganham rios de dinheiro e gerido por malfeitores. O dramático é que Portugal está a transformar-se num enorme estádio de futebol.

A falta de vergonha dos deputados, que querem poder faltar ao seu trabalho para ir assistir ao jogos, é escandalosa; e pior ainda é que os imbecis que votam nesse deputados provavelmente aprovam totalmente, e só lamentam não poder ir eles também assistir, com faltas justificadas e transportes pagos pelo patrão.

Hoje vinha no comboio e entraram centenas de brutos a manifestarem ruidosamente a vitória de um clube de futebol chamado Benfica, num desafio qualquer; agora, o barulho das buzinas nas ruas é insuportável. E toda a gente acha isto normal. É inquietante. Disgrace, mais uma.


PS - eu sei perfeitamente quem é o Benfica: é o clube do Eusébio e do Vale & Azevedo. E sei que o Sporting é verde e o Porto azul; e que o presidente do Porto se chama Pinto da Costa. Não é muito, mas já é demais.

14.5.04

Jantares

Os jantares do Grupo Excursionista e Jantarista Don Vivo vão recomeçar, no Restaurante Lua - Avenida 24 de Julho, 90 B/C, Lisboa. O primeiro tema será "A Modernidade". O menu é presentemente objecto de vivas conversas entre o Frederico, cozinheiro da Lua, a Maria Helena (grande cozinheira perante o Eterno), que de nada ainda sabe e eu (vasto gourmet). O preço será de 25 euros por pessoa, três pratos, vinho, cerveja e bebidas moles incluidas. Pormenores (detesto o termo "detalhes", galicismo atroz) sobre o jantar seguirão mais tarde. Inscrições para Lserpa@net.vodafone.pt, perguntas e respostas pelo 914 621 114.

Venham muitos, com um sorriso Don Vivo.

Quem era o Don Vivo? Porque se chama Don Vivo o meu blog? Respostas para o mail acima.

Tempo

Vai o mês a meio de Maio,
e nós aqui parados
no chão do tempo...

13.5.04

Solidão

É isso, a solidão: não ter testemunhas.

Glass ceiling

Só se percebe o que deve ser o tecto de vidro quando se tenta fazer negócios em Portugal e não se tem "contactos" ou "padrinhos". Ich bin eine frau.

11.5.04

Corrupção

"Tão criticável é quem corrompe como quem é corrompido", leio no Diário Económco de hoje, numa entrevista de 2003 com Jorge Sampaio.

Não estou de acordo: os empresários são pagos para gerir empresas e gerar lucros para os seus accionistas, não para moralizar a vida pública de um país. Essa tarefa incube, entre outras, aos políticos. Já paguei caro não corromper funcionários públicos. Foi um erro, tanto para mim como para o país: se o tivesse feito, talvez a empresa hoje existisse e pagasse impostos e desse trabalho a muitas pessoas que pagariam, elas também, impostos. Talvez não pagasse impostos, ou não os pagasse todos, ou os pagasse sob a forma de corrupção de funcionários públicos: pouco interessa - os trabalhadores pagariam de certeza, que não poderiam fugir; e pelo menos geraria riqueza - inclusive para o funcionário corrompido, que provavelmente a dilapidaria em bons restaurantes e numa quarta vivenda, ajudando assim a economia nacional.

Assim, o funcionário público que me explicou, queixoso, que o BMW da mulher tinha tido uma avaria fatal:
a) não licenciou o meu barco, provocando o fecho da empresa;
b) arranjou quem lhe pagasse um BMW, ou o que quer que fosse (durante um certo período a sua especialidade eram vigias em bronze, que revendia em Paris);
c) continuou no activo por mais uns anos, a exigir quantias cada vez maiores.

Se eu lhe tivesse pago o carro, o que mudaria? Nada, excepto a alínea a). Além disso, descriminalizando a corrupção activa, facilitar-se-iam as delações, único método eficaz para desmascarar a corrupção... ooops, único? Não: claro que a melhor maneira seria simplificar a absurda estrutura legislativa que temos - mas isso exigiria coisas impossíveis: não sonhemos com ladrões.


10.5.04

Kill Him

Li recentemente uma crítica de Kill Bill que me fez pensar, irremediavelmente e com sentimentos mistos, no que diziam os africanos dos filmes de karate et das cowboyadas que por lá passavam. Ir ao cinema que, em Quelimane, acolhia os nosso empregados era um prazer sem fim: "Olha para trás!", "Cuidado!" gritavam, querendo avisar o bom que o mau estava a chegar. Um empregado nosso ia regularmente ver os filmes duas, três vezes. Quando lhe perguntei porquê, respondeu-me que não compreendia como é que os actores conseguiam fazer sempre a mesma coisa sem se enganar (Moçambique tinha - e tem ainda - uma enorme tradição e experiência de teatro...). A minha reacção a essa crítica foi, como disse ambígua. Por um lado percebi o fascínio, "émerveillement" que o crítico experimentou e quis transmitir; por outro pareceu-me insuficiente como base para os ditirambos dirigidos ao filme.

Estou agora a chegar do filme, e ainda é cedo para grandes tiradas - mesmo assumindo, o que é pouco provável, que as quisesse ou pudesse fazer. Mas devo reconhecer ao dito crítico plena razão: a segunda parte do filme (muito mais que a primeira, de que não gostei por aí além), é uma simples maravilha. O personagem de Uma Thurmann deixou de ser quase grotesca para exigir - os ingleses diriam "command" - uma total identificação com ela; e mesmo o facínora do Bill se nos torna simpático. Identificações destas não via desde os filmes do Cine (se não me engano) Chuabo em Quelimane - e não as experimentava eu próprio há muito, muito tempo.

Troco a primeira parte toda do filme pelos primeiros quinze minutos da segunda; e não trocaria esta por muitos filmes.

PS - e PCs que vejam neste post sinais arrasadores de racismo, ou indícios de uma colonização que não deu educação aos africanos e outras coisas semelhantes podem ir dar uma volta ao bilhar grande, ou pentear macacos...

Peer Gynt II

Falhou redondamente; e demorou quase um quarto de século a perceber que Peer tinha razão. "Be thyself" tornou-se o seu lema. Que lhe reservaria o futuro?

9.5.04

Ausências

A ausência dos filhos era-lhe dolorosa, fisicamente. E a partir dessa, todas as ausências se lhe tornaram insuportaveis.

6.5.04

Peer Gynt

Ao contrário de Peer Gynt, cujo lema era "Sê tu mesmo", o seu grande objectivo na vida era não ser ele mesmo.

Auto-estrada

De repente, ela pedia-lhe: "Pára". E ele parava, numa área de repouso. Era ela que lhe fazia amor, e depois dizia "Desculpa, precisava de ti".

Oração

Ele estava na banheira, meia de água quente meia de espuma. Ela estava no quarto, a ler. Apareceu na casa de banho com um whisky na mão. Deu-lho, e ajoelhou-se. Parecia que estava a rezar: e ele estava no céu. E para lá foram os dois, depois.

"Voa cavalo, galopa mais"

Ela tinha o hábito de sentar sobre ele, de apontar para o umbigo e dizer : "até aqui". Depois partiam os dois, a galope para as estrelas.

Amor

...

Le je ne sais quoi

"Il y a quelquefois, dans les personnes ou dans les choses, un charme invisible, une grâce naturelle, qu'on n'a pu définir, et qu'on a été forcé d'appeler le je ne sais quoi. Il me semble que c'est un effet principalement fondé sur la surprise. Nous sommes touchés de ce qu'une personne nous plaît plus qu'elle ne nous a paru d'abord devoir nous plaire: et nous sommes agréablement surpris de ce qu'elle a su vaincre des défauts que nos yeux nous montrent, et que le coeur ne croit plus: voilà pourquoi les femmes laides ont très souvent des grâces, et qu'il est rare que les belles en aient."

Montesquieu, Essai sur le Goût, Ed. Payot et Rivages, 1993.

Dúvidas

E se tiver dúvidas, lembre-se: são os capitães que as não têm que perdem os navios.

Música

E depois oiça o "Magic and Loss", do Lou Reed.

Vinho: para acompanhar (o polvo, post abaixo) talvez um Terras do Pó. Casa de Saes parece-me demasiado encorpado. Quinta da Esteveira, a quem já escrevi ditirambos mais do que justificados. Um bom vinho chileno. Um tinto do Loire, de que ninguém gosta e que são difíceis de encontrar. Um Ribera del Duero.

Cozinhe. Divirta-se. Distribua prazer. É para isso que cá estamos.



Polvo de coentrada

Se eu fosse a si, começava já por esta magnífica receita, tirada, copiada e plagiada muitas vezes do Expresso de 07 de Março de 1992:

1,5 Kg de polvo;
1 cebola com 3 cravinhos espetados
1 cabeça de alhos - (isto é um franco exagero);
1 molho de coentros;
1 dl de azeite;
1 c. de sopa de farinha;
0,5 dl de vinagre;
Sal - (quanto?)

Lave e bata muito bem o polvo - (excepto se ele fôr congelado para a panela, o que eu aconselho);
Leve-o a cozer em abundante água temperada com sal e a cebola com os cravinhos; depois de cozido corte-o aos bocados e reserve;
Num tacho aloure os alhos picados no azeite e depois acrescente os coentros picados;
Retire o tacho do lume, junte a farinha misturada no vinagre. Leve o tacho a lume brando para cozer a farinha;
Acrescente o polvo e um pouco do caldo da sua cozedura;
Rectifique o tempero e deixe apurar 15';
Sirva quente sobre fatias de pão frito.

E delicie-se, é delicioso.

PopUp, again

A segunda visita confirma a primeira impressão: o sítio é magnífico. Só é pena ver jovens senhoras, de vinte anos no máximo, apagar os cigarros no chão. Mamma, que diriam se eu o fizesse em casa delas?

E a barmaid vale a boa metade de uma má família, ou a má de uma boa. Deus é, definitivamente, homem: uma mulher não faria nunca concorrentes daquelas.

Incerteza

Estava na vida como o amante da sexóloga na cama: nunca sabia se o que estava a fazer estava certo.

Synopsis - Um amor cinéfilo

A partir de uma ideia de M. H.

T. é um adolescente de 16 anos, muito grande. Tem um metro e oitenta e quatro, e o cabelo curto junta-se à altura para lhe dar um aspecto ainda mais velho. É um cinéfilo abalizado: mostre-se-lhe um minuto de filme e ele identifica título, actores principais, argumento - e dá uma opinião válida sobre o filme. É um cliente assíduo do videoclube em frente de casa dele, aonde vai quase todos os dias.

Um dia A., uma loira, bonita e pequena trintona vai ao videoclube. Hesita entre dois filmes. Um que ela conhece e outro que lhe é desconhecido. Vai ao balcão perguntar ao empregado o que pensa ele do filme, mas este não sabe. Sugere que T., ao lado, responda.

T. faz uma análise engraçada do filme (tem um bom sentido de humor) e convence A. a levar para casa o que ela não conhecia. A. desafia-o a ir com ela: está sozinha, e pensa (mas não o diz), que T. tem dezoito anos. T. é tímido, mas aceita: ir para casa de uma desconhecida é uma desobediência fundamental, essencial para o adolescente que ele é.

Em casa, A. revela-se: é argumentista de cinema, conhece e trabalha com todas as estrelas que T. admira. Um bonito processo de sedução começa: T. mente - não é a primeira vez - sobre a idade e diz que tem 18 anos; A. deseja-o mas quer que seja ele a dirigir-se para ela; T. não se apercebe, claro: é novo demais para isso. Mas tem toda uma carga de filmes que lhe permitem identificar a situação - só que não sabe como fazer, na vida "real". (Boa ocasião para um diálogo sobre filmes e cinema).

A. está em plena crise de inspiração: tem que escrever um argumento para um filme de terror e não consegue ter uma ideia aproveitável. E a relação deles vai-se desenrolando em dois níveis: T., que é um grande apreciador do género, vai-lhe dando ideias; A. inicia-o no mundo do cinema, e no amor.

O filme é um sucesso, A. manda T. passear, porque se apaixona pelo realizador. E T., que no fim da história completa dezoito anos, fica perdido: as raparigas da idade dele não lhe interessam, e as mais velhas não se interessam por ele: estas coisas boas só acontecem uma vez na vida, e podem destruí-la.

5.5.04

Escrever

Escrevia, e amava, como se desse pinceladas no tempo.

Amor

Que tem o amor a ver com isto?

Porque está sempre a tentar meter-se na minha cama, na minha vida?

Tristeza

Um dia triste é como uma fotografia sem luz, ou uma vida sem dias.

Barroco

A música barroca tem isto de fascinante: consegue tornar alegre a tristeza, e triste a alegria.

Receitas

Não sei cozinhar sem receitas, e sou incapaz de seguir uma receita. Algo está errado.

Uma morte

Um dia pararei de morrer, decidiu.

Uma vida

Passou a vida a morrer.

4.5.04

Uma história portuguesa

Começaram as obras no meu prédio. As escadas ficaram cheias de pó e com as paredes sem reboco. Os trabalhos avançavam a bom ritmo. Um dia, tudo parou: dos operários, nem sopro. Hoje soube porquê: apesar de as obras serem coercivas - e, santo Deus, mais do que justificadamente coercivas - estiveram cinco semanas à espera de uma licença de ocupação da via pública. Cinco semanas. Porquê? Como? E sobretudo: quem paga estas cinco semanas, durante as quais o material esteve imobilizado no prédio?

3.5.04

Bruxas

Em Galego, "bruxas" diz-se "meigas"...