Isto dito, eu nunca te prometi, minha querida, que entraria por aquele mar adentro até me afogar em ti; até a água se transformar numa mão suave que me acaricia até à morte; até pensar em ti como se nada ou ninguém mais houvesse no mundo.
31.8.10
Aparelho
O aparelho reprodutor de um homem é composto por um cérebro, dois olhos, dois ouvidos, um nariz e uma boca; duas mãos, dois pés, uma pele; e mais um ou dois orgãos secundários.
Isto dito, noites recalcitrantes, tímidas
Isto dito, meu amor.
Toumani Diabaté toca como se os deuses lho tivessem pedido pessoalmente; o calor aperta, liberta; a noite parou algures no meio da rua e por lá ficou. Sei o que é uma noite; já sabia antes do mo ensinares. Nunca são as mesmas. Não há duas iguais: contigo, porque estás; sem ti, porque não estás. Noites recalcitrantes, reticentes. A noite reserva-se. Tímida, a noite. Calada, pela calçada, etc..
Coitada: vejo-a quase todos os dias, a cambalear pelos passeios; não lhe falo.
Toumani Diabaté toca como se os deuses lho tivessem pedido pessoalmente; o calor aperta, liberta; a noite parou algures no meio da rua e por lá ficou. Sei o que é uma noite; já sabia antes do mo ensinares. Nunca são as mesmas. Não há duas iguais: contigo, porque estás; sem ti, porque não estás. Noites recalcitrantes, reticentes. A noite reserva-se. Tímida, a noite. Calada, pela calçada, etc..
Coitada: vejo-a quase todos os dias, a cambalear pelos passeios; não lhe falo.
Tentativas
Tentei tudo, minha querida: Margaritas, whisky, cerveja, jazz; nada a fazer: enquanto tu me ocupares as sinapses como ocupas não conseguirei embebedar-me com o que quer, ou quem quer que seja.
Petites annonces
Pair de mains masculines, 42 ans, usée, rugueuse, épaisse mais tendre cherche pair de seins féminin; volume et usage indifférents. Il suffit qu'ils soient détachables, et emportables.
"Avalanche"
"You who wish to conquer pain"... Leonard, ninguém quer conquistar a dor; conseguir esquecê-la já é uma conquista sem fim.
Predisposição
Não me devias ter dito que ias ao pub. Eu ia lá, de certeza, porque passei a noite a tentar embebedar-me e não consegui. Não por falta de matéria-prima, credo, não. Falta de predisposição, mais. Ou seja: teria desaguado no sítio; ter-te-ia visto; teria fingido que não te conhecia; ter-me-ia ido embora sem um sinal, querida, um sinal que fosse da vontade estúpida, estratosférica - mas bem comportada - que tenho de ti.
Assim, nada feito. Não fui, claro; nem lá nem a lado nenhum. Não vim sequer para casa. Fiquei-me a pairar num sítio onde posso ouvir Leonard Cohen gritar, onde tenho uma cama e meia dúzia de livros; não é uma casa, pois não? - é um covil, mobilado com imagens de ti e vontades estratoféricas; e por uma terrível, insondável falta de predisposição.
Assim, nada feito. Não fui, claro; nem lá nem a lado nenhum. Não vim sequer para casa. Fiquei-me a pairar num sítio onde posso ouvir Leonard Cohen gritar, onde tenho uma cama e meia dúzia de livros; não é uma casa, pois não? - é um covil, mobilado com imagens de ti e vontades estratoféricas; e por uma terrível, insondável falta de predisposição.
30.8.10
Hospital de Cascais
O edifício é indubitavelmente moderno e bonito. O médico que me atendeu simpático, sem sombra de dúvida. O resto não mudou: a falta de respeito pelo utente, a impossibilidade de comunicar com quem quer que seja, o desleixo.
29.8.10
Falta
Continuo sem saber a quem é que o Zé faz falta; à família e aos amigos, suponho, como todos nós. À cidade não tenho dúvidas de que não faz falta nenhuma. Antes pelo contrário: é-lhe nefasto. Mas com frases como "[os domingos] são dias para olhar para o céu e não para dentro de grandes superfícies" suspeito que faz falta a meia dúzia de psiquiatras (ou talvez sejam estes que lhe fazem falta, não sei), e a quase todos os humoristas.
Eu acho que para além de "olhar para o céu" as pessoas podem ir à missa, passar o dia na cama, ir ao Pão de Canela comer um brunch, ler jornais, fazer vela, andar de patins, pintar paredes, fazer concursos de arrotos, bater punhetas a grilos, reparar bicicletas, gravar discos para o iPod, comer no restaurante indiano das Portas de Sto. Antão, atirar pedras aos pombos nos jardins (desde que não acertem no sr. Vereador, coitado, se por acaso lá passar) ou às gaivotas no rio (ditto, parece que o homem gosta de vela), embebedar-se com sake, cerveja ou whisky, ler Jonathan Raban, mandar piropos às miúdas feias, que sempre é mais original do que mandá-los às bonitas, preparar viagens transatlânticas ou a próxima excursão a Sintra - enfim, eu acho que aos domingos (como de resto em todos os outros dias da semana), as pessoas podem fazer o que lhes der na real gana e que o vereador José Sá Fernandes não tem rigorosamente nada a ver com isso. O Sr. Vereador devia começar os dias todos a pedir desculpa aos lisboetas pelas trapalhadas e asneiras que já fez; e não acrescentar mais disparates ao seu já longo rol deles.
Eu acho que para além de "olhar para o céu" as pessoas podem ir à missa, passar o dia na cama, ir ao Pão de Canela comer um brunch, ler jornais, fazer vela, andar de patins, pintar paredes, fazer concursos de arrotos, bater punhetas a grilos, reparar bicicletas, gravar discos para o iPod, comer no restaurante indiano das Portas de Sto. Antão, atirar pedras aos pombos nos jardins (desde que não acertem no sr. Vereador, coitado, se por acaso lá passar) ou às gaivotas no rio (ditto, parece que o homem gosta de vela), embebedar-se com sake, cerveja ou whisky, ler Jonathan Raban, mandar piropos às miúdas feias, que sempre é mais original do que mandá-los às bonitas, preparar viagens transatlânticas ou a próxima excursão a Sintra - enfim, eu acho que aos domingos (como de resto em todos os outros dias da semana), as pessoas podem fazer o que lhes der na real gana e que o vereador José Sá Fernandes não tem rigorosamente nada a ver com isso. O Sr. Vereador devia começar os dias todos a pedir desculpa aos lisboetas pelas trapalhadas e asneiras que já fez; e não acrescentar mais disparates ao seu já longo rol deles.
Never-ending picture show
«Water plays tricks on whatever lies within its reach. It distorts and dismembers, then restores an extravagant wholeness, making two of one - which is exactly what the Indian artists of the Northwest were doing in their designs. Living on water, as aquatic in their habits as sea otters, the coastal tribes couldn't help but see in the water's playful games a true reflection of their own instinctive worldview. Rippled surfaces exoposed a restless and inconstant nature, in which things continually swapped places and suddenly, misterious transformations abounded. Carving a box or painting a muslin curtain, the artist was, in effect, recreating scenes from the water's never-ending picture show.»
Jonathan Raban, "Passage to Juneau", Picador, 2000 (a melhor coisa que me foi dado ler desde o terramoto de 1755).
Jonathan Raban, "Passage to Juneau", Picador, 2000 (a melhor coisa que me foi dado ler desde o terramoto de 1755).
27.8.10
Vento, Agosto
Está vento, muito vento; é bom: ajuda a limpar este horrível mês de Agosto. Nunca acabam, os agostos. Arrastam-se no deserto do calor, no deserto de ti, nas praças banhadas de sol e de ninguém, nas ruas em que só o alcatrão derretido nos lembra que há uma terra debaixo de nós. Está muito vento; vejo Agosto ir e não o lamento.
Depois vou eu, a cavalo no vento e no sol de Setembro, le mois le plus tendre (missing link para "Île de Ré", de Claude Nougaro; alvíssaras a quem o encontrar).
Adenda: a nossa leoa caseira encontrou. Ganhou o prémio. Senhoras e senhores, Ile de Ré, de e por Claude Nougaro.
Depois vou eu, a cavalo no vento e no sol de Setembro, le mois le plus tendre (missing link para "Île de Ré", de Claude Nougaro; alvíssaras a quem o encontrar).
Adenda: a nossa leoa caseira encontrou. Ganhou o prémio. Senhoras e senhores, Ile de Ré, de e por Claude Nougaro.
26.8.10
Táxis, rádio
A rádio nos táxis tem vantagens e desvantagens. Por um lado, mantém os chauffeurs calados, quando estão a ouvir qualquer coisa que lhes interessa; e fá-los chegar mais depressa ao destino, já por aí o contei, se a coisa lhes interessa mesmo muito (adivinhem qual é a coisa, qual é ela) e nós lhes pedimos para baixarem o volume a um nível muito baixo.
Por outro, pode ser fonte de conflitos: o chauffeur hoje baixou o volume, e depois foi subindo-o à socapa. Quando eu reclamei, o senhor manifestou o seu desagrado levando-me "a passear". Ganhou pouco: 15 cêntimos e uma reclamação à central.
Por outro, pode ser fonte de conflitos: o chauffeur hoje baixou o volume, e depois foi subindo-o à socapa. Quando eu reclamei, o senhor manifestou o seu desagrado levando-me "a passear". Ganhou pouco: 15 cêntimos e uma reclamação à central.
Sócrates e os empresários
É só a mim que dá náuseas ouvir Sócrates lançar "desafios" aos empresários?
E se nós lhe lançássemos o desafio de diminuir a burocracia, por exemplo; ou racionalizar a legislação? Ou criar um quadro jurídico decente? Ou formar pessoas capazes?
E se nós lhe lançássemos o desafio de diminuir a burocracia, por exemplo; ou racionalizar a legislação? Ou criar um quadro jurídico decente? Ou formar pessoas capazes?
Retratos
Nas rifas dos afectos já lhe saíra por várias vezes o primeiro prémio; mas nunca os soubera gerir. Dilapidava amor como outros água, ou dinheiro.
Infelicidade, tautologia
Não me importo nada de ser infeliz; gostava era de o ser por outras razões.
23.8.10
Turismo
Vim a Óbidos almoçar. Escolhi um restaurante afastado da rua principal, estilo histórico-rústico-familiar. A priori não parecia mal: o ambiente não era horrível, anunciava "tapas", petiscos et al., e, sobretudo, não tinha muita gente.
Depois vi o funcionário, ou proprietário, não sei. Infelizmente já estava sentado: o senhor acha que a melhor maneira de receber os clientes no seu estabelecimento é vestido com aquelas t-shirts brancas que não têm mangas. Antigamente chamavam-se "camisolas interiores". Agora não sei. "Selvagem shirt"?
Depois vi o funcionário, ou proprietário, não sei. Infelizmente já estava sentado: o senhor acha que a melhor maneira de receber os clientes no seu estabelecimento é vestido com aquelas t-shirts brancas que não têm mangas. Antigamente chamavam-se "camisolas interiores". Agora não sei. "Selvagem shirt"?
Defeitos
Tolero mal nos outros os meus defeitos, físicos ou de feitio: redundância inútil, ou pleonasmo do horror.
19.8.10
Miles
Não é insónia, é só excesso de café. Miles ajuda a perceber isso: é bom de mais, para insónia.
Auto-destruição
Conheço pessoas muito auto-destrutivas. São indecisos; ou cobardes, o que é pior. Querem viver muito e morrer muito - mas se por esta ordem é possível, já na ordem inversa não é. Deviam escolher.
Enfim, verdade seja dita: se escolhessem morriam muito, de certeza; mas deixavam de viver muito. E viver só um bocadinho é uma chatice, para essas pessoas. Talvez não sejam assim tão cobardes, afinal. Não sei.
Enfim, verdade seja dita: se escolhessem morriam muito, de certeza; mas deixavam de viver muito. E viver só um bocadinho é uma chatice, para essas pessoas. Talvez não sejam assim tão cobardes, afinal. Não sei.
18.8.10
Introspecção
O grande problema da introspecção é acabar sempre no pântano da compreensão. Ou quase sempre.
Do uso das cabeças
Quando as cabeças estão muito agarradas aos ombros as pessoas tendem a não as usar.
Complicado
É um bocadinho complicado, claro: liberalizar os despedimentos pode contribuir para diminuir o desemprego, e não para o aumentar. É um problema explicar à esquerda conceitos como "efeitos perversos", e coisas do género. Que os efeitos das nossas acções nem sempre são lineares; que o sistema é complexo.
17.8.10
Diálogos possíveis; ou: Feias
- As pessoas são tão feias - repetia sem parar.
- Porra pá, tu és cego; não te podes calar, ou falar de outra coisa?
- Porra pá, tu és cego; não te podes calar, ou falar de outra coisa?
Serviço Público - Restaurantes, Zé Varunca
Hoje fui jantar com a família ao Zé Varunca da Rua de S. José. Fomos todos: o diabético, o teso, o pedante, o gastrónomo e o extrovertido. Ficaram satisfeitos, mais ou menos. Já lá tínhamos ido, mas o diabético achara a comida pouco sã; o extrovertido as empregadas lúgubres; o teso caro; o gastrónomo assim assim e o pedante declarara, alto e bom som, que a gastronomia alentejana não valia a da Mongólia do Sul.
Desta vez não houve nada disto: o teso declarou "mais ou menos"; o gourmet anunciou um "correcto", o que para os outros equivale a um bom mais; o diabético disse que calava o amigo dele médico com uma salada de pimentos (o teso achou aquilo uma bestialidade, a 2,75 euros; mas o outro respondeu-lhe que a saúde não tem preço); o pedante viu o restaurante bem frequentado (estava cheio de maricas estrangeiros, e para ele isso é sinónimo de qualidade); e o extrovertido disse que as empregadas eram de uma simpatia contagiante e não tinham bigode (o gourmet retorquiu que eram baixas "de croûpe", mas reconheceu-lhes a voluptuosidade de formas. E a simpatia, claro. E a eficácia).
Saímos todos satisfeitos (a minha alegria é vê-los contentes, coitados). Mas quando passámos perto do Mal Amanhado houve um que disse (ainda estou para saber qual) "aqui teria sido melhor". Todos aprovaram, menos o diabético: estava muito perto de casa e "far-se-ia menos exercício".
Calei-os com um whisky no Orpheu - excepto o diabético, claro. É um chato, o pior de todos, juntamente com o teso. Ainda por cima nem diabético é. Os outros aguentam-se bem. Mas eu quero que eles se ... ooops, já empreguei esse termo, hoje. Não posso repetir. Que eles apanhem onde apanham as focas (se forem francesas, claro).
Zé Varunca, rua de S. José 54. Fecha ao domingo. 213 468 018.
Desta vez não houve nada disto: o teso declarou "mais ou menos"; o gourmet anunciou um "correcto", o que para os outros equivale a um bom mais; o diabético disse que calava o amigo dele médico com uma salada de pimentos (o teso achou aquilo uma bestialidade, a 2,75 euros; mas o outro respondeu-lhe que a saúde não tem preço); o pedante viu o restaurante bem frequentado (estava cheio de maricas estrangeiros, e para ele isso é sinónimo de qualidade); e o extrovertido disse que as empregadas eram de uma simpatia contagiante e não tinham bigode (o gourmet retorquiu que eram baixas "de croûpe", mas reconheceu-lhes a voluptuosidade de formas. E a simpatia, claro. E a eficácia).
Saímos todos satisfeitos (a minha alegria é vê-los contentes, coitados). Mas quando passámos perto do Mal Amanhado houve um que disse (ainda estou para saber qual) "aqui teria sido melhor". Todos aprovaram, menos o diabético: estava muito perto de casa e "far-se-ia menos exercício".
Calei-os com um whisky no Orpheu - excepto o diabético, claro. É um chato, o pior de todos, juntamente com o teso. Ainda por cima nem diabético é. Os outros aguentam-se bem. Mas eu quero que eles se ... ooops, já empreguei esse termo, hoje. Não posso repetir. Que eles apanhem onde apanham as focas (se forem francesas, claro).
Zé Varunca, rua de S. José 54. Fecha ao domingo. 213 468 018.
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Restaurantes Lisboa
Retratos, garoupas, egos
É muito difícil fazer um bom retrato. Uma dourada, por exemplo; ou uma garoupa: como exprimir o que lhes vai na alma? Um peixe-espada: ainda mais difícil: prateado, filiforme, sem escamas... nada mais do que uma longa fita clara, uma ténia do mar, contra a qual o mais potente flash, a mais fina lente, o mais talentoso fotógrafo partirá irrevogavelmente os dentes (se for francês, claro; se for português "lutará em vão").
Quando era novo pescava muito peixe-espada, à tonelada. Era bom. O peixe vendia-se mais caro do que os outros; é só se pescava de dia, pelo que à noite ficávamos a pairar, sem nada que fazer se não embebedar-nos ou dormir. Eu embebedava-me muito, com whisky ou com tristeza. Assim aprendi quão difícil é fazer bons retratos.
Uma garoupa é um peixe muito bom, se pequeno; mas pode atingir dimensões gigantescas. Quando assim é fica uma merda intragável. Como alguns egos. Que se fodam as garoupas. E os egos.
Quando era novo pescava muito peixe-espada, à tonelada. Era bom. O peixe vendia-se mais caro do que os outros; é só se pescava de dia, pelo que à noite ficávamos a pairar, sem nada que fazer se não embebedar-nos ou dormir. Eu embebedava-me muito, com whisky ou com tristeza. Assim aprendi quão difícil é fazer bons retratos.
Uma garoupa é um peixe muito bom, se pequeno; mas pode atingir dimensões gigantescas. Quando assim é fica uma merda intragável. Como alguns egos. Que se fodam as garoupas. E os egos.
Convite
O Delito de Opinião teve a simpatia de me convidar para escrever um texto; e publicou-o. Estava à espera de tudo menos disto. O DV pouco mais é do que um depósito muito escondido de coisas - uma amiga tinha um avô que chamava "coisómetros" aos cadernos onde tomava notas, e a designação parece-me apropriada a este cantinho - e estar de repente na página de frente impressiona.
Aqui fica a minha gratidão ao Pedro Correia e a toda a equipe do Delito.
Aqui fica a minha gratidão ao Pedro Correia e a toda a equipe do Delito.
16.8.10
Abismo
Deve ser estarrecedor uma pessoa ver-se à beira de um abismo a dar um passo em frente - coisa que, dizia-me um amigo um dia, lhe acontecia frequentemente.
15.8.10
Navegação estimada
Num post ali em baixo faço referência à navegação estimada, "a mais bonita de todas". É. E em vez de se teimar na navegação com sextante - que diriam se para tirar a carta de condução fosse necessário saber conduzir um carro de bois? - devia era insistir-se na navegação estimada, ou "navegação querida", para os íntimos (a navegação astronómica é muito bonita, também; e baseia-se em muito naquela).
Em duas palavras, navegação estimada consiste em calcularmos a nossa posição baseados apenas no odómetro - instrumento que mede a velocidade do navio e consequentemente a distância percorrida num determinado lapso de tempo (às vezes acontece também este estar avariado, pelo que devemos estimar igualmente a velocidade) - e a agulha (instrumento a que algumas pessoas chamam bússola, para se distinguir dos marinheiros).
Não sendo o mar uma estrada, graças a Deus, a estes dois dados há que acrescentar a influência das correntes, do vento, as características do navio ou da embarcação, as particularidades dos homens do leme.
Quando andamos no mar há muito tempo sem uma posição exterior (astronómica, radiogoniométrica, radar, visual - o meu máximo é cinco dias) a margem de erro é, naturalmente, enorme; se não estivermos muito longe de uma costa podemos aproximar-nos desta e situarmo-nos com o auxílio de um ponto conspícuo (ou "com cuspo", para os que dizem "querida" em vez de estimada). Para além do benefício evidente de nos definir correctamente a posição, esta técnica tem a vantagem de nos ajudar a melhorar a nossa estima (e às vezes o inconveniente de reforçar a nossa auto-estima, quando nos apercebemos de que não estávamos nada longe do sítio onde pensávamos estar).
Todos as fontes são boas para estimarmos a posição. Um dia, muito antes do GPS, vinha da Córsega para Agde, uma distância relativamente pequena (225 milhas, diz o Google Earth), num barco que não conhecia de todo; durante a noite apanhámos uma daquelas tempestades do Mediterrâneo que chega sem pré-aviso, dura meia-dúzia de horas, estraga tudo o que pode estragar (aquela obrigou-me a subir ao galope do mastro para pôr a adriça da grande no moitão) e se vão embora como se nada fosse com elas. De manhã pensava ver terra, e não vi. Refiz os cálculos todos, introduzi mais deriva, tirei velocidade (o barco era pequeno, tínhamos passado um bom bocado com a grande a bater a meio mastro, por causa da adriça entalada fora do moitão, coisa frequente naqueles tempos, e pensei que o odómetro estaria optimista - era um truque das empresas de charter, mas isso fica para depois) e nada: devia ver terra e não via.
A decisão, claro, foi virar de bordo e ir para norte: se há coisa de que ninguém gosta é andar sem saber onde está. Durante o bordo para terra começámos a ser sobrevoados por inúmeros aviões de linha. Um dos tripulantes era um fanático de aviação e a certa altura começou a olhar para a carta, para os aviões, para a carta e pergunta-me:
- Luís, nós devemos estar um pouco antes da longitude de Marselha, não é?
- Sim. Mas não percebo porque raio de carga de água é que não se vê terra. A visibilidade está óptima.
- Acho que já passámos Marselha há muito tempo.
- Isso não é possível. Olha para o odómetro. Mesmo que tivesse um erro, nunca seria assim tão grande.
- Eu penso que sim. Repara: aqueles aviões todos vão de certeza a caminho do rádio-farol de Marselha. E estão a cruzar-nos com um ângulo de x graus. Se nós estivéssemos na longitude de Marselha, ou lá perto, eles fariam um ângulo connosco de pouco menos de y graus. Ora o rumo deles é bastante superior a isso. Estamos muito mais para a frente do que pensamos.
Tirei um azimute ao rumo dos aviões, entrei com aquele dado nos cálculos, refiz uma posição estimada, e duas ou três horas depois consegui uma posição (gónio ou visual, não me lembro) suficientemente segura que nos permitiu situar-nos, e virar de bordo para o nosso destino. O odómetro tinha um erro de 25% para menos, e tínhamos andado muito mais do que eu pensava.
(Num barco conhecido isto não aconteceria: um navegador experiente num barco que conhece sabe a que velocidade vai até a dormir - pelo barulho, sobretudo, pelos resmungos ou suspiros do casco, pela força que o leme está a fazer.)
Nota: graças ao GPS tudo isto é passado, e os verbos deviam ser postos no tempo correspondente. Mas os fundamentos da navegação estimada deviam, na minha opinião, continuar a ser ensinados.
Em duas palavras, navegação estimada consiste em calcularmos a nossa posição baseados apenas no odómetro - instrumento que mede a velocidade do navio e consequentemente a distância percorrida num determinado lapso de tempo (às vezes acontece também este estar avariado, pelo que devemos estimar igualmente a velocidade) - e a agulha (instrumento a que algumas pessoas chamam bússola, para se distinguir dos marinheiros).
Não sendo o mar uma estrada, graças a Deus, a estes dois dados há que acrescentar a influência das correntes, do vento, as características do navio ou da embarcação, as particularidades dos homens do leme.
Quando andamos no mar há muito tempo sem uma posição exterior (astronómica, radiogoniométrica, radar, visual - o meu máximo é cinco dias) a margem de erro é, naturalmente, enorme; se não estivermos muito longe de uma costa podemos aproximar-nos desta e situarmo-nos com o auxílio de um ponto conspícuo (ou "com cuspo", para os que dizem "querida" em vez de estimada). Para além do benefício evidente de nos definir correctamente a posição, esta técnica tem a vantagem de nos ajudar a melhorar a nossa estima (e às vezes o inconveniente de reforçar a nossa auto-estima, quando nos apercebemos de que não estávamos nada longe do sítio onde pensávamos estar).
Todos as fontes são boas para estimarmos a posição. Um dia, muito antes do GPS, vinha da Córsega para Agde, uma distância relativamente pequena (225 milhas, diz o Google Earth), num barco que não conhecia de todo; durante a noite apanhámos uma daquelas tempestades do Mediterrâneo que chega sem pré-aviso, dura meia-dúzia de horas, estraga tudo o que pode estragar (aquela obrigou-me a subir ao galope do mastro para pôr a adriça da grande no moitão) e se vão embora como se nada fosse com elas. De manhã pensava ver terra, e não vi. Refiz os cálculos todos, introduzi mais deriva, tirei velocidade (o barco era pequeno, tínhamos passado um bom bocado com a grande a bater a meio mastro, por causa da adriça entalada fora do moitão, coisa frequente naqueles tempos, e pensei que o odómetro estaria optimista - era um truque das empresas de charter, mas isso fica para depois) e nada: devia ver terra e não via.
A decisão, claro, foi virar de bordo e ir para norte: se há coisa de que ninguém gosta é andar sem saber onde está. Durante o bordo para terra começámos a ser sobrevoados por inúmeros aviões de linha. Um dos tripulantes era um fanático de aviação e a certa altura começou a olhar para a carta, para os aviões, para a carta e pergunta-me:
- Luís, nós devemos estar um pouco antes da longitude de Marselha, não é?
- Sim. Mas não percebo porque raio de carga de água é que não se vê terra. A visibilidade está óptima.
- Acho que já passámos Marselha há muito tempo.
- Isso não é possível. Olha para o odómetro. Mesmo que tivesse um erro, nunca seria assim tão grande.
- Eu penso que sim. Repara: aqueles aviões todos vão de certeza a caminho do rádio-farol de Marselha. E estão a cruzar-nos com um ângulo de x graus. Se nós estivéssemos na longitude de Marselha, ou lá perto, eles fariam um ângulo connosco de pouco menos de y graus. Ora o rumo deles é bastante superior a isso. Estamos muito mais para a frente do que pensamos.
Tirei um azimute ao rumo dos aviões, entrei com aquele dado nos cálculos, refiz uma posição estimada, e duas ou três horas depois consegui uma posição (gónio ou visual, não me lembro) suficientemente segura que nos permitiu situar-nos, e virar de bordo para o nosso destino. O odómetro tinha um erro de 25% para menos, e tínhamos andado muito mais do que eu pensava.
(Num barco conhecido isto não aconteceria: um navegador experiente num barco que conhece sabe a que velocidade vai até a dormir - pelo barulho, sobretudo, pelos resmungos ou suspiros do casco, pela força que o leme está a fazer.)
Nota: graças ao GPS tudo isto é passado, e os verbos deviam ser postos no tempo correspondente. Mas os fundamentos da navegação estimada deviam, na minha opinião, continuar a ser ensinados.
Fotografias
A primeira pergunta é "se eu não gosto de fotografia realista porque gosto destas?" Mais realista à primeira vista não há. Claro que depois uma pessoa se apercebe que as fotografias não são realistas; são frias, "objectivas", distantes. Quase apetece dizer cruéis, clínicas, como se a fotógrafa não estivesse lá; isto é, não "estivesse" lá, não fizesse parte do décor.
Por aí adiante, as palavras, as sensações e eu; às vezes tropeço na palavra "assustadoras": são quase assustadoras. Mas depois essa sensação desaparece e é substituída pela contrária: dão vontade de lá ir e aquecer um bocadinho aquelas paisagens onde não se vêem pessoas mas se vê o traço do que elas deixaram e se descobre "afinal há sentimentos, nestas fotografias". E acabamos por ver que é essa a estrada correcta: as fotografias fotografam sentimentos e por isso não são tão realistas como parecem à primeira vista; e por isso são tão boas, as fotografias, quaisquer que sejam os sentimentos que fotografam.
Como sempre apetece dizer "que se f... a primeira vista", o que interessa é a segunda, ou terceira. As fotografias são soberbas (e alguns dos textos também, mas isso é outra história).
Por aí adiante, as palavras, as sensações e eu; às vezes tropeço na palavra "assustadoras": são quase assustadoras. Mas depois essa sensação desaparece e é substituída pela contrária: dão vontade de lá ir e aquecer um bocadinho aquelas paisagens onde não se vêem pessoas mas se vê o traço do que elas deixaram e se descobre "afinal há sentimentos, nestas fotografias". E acabamos por ver que é essa a estrada correcta: as fotografias fotografam sentimentos e por isso não são tão realistas como parecem à primeira vista; e por isso são tão boas, as fotografias, quaisquer que sejam os sentimentos que fotografam.
Como sempre apetece dizer "que se f... a primeira vista", o que interessa é a segunda, ou terceira. As fotografias são soberbas (e alguns dos textos também, mas isso é outra história).
Restaurantes
Logo à noite vou procurar um restaurante para jantar. É muito chato, procurar um restaurante; mas é igualmente chato ir ao mesmo todos os dias.
Qualquer das opções tem vantagens e desvantagens, claro: quando se descobre um restaurante do qual gostamos, e nos convém sob vários pontos de vista, tendemos a ir lá várias vezes. Mas rapidamente nos cansamos; não sei porquê (não é ironia: é-me impossível, e doloroso, compreender porque nos fartamos de qualquer coisa de que gostamos). Por outro lado, procurar um lugar novo para comer é bom: faz-nos ir para lados da cidade que não conhecemos, ou mal; olhar para listas novas, comer coisas que há muito não comíamos. Mas é arriscado: o restaurante pode não ser bom, ou demasiado caro, ou outra coisa qualquer. E andar sempre à procura também cansa.
O meu sonho é encontrar um restaurante ao qual possa ir quase todos os dias: é um bocado infantil, eu sei; e vago: quantas vezes é "quase"? Porquê "quase"? Há pessoas que se acomodam muito bem com uma ou outra das opções. Eu não: gosto das duas simultaneamente.
Às vezes decido não ir comer a um restaurante. Também é bom, mas não é sustentável. Outro truque, utilizado por algumas pessoas que conheço, consiste em formar um grupo de restaurantes aos quais se vai regularmente: juntando assim a variedade à ausência de risco. É uma estratégia desprezível, por um lado; e ineficaz, por outro: o mais certo é um dia fartarmo-nos de todos os restaurantes do grupo e ter que recomeçar de zero.
Verdade seja dita, "fartar" não é o termo correcto: por um lado, nunca cortamos definitiva, realmente com um restaurante do qual gostámos. Por alguma razão gostámos dele, não é? E às vezes é bom visitar um velho conhecido, como se para nos situarmos (é uma prática corrente, por exemplo, na navegação estimada, a mais bonita de todas). Podemos dar com o nariz na porta, claro: o restaurante mudou de dono, de cidade, menu, preço, sei lá. Ou fechou, simplesmente, vá lá saber-se porquê. Por outro, cada vez que deixamos de ir a um restaurante do qual gostámos muito perdemos mais do que ele; e todas as perdas são dolorosas. Todas, sem excepção.
Não."Fartar" não é de todo o verbo correcto.
Qualquer das opções tem vantagens e desvantagens, claro: quando se descobre um restaurante do qual gostamos, e nos convém sob vários pontos de vista, tendemos a ir lá várias vezes. Mas rapidamente nos cansamos; não sei porquê (não é ironia: é-me impossível, e doloroso, compreender porque nos fartamos de qualquer coisa de que gostamos). Por outro lado, procurar um lugar novo para comer é bom: faz-nos ir para lados da cidade que não conhecemos, ou mal; olhar para listas novas, comer coisas que há muito não comíamos. Mas é arriscado: o restaurante pode não ser bom, ou demasiado caro, ou outra coisa qualquer. E andar sempre à procura também cansa.
O meu sonho é encontrar um restaurante ao qual possa ir quase todos os dias: é um bocado infantil, eu sei; e vago: quantas vezes é "quase"? Porquê "quase"? Há pessoas que se acomodam muito bem com uma ou outra das opções. Eu não: gosto das duas simultaneamente.
Às vezes decido não ir comer a um restaurante. Também é bom, mas não é sustentável. Outro truque, utilizado por algumas pessoas que conheço, consiste em formar um grupo de restaurantes aos quais se vai regularmente: juntando assim a variedade à ausência de risco. É uma estratégia desprezível, por um lado; e ineficaz, por outro: o mais certo é um dia fartarmo-nos de todos os restaurantes do grupo e ter que recomeçar de zero.
Verdade seja dita, "fartar" não é o termo correcto: por um lado, nunca cortamos definitiva, realmente com um restaurante do qual gostámos. Por alguma razão gostámos dele, não é? E às vezes é bom visitar um velho conhecido, como se para nos situarmos (é uma prática corrente, por exemplo, na navegação estimada, a mais bonita de todas). Podemos dar com o nariz na porta, claro: o restaurante mudou de dono, de cidade, menu, preço, sei lá. Ou fechou, simplesmente, vá lá saber-se porquê. Por outro, cada vez que deixamos de ir a um restaurante do qual gostámos muito perdemos mais do que ele; e todas as perdas são dolorosas. Todas, sem excepção.
Não."Fartar" não é de todo o verbo correcto.
Prazeres simples
Há coisas que se lêem e nos dão um prazer simples, puro; como ver um mecanismo perfeitamente oleado a funcionar.
"Ela entende que há um sentido na história e que o género humano pode estar sujeito a tropeções mas se encaminha para um zénite cheio fulgurações luminosas, de onde foram definitivamente banidas a pobreza, a homofobia, as monarquias, a televisão e todos os adversários morais do Bloco de Esquerda."
"Ela entende que há um sentido na história e que o género humano pode estar sujeito a tropeções mas se encaminha para um zénite cheio fulgurações luminosas, de onde foram definitivamente banidas a pobreza, a homofobia, as monarquias, a televisão e todos os adversários morais do Bloco de Esquerda."
14.8.10
Burocracia
Este post do Insurgente faz-me pensar que é efectivamente difícil para a maioria das pessoas mentir às autoridades, inventar, acomodar-se às exigências absurdas que as cabecinhas dos colegas de João Galamba produzem.
É um retrato do país: alguém (um conjunto de idiotas que sem dúvida devido à qualidade do trabalho produzido tem reforma por inteiro ao fim de oito anos de "trabalho") faz um decreto-lei destinado a acabar com uma prática qualquer, provavelmente nascida de um outro decreto-lei qualquer que a tornou obrigatória para a sobrevivência, ou normal funcionamento de uma empresa; uma outra cabecinha promulga aquilo; as empresas não ligam peva, porque não faz sentido; um polícia - ou uma "autoridade" qualquer - multa (e em montantes que não são despiciendos); as empresas inventam e adaptam-se. Claro que a solução é começar a pôr uma hora de carga qualquer nas facturas e integrar de uma vez por todas que as nossas leis são produzidas por atrasados mentais cujo único mérito - nisto não se enganam eles de certeza - é parasitar até à medula quem trabalha para lhes pagar as prebendas.
Há uns anos era obrigatório “dar entrada” (e “dar saída”) de uma embarcação de recreio num porto nacional, mesmo se em proveniência de outro porto nacional; essa prática sempre me irritou, por duas razões: a) se eu viesse de comboio ou de automóvel ninguém me pedia para “dar entrada” ou “saída”; b) os organismos onde era preciso “dar entrada” (Capitania, Alfândega e Polícia Marítima – enfim, o antecessor desta) eram muitas vezes longe dos portos.
Regra geral não cumpria essas formalidades, mas quando era obrigado, por qualquer razão a cumpri-las (entrada. Saída nunca fiz) dizia que o barco vinha de Madrid, Paris, Berlim, Timbuctu, Samarkanda, e assim por diante.
Acreditem se quiserem, mas em anos desta coisa nunca – nunca – ninguém estanhou que uma embarcação de vela entrasse no porto de, por exemplo, Figueira da Foz "em proveniência de Madrid”.
É um retrato do país: alguém (um conjunto de idiotas que sem dúvida devido à qualidade do trabalho produzido tem reforma por inteiro ao fim de oito anos de "trabalho") faz um decreto-lei destinado a acabar com uma prática qualquer, provavelmente nascida de um outro decreto-lei qualquer que a tornou obrigatória para a sobrevivência, ou normal funcionamento de uma empresa; uma outra cabecinha promulga aquilo; as empresas não ligam peva, porque não faz sentido; um polícia - ou uma "autoridade" qualquer - multa (e em montantes que não são despiciendos); as empresas inventam e adaptam-se. Claro que a solução é começar a pôr uma hora de carga qualquer nas facturas e integrar de uma vez por todas que as nossas leis são produzidas por atrasados mentais cujo único mérito - nisto não se enganam eles de certeza - é parasitar até à medula quem trabalha para lhes pagar as prebendas.
Há uns anos era obrigatório “dar entrada” (e “dar saída”) de uma embarcação de recreio num porto nacional, mesmo se em proveniência de outro porto nacional; essa prática sempre me irritou, por duas razões: a) se eu viesse de comboio ou de automóvel ninguém me pedia para “dar entrada” ou “saída”; b) os organismos onde era preciso “dar entrada” (Capitania, Alfândega e Polícia Marítima – enfim, o antecessor desta) eram muitas vezes longe dos portos.
Regra geral não cumpria essas formalidades, mas quando era obrigado, por qualquer razão a cumpri-las (entrada. Saída nunca fiz) dizia que o barco vinha de Madrid, Paris, Berlim, Timbuctu, Samarkanda, e assim por diante.
Acreditem se quiserem, mas em anos desta coisa nunca – nunca – ninguém estanhou que uma embarcação de vela entrasse no porto de, por exemplo, Figueira da Foz "em proveniência de Madrid”.
12.8.10
Tóxicos
Pena é que não se faça também uma lei contra primeiro-ministros e governos tóxicos. Esses é que estão realmente a envenenar-nos a vida.
"Lei que impõe a redução de sal no pão entra hoje em vigor"
"Lei que impõe a redução de sal no pão entra hoje em vigor"
Testes
Os testes em tamanho natural, tempo real dão os melhores resultados. Pena não serem muito bons, como testes: quaisquer que sejam os resultados, as consequências são terríveis.
10.8.10
Retratos potenciais
O cartão de visita dizia tudo: "Fernando Pessoa, auto-fotógrafo". Não foi decerto por acaso que me cruzei com ele na Baixa, num daqueles restaurantes cheios de mármore e de rugas.
8.8.10
Retratos potenciais
Tinha um elástico nas costas que o ligava ao mar: cada vez que tentava fugir dele, o esticão levava-o para mais perto ainda.
7.8.10
Retratos potenciais
Um tipo cuja única qualidade era beber muito. Mas como bebia muito, realmente muito, era uma grande qualidade, e um grande tipo.
Tinha uns olhos bonitos, aguados - bebe o whisky com água, pensei quando o conheci.
Tinha uns olhos bonitos, aguados - bebe o whisky com água, pensei quando o conheci.
Lis minha boa
Leitão na Merendinha; café na Confeitaria Nacional; compra para stock na Manuel Tavares; re-café na Carmelita. E ainda há quem diga que não se pode viver em Lisboa.
Portugal, presente
Portugal vive com um pé no passado e outro no futuro; no dia em que decidirmos ter os dois no presente ninguém nos agarra.
Duas perguntas sobre o amor e zero respostas
O verdadeiro amor é flexível ou inflexível (isto é, capaz ou incapaz de se adaptar ao outro, de tomar formas diferentes consoante o outro)?
Existe "verdadeiro amor", ou antes um único amor, o de cada um de nós, que é verdadeiro pela razão simples de ser único?
Existe "verdadeiro amor", ou antes um único amor, o de cada um de nós, que é verdadeiro pela razão simples de ser único?
Receita
Se o amor é o pilar de uma relação, o espaço é o seu cimento. Uma relação simbiótica, siamesa, desmorona-se em menos de nada, porque não é nada.
Nevoeiro
"By 6:00 a.m. the fog had enclosed the boat in dense, clammy, frogspawn grey. Waking to the electronic beeping of the alarm, I could hear the hollow, unrequited blare of a diaphone, a long way off on some rockpile. I sat up and peered through the cabin window into the gloaming: the customs dock, at sixty feet, was vague but recognizable; beyond it, nothing existed. The wooded cliff, the marina, and the town of Sidney were gone.
The process of advection, which had gone on steadily overnight, had not missed the opportunity afforded by the clothes I'd left hanging in the saloon. There was fog in my shirt, fog in my trousers, fog in my socks. I set up the cabin heater, set the kettle to boil for coffee, and found a CBC station on the radio. The morning news was firmly dismal."
Jonathan Raban, in "Passage to Juneau", ed. Picador, 1999.
A melhor coisa que me foi dado ler nos últimos duzentos e cinquenta anos, sem sombra de exagero.
The process of advection, which had gone on steadily overnight, had not missed the opportunity afforded by the clothes I'd left hanging in the saloon. There was fog in my shirt, fog in my trousers, fog in my socks. I set up the cabin heater, set the kettle to boil for coffee, and found a CBC station on the radio. The morning news was firmly dismal."
Jonathan Raban, in "Passage to Juneau", ed. Picador, 1999.
A melhor coisa que me foi dado ler nos últimos duzentos e cinquenta anos, sem sombra de exagero.
6.8.10
Aculturação
A Catalunha proibiu as touradas. Azar dos catalães aficionados: se a Catalunha fosse em África toda a gente estaria agora a reclamar contra a prepotência ocidental, a imposição de valores estranhos à cultura indígena, o colonialismo cultural e afins.
5.8.10
Amor ódio
Lisboa não é perfeita; por isso gosto tanto dela. Para cidades perfeitas bastam-me as suíças e as alemãs (nunca estive na Escandinávia, mas suponho que as de lá o sejam também). O problema em Lisboa é quando se afasta demasiado da perfeição.
4.8.10
Pieguices, idiotices, paráfrases
Quanto mais conheço os homens mais gosto dos golfinhos (as escoltas reais do post anterior).
Viagem
Mais uma viagem. Meia dúzia de milhas, uma ou duas escoltas reais (uma delas realmente real); uma tripulação principesca; e uma incomensurável quantidade de bem estar. Quanto mais estou no mar mais a antropofobia me parece aceitável.
Aceitável? Pior: inevitável.
Viveres
Já vivi em muitos sítios onde nuca estive: Hamburgo, por exemplo; Singapura, ou a inevitável Samarkanda. Mas também já me aconteceu viver em cidades onde não estava, nunca estava.
Escolha
Deixei-a. Não havia lugar na minha vida para ela e para o kefir. Nem na minha cozinha: todas as manhãs o lava-loiças estava cheio de loiça por lavar, e não havia espaço para as delicadas manipulações que a benéfica bebida exige.
Fatiga
Não se deve confundir fatiga com metafísica, sob pena de acabarmos embrulhados em dolorosas, e complexas, confusões entre física e metafatiga.
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