19.4.22

Diário de Bordos - Palma Mallorca, Baleares, Espanha, 19-04-2022

O dia cai. As luzes da noite misturam-se com as do dia; os sons de um e outra fazem o mesmo (um saxofone no canto do Bornéu mai-los autocarros, automóveis, motas e ruídos anexos). Já não é dia e ainda não é noite. A minha hora favorita. Dantes,   quando ainda bebia a bordo e se podia navegar em solitário, a esta hora sentava-me no poço, a olhar para ré, whisky na mão. Era a minha hora mágica. Hoje isso acabou - a bebida e a navegação sozinho - mas a hora continua a minha preferida. Mais do que o seu equivalente matinal  apesar de esse também ter os seus prazeres (por exemplo,  começar a descascar a última camada de roupa para a noite).

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Saio da Babel com dois livros. A minha admiração pelo J. cresceu mais uns pontos: estava com uma antologia do Goytisolo na mão - trinta euros - e ele insistiu para que levasse a Olvido García Valdés, dezasseis. Estou-lhe duplamente agradecido: pelos quatorze euros que me fez poupar e pela descoberta de uma poetisa extraordinária. Descoberta - choque, diria um francês (se falasse português). A senhora tem um vastíssimo de imagens e de referências e ao mesmo tempo tem uma poesia extraordinariamente profunda, como se lavrasse um campo enorme com um bisturi.

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Última ceia no Jaume. Nem vale a pena começar a descrever: o sublime dispensa comentários. 

Olvido García Valdés

Como se lavrasses um vasto campo com um bisturí.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-04-2022

Já fiz secretos em casa e até gostei. Hoje como-os no Cisco e penso a) não devia dizer que cozinhei secretos e b) menos ainda que gostei deles. 

Cisco tem uma loja no Mercat de l'Olivar. É uma loja grande, onde numa metade ele vende produtos e na outra serve-os feitos (as metades são desiguais). Os secretos (e muitos mais) fogem à regra do "só posso servir o que vendo". Não entro em pormenores. No Mediterrâneo estes são labirínticos e o risco de um homem se perder neles é grande, por muito prevenido que vá. Limito-me portanto a apreciar o vermut del grifo e o vinho tinto, respectivamente antes e durante os supra-mencionados secretos. Por mais que faça nunca hei-de compreender o Islão. (Tão pouco me dou ao trabalho.) Os judeus também não comem porco mas pelo menos bebem vinho e eu gosto deles. Não comem marisco. Não comem nada que venha do mar e não tenha escamas. Estou-me nas tintas. Os caprichos dos deuses não passam disso mesmo: caprichos. Só se lhes verga quem quer. Eu não quero: nem aos meus obedeço, quanto mais aos de um gajo que muito provavelmente nem existe, nunca existiu e não existirá tão cedo. Só não percebo é a mente tortuosa que inventou esses interditos todos. Mentes: foram muitas.
São três da tarde, o mercado já fechou, mas o Cisco diz-me que não há pressa. Termino tranquilamente o tinto de que me servi e penso que sou o ansioso mais estúpido do mundo. Ou o estúpido mais ansioso do mundo.


18.4.22

O nome do poço

O poço tinha um nome. Chamava-se tristeza. E um apelido, mas esse nunca lhe ocorria. Como o poço era profundo, chamava-lhe "tristeza sem fundo", apesar de saber que não era o nome verdadeiro, era só uma aproximação. Ou a manifestação de um desejo, vá lá saber-se.

Quase todos os dias o eléctrico

Vivia do lado de fora da vida, como aqueles miúdos que dantes se penduravam no exterior dos eléctricos, deles saltavam em andamento e empurrados pela inércia corriam, corriam. Corriam até pararem e o eléctrico continuava sem eles. Não os esperava.

Por vezes, à noite sozinho na cama, dizia-se "mas o wattman do eléctrico sou eu." Depois corrigia para "era eu", e corrigia, corrigia até acabar em "fui eu". "O condutor do eléctrico fui eu. Hoje conduzo a minha corrida ao lado dele e já é um pau por uma pedra."

Só acontecia quando estava sozinho na cama, mas como o estava quase sempre, acontecia quase todos os dias.

A estreia

Tinha tratado toda a sua vida como uma obra de arte. Enfim, uma não. A. Agora que a hora da estreia se aproximava assustava-se. Não sabia o que fazer: achava a obra tosca, incompleta, incompreensível, desorganizada. Quase um rascunho, no fundo. Porém, uma vez estreada não havia segunda chance. Uma das suas grandes fontes de angústia sendo que não tinha forma de saber quando seria a estreia - a menos que a convocasse ele mesmo, claro, hipótese que não punha de lado. O seu corpo fazia-lhe sinais incessantes, mas ele resistia. Nenhum lhe parecia suficientemente sincero para ser levado a sério. «Na melhor das hipóteses», pensava, «tenho vinte anos para acabar o trabalho. Mas desses, quantos terei de lucidez? E de força, já que esta faz parte da obra? Não sabia. Por enquanto, limitava-se a ignorar a questão. Deixava que a obra se fizesse a si própria, de certa maneira, limitando-se a dar um pequeno toque aqui e ali. Nada que a pusesse fundamentalmente em causa. «Uma obra de arte é o resultado de uma luta entre ela e o artista. Já lutei que chegue. Agora faço um intervalo e deixo a vida dirigir o trabalho. Depois logo se verá. A data da estreia ainda está longe.»

Fétido...

 ... eis o termo que busco há que tempos para definir o futuro.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16/18-04-2022

Estou cheio de fome. Um gelado não faz um almoço, mesmo que seja dos do Claudio, cujos competem com quaisquer uns do Universo e frequentemente ganham. Claudio é um apaixonado pelo que faz e cada vez que lá vou - em média, dia sim dia não - oiço uma prelecção sobre os seus últimos progressos. A de hoje foi sobre a decisão de trocar os chocolates banais que até agora usava por chocolates «de origem». Equador, Gana et alia. Deu-me a provar o do Equador, provavelmente o melhor gelado de chocolate que comi desde que como chocolates e gelados. Era tão bom que não resisti e fui ao Giovanni, umas dezenas de metros à frente, mergulhar o que restava da enorme bola num copo de rum. Foi isto o meu almoço, que faria as delícias de uma nutricionista (só conheço mulheres nesse digno mas infrutuoso trabalho) ou do médico que me receita medicamentos contra a diabetes.

(Nb: Claudio decidiu criar a sua própria marca. Tudo o que dizia Doce Freddo está a ser substituído por «Claudio». Não dou muitos anos para que a marca seja conhecida em todo o lado. Se não for, é porque Todo o lado está enganado. Acontece muitas vezes.)

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De maneira à noite cheguei ao Gustar cheio de fome, agradável novidade. Há muito tempo que não só não fico agoniado mal penso em comer, mas ainda tenho fome. É precisdo dizer que foi lautamente recompensada, se não em quantidade pelo menos em qualidade. Como sempre, claro, é inútil  acrescentar.

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Entre o chocolate do Equador e a espetadas de vitela encontrei-me com a P. Vinha a correr, como sempre: a senhora é antropóloga, tem um programa de rádio, escreve, pinta e faz música, para além de ser mãe dedicada e dedicada esposa de um farmacêutico que nunca aparece porque «somos muito diferentes», explica. «Mas agora já é tarde para mudar», acrescenta. (Na verdade vê-se perfeitamente que o ama, mas isso é história dela e dele, não me diz respeito). Conheci P. por intermédio de um passageiro da viagem Blablacar mais alucinante da minha vida, de Lisboa para Madrid. O homem era antropólogo, fotógrafo, cineasta, professor universitário. Não nos calámos um minuto durante as seis horas que a viagem durou, almoço incluído. Foi ele que me falou na P., que tinha sido sua aluna em Palma. Esta interessou-se pela minha estadia no Burundi e levou-me à rádio - creio que foi a minha estreia nesse medium - e daí ficámos amigos. Conheço-a pouco, mas aprecio-a bastante: é uma das excepções à regra de que os maiorquinois são feios, antipáticos e ignoram totalmente tudo o que não venha do seu círculo mais próximo. (Esta regra tem mais excepções do que confirmações. É daquelas que se desfaz mal se passa a barreira.)

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Enfim, tudo isto porque estava com fome. Há muito tempo que não sentia tal coisa e não sei se deva regozijar-me ou não - ainda tenho alguns quilos a perder.

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18-04-2022

O dia começa noutro dos meus refúgios: o café Mise en Place, na Plaça Mayor, que antes da pandemia era o meu escritório. A Daniela continua bonita, sorridente e eficaz, a decoração e o mobiliário agradáveis, a música boa. Durante os anos de loucura não podia tabalhar aqui - não queriam ter uma mesa ocupada duas ou três horas com dois cafés, por caros que estes sejam (são). Agora já posso ocupar de novo «a minha mesa», no canto da janela, com vista para a praça e para a bicicleta Órbita, que nem fechada está.

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Leio o jornal, exercício penoso pela mediocridade hodierna. Esta vertigem, esta voragem legislativa é aterradora. Pergunto-me onde parará. Ele é legislação contra a sazonalidade, a favor de folgas menstruais para as mulheres (a qual requer, precisa o jornalista, mais legislação para impedir que as mulheres sejam prejudicadas), mais investigação contra os preços excessivos nos apartamentos com limitações de rendas, mais legislação contra oa chiringuitos, com o pretexto de «poupar o ambiente»... É enjoativa, esta modernidade. Entretanto, a primeira página do Diário traz uma chamada para um artigo de duas páginas que devia fazer pensar sobre as consequências psicológicas da gestão da pandemia. 

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Ao chegar à praça vi os senegaleses todos a embrulharem precipitadamente as quincalharias que vendem: estava a chegar a polícia. É uma peça bem coreografada, faz-me pensar naquelas peças de marionetas em que entra o polícia pela esquerda, sai o malndro pela direita, sai o polícia, volta o outro e assim por diante. Vivem numa extorsão permanente, nas mãos vorazes, gananciosas e inumanas dos «importadores» das bugigangas, com mínimos de facturação, sempre a fugir da polícia. As independências africanas são uma das histórias de «sucesso» dos tempos modernos. 

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Note-se que sei muito bem que uma sociedade precisa de mitos e nada tenho contra eles, excepto o facto singelo de serem tão necessários. As boas vontades seriam muito mais eficazes se enfrentassem a realidade. Refugiando-se na mentira e na ilusão mais não fazem do que perpetuar a maldade e dificultar que se corrijam injustiças flagrantes e desumanidades inúteis. Os cavaleiros da bondade causam mais sofrimento do que aqueles que invectivam.

16.4.22

Lutar contra o emagrecimento

Estou cada vez mais magro, porque como cada cada vez menos. Contudo, luto arduamente contra o adelgamento de que toda a gente me fala: bebo o mesmo.

Memória, fotografia

Se a memória não interessa, para que serve a fotografia?

15.4.22

Vómitos

A minha peregrinação pelos amigos continua. Bar Rita - poucos apertos de mão me dão o prazer que o do Joan dá -, Toni na praça Santa Eulália - provavelmente uma das dez praças mais bonitas de Palma - e agora o Dani e o Luís da Cuadra del Maño. "Pensei que fosses tu, quando telefonaste", diz o Dani com um sorriso vasto como o Nilo. Digo-lhe que quero comer pouco. "Onde está o Luís que conheci?" "Isso pergunto-me eu, Dani". Luís, o assador, vem ver-me. Acordamos um bocadinho pequeno de picanha e uma batata ou duas. Lá fora continuam o rufar dos tambores e os desfiles de gente vestida das formas mais estranhas. De romanos a KKK já vi de tudo.

Onde está o Luís que detestava multidões, Dani? O Luís que comia carne como se não houvesse mais nada que comer para todo o sempre?

Engolido, meu caro. Digerido e não tarda vomitado.

Inundações

Palma está a abarrotar de gente e eu nunca pensei que gostaria tanto de ver esta cidade de novo inundada em multidões.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-04-2022

O quarto onde fico é «do outro lado das avenidas», aquilo que em Paris se chamaria extra-muros. A cidade muda por completo. Desapareceram as cabeleiras loiras e a mistura de línguas do centro, substituídas por cabelos pretos, espanhol ou maiorquino (uma variante do catalão, do qual não sei distingui-lo pelo menos ao ouvido). Há mais mulheres gordas, mais velhos e os bares e cafés não são gourmet, bio, fusion, green, vegan mais essa colecção de tonterias de que todas as modernidades são feitas. Tivemos azar com a nossa? Não sei. Talvez. 

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As dores desapareceram todas. Olho esquerdo, ombro direito, anca direita cederam à química (enfim, a da anca não cedeu a nada se não possivelmente ao cansaço. O melhor SNS do mundo marcou a consulta com uns largos meses de espera e a dor desvaneceu-se, não lhe apetecia esperar tanto tempo. Tanto melhor. Isto de me sentir uma farmácia ambulante não quadra bem comigo). A única que permanece é uma monstruosa e permanente dor de cabeça, mas esa com um Paracetamol também se desvanece. Basta não me esquecer deles em casa.

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Trabalho, trabalho e trabalho. Se um dia fizer a história da minha relação com o P. a história vai ser uma mistura de drama, tragédia, comédia, opereta, farsa, melodrama, stand-up comedy e por aí fora. Se vejo o pano cair sobre este refit... Não vale a pena sonhar. Nunca verei.

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Às vezes pergunto-me se estas dores e maleitas todas que arrasto comigo não serão pedidos do corpo para lhe pôr fim. Ou avisos de que o fim está próximo. Ou assim.

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Palma está cheia de gente, apesar do tempo. Ou melhor: por causa do tempo. Não está convidativo para a praia, de forma as ruas estão cheias a abarrotar. Pelo menos as do centro. Cada vez acredito menos no turismo como pretexto para a viagem. Lembro-me das filas para apanhar o 28 ou o elevador de Santa Justa em Lisboa e a descrença passa a incompreensão absoluta. 

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A fraude da «pandemia» não é uma fraude: é uma colecção delas que encaixam umas nas outras como matrioscas: abre-se uma e logo outra sai de lá de dentro. A última, a mais pequena(em tamanho), a que está lá no fundo é a do número de mortes. Quantas delas foram realmente devido à Covid? Mas em redor dessa toda uma série de mentiras se enrosca, até chegarmos à ultima, a casa delas todas: «por causa da pandemia...» A verdade é «por causa da gestão da pandemia...» Pergunto-me quanto tempo demorará até sabermos a verdade?

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Rendo-me sem condições à estética: as mulheres do centro são mais bonitas do que as dos bairros «de fora». 

Corpo, amor

A vontade de escrever impede-me de dormir e a vontade de dormir não me deixa escrever. No meio, feita fiel da balança, está a estúpida dor no olho esquerdo, que hoje estupidamente reacendi. É curioso: uma dor num olho incapacita o corpo todo, mais do que se fosse  um braço ou numa perna. Tudo tem um fim e este calvário tê-lo-á também. Só espero que venha em breve - um corpo que se faz sentir não merece respeito e muito menos amor.

14.4.22

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-04-2022

Regresso a Palma, a minha Palma, Palma dos meus dias, Palma à qual regresso feito filho pródigo. Selecciono os reencontros: Pepe, Aurélio, François, Jaume, Núria e Roberto, por ordem cronológica directa. Amanhã é sexta-feira santa e não haverá muitos mais, mas sábado outros se lhes seguirão. Os meus amigos de Palma são donos de cafés, bares e restaurantes, o que diz muito sobre o que me interessa na vida. (Também conheço livrarias e lojas de objectos bonitos, não vão os leitores pensar que só me interesso por vermutes e vinhos.)

Palma: a Núria tem a casa cheia e pede-me para me sentar à mesa de uns amigos dela (que não são donos de restaurantes, mas são chefs em iates. Um destes conta-me uma história magnífica: um amigo dele arranja um trabalho num iate nas Caraíbas. O processo de recrutamento é complicado, cheio de segredos e NDA (non-disclosure agreement, se por acaso). O homem é contratado, vai trabalhar e ao fim de um mês despede-se. O barco pertence a Nicolás Maduro e o chef tinha constantemente um guarda-costas atrás a ver o que punha na comida. Não é propriamente que isto me surpreenda. A minha surpresa vem mais da dimensão da credulidade de muita gente do que do facto de o herói da esquerda ser um corrupto. Há muitos, quase todos. A esquerda sempre atribuiu mais importância ao que se diz do que ao que se faz.

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Hoje é dia de procissão. Cruzo-me na rua com imensa gente vestida das mais estranhas formas, mas todas remetendo para fardamentos religiosos. Alguns fazem-me pensar em bruxas e penso que entre a bruxaria e a religião a diferença é pequena. Segundo um linguista alemão cujo nome esqueci, uma língua é um dialecto com uma armada e um exército. A diferença entre uma religião e uma seita, uma crença ou uma superstição é exactamente a mesma. Isto dito, prefiro o catolicismo ao voodoo ou ao islão, por exemplo. Talvez por familiaridade, não sei. 

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Este prazer infantil de ser recebido com alegria, abraços e grandes exclamações não tem comparação com nada, se não eventualmente o prazer de voltar ao mar para uma viagem longa. A diferença sendo que aí quem recebe sou eu e não ele a mim. Chegar aonde nos querem ou aonde queremos não é muito diferente, no fundo: para onde vai ou de onde vem o amor pouco importa, desde que faça parte da viagem, desde que esteja presente e inclua a mescla de sentimentos de que a viagem é composta.

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Apesar de conhecer esta cidade relativamente bem, continuo a perder-me em Palma. Creio - mas não tenho a certeza - que é uma das razões pelas quais gosto tanto de aqui estar: é melhor perdermo-nos num amor do que numa indiferença.

Em Palma, duas ruas que começam perto uma da outra e vão na mesma direcção não acabam perto uma da outra. Acabam a léguas uma da outra.

12.4.22

Diário de Bordos - Porto, Portugal, 11-04-22

Em condições normais não teria entrado no Thamel Restaurant & Cocktails nem com uma pistola encostada à têmpora. Não tarda o Porto estará como o resto do mundo ocidental cheio de bio, organic, gourmet, fine food, fusion e por aí fora. Não há razão nenhuma para acelerar o que já de si é inevitável. Mas hoje as condições não são normais (apesar de tão pouco serem raras, infelizmente) e tinha a pistola da fome e a metralhadora da falta de paciência apontadas uma à têmpora e a outra às pernas, de maneira entrei no supra-mencionado Thamel, atraído pelo preço dos mo-mo, cinco euros e - comprovei posteriormente - bastante bons. Claro que a conta final foi substancialmente superior, prova (como se fosse necessária) de que o melhor momento de um preconceito é quando morre e é substituído pelo seguinte.

Do Thamel vim ao bar Pipa Velha, onde amanho estas linhas. Não tem natas frescas. Já nenhum bar as tem, com a possível excepção do Procópio, que não é bem um bar propriamente dito, é a sala de espera para um dos paraísos ou um dos céus ou do que quiserem. De modo bebo um LBV, simultaneamente caro e barato para a função que lhe proponho: manter-me acordado o tempo de... Enfim, pouco importa. Duas coisas a reter: o restaurante Thamel (um dos seus cocktails é bom, apesar de se chamar Dancing Monk)... Não interessa. Ao meu lado estava uma senhora sozinha que lia o seu telefone enquanto comia. Trouxe-me à memória os tempos em que fazíamos a mesma coisa com jornais, livros ou revistas. Uma modernice que se queira imprescindível precisa apenas de prolongar o passado: fazer o que sempre se fez, de uma forma mais prática, mais leve

Uma das paredes do bar Pipa Velha está coberta de posters de espectáculos; a outra, em face, de retratos (medíocres) de artistas e actores famosos. O senhor que fez isto quer visivelmente garantir aos seus clientes que estão a caminho da intelectualidade, de se tornarem famosos. Estão no sítio certo para isso. Estão. Não sou famoso por coisa nenhuma, nunca o fui nem serei, não sou nem quero ser artista ou intelectual e apesar disso tudo sinto-me bem aqui. Gosto da música - rock - da decoração clássica (estou de costas para os retratos), meio pub inglês meio irlandês, das madeiras, do arco de pedra, de tudo incluindo ficar muito perto do hotel San Marino, a minha casa, refúgio, abrigo no Porto.

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Objecção à modernidade: a falta de natas. O Irish coffee saiu de moda. O único sítio onde se pode beber um decente é no já mencionado Procópio.

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«Modernices»... Que bizarra relação tenho com a modernidade, eu que sempre disse (às vezes ironicamente, verdade seja dita) il faut être moderne. Agora escolho as «modernices» como escolho as cerejas do prato que a dona da casa generosamente traz para a mesa. É mal-educado? Sem dúvida. Privilégios da idade.

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Sinto-me um funâmbulo com uma enorme vara num arame fininho por cima de um abismo. Para um lado, a solidão. Para o outro, a não-solidão. O referencial é sempre ela, a solidão. Presente ou ausente, é ela que dá nome ao abismo sobre o qual avanço, balanceio, me desequilibro e me equilibro. Instável o equilíbrio, lento o avanço. No fim do caminho ela ganhará. Ganha sempre.

8.4.22

Oxímoro lusitano

Português, burguês e livre? Há aqui um oxímoro, salta aos olhos. Português e burguês existe há para aí cem anos, mais coisa menos coisa. Burguês e livre? Desde que a burguesia foi inventada os há e houve. Português e livre é que não se vislumbra. Povo amarrado ao medo, ao respeitinho e à pobreza: tripla prisão da qual poucos - muito poucos - escaparam.

Apologia (tardia) da burguesia

A burguesia é simultaneamente o melhor e o pior que as sociedades humanas produziram até hoje. Só vive numa sociedade sem burguesia quem não pode fugir para as que a têm. E destas só os burgueses - ou quem o quer ser - foge para as outras.

No meio está a virtude? Bênção e maldição, simultaneamente. Blake dizia que a estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria. Só é verdade se se pensar que excesso e erro são sinónimos - são, para a burguesia. Entalada entre a aristocracia e a grei (deixemos clero e militares de lado), a burguesia oscila permanentemente entre o desejo e o risco do excesso - que é a marca das sociedades sem burgueses. 

A burguesia não é o cemitério de ideias, paixões e cautelas que imaginam artistas, intelectuais (que de resto nela nasceram) e aristocratas (ou aquilo que hoje os substitui). Ou melhor: é isso mas não é só isso. Um burguês é a mistura de um aristocrata capado e de um homem do povo que aprendeu a ler, escrever e comer de garfo e faça. É desse encontro de poder cerceado e educado que nasce a civilização.

Civilização essa que permite excessos - e os transforma em virtudes.

6.4.22

Chave, mundos

Como a chave busca uma fechadura ele buscava um mundo no qual encaixasse. Um mundo ajustado, à medida, sem folgas. Gastou nisso uma vida, vida e meia.

Preguiçosamente, é preciso dizê-lo. Vagarosamente. A solução simples seria adaptar-se ele aos diferentes mundos que visitava. Porém, repugnava-lhe a ideia de alterar um simples ângulo que fosse do seu perfil. O mundo onde naquele momento se encontrava que encaixasse nele, se quisesse. Nada o impedia - excepto, ocorria-lhe de vez em quando, a sua (dele) pouca vontade de receber fosse quem fosse.

Mamo-realismo

Mais vale um par de mamas pequenas à mão do que um delas grandes à vista.

Portugalidades

O restaurante onde vou frequentemente almoçar é pequeno, bom e barato. Mesmo à frente tem dois lugares de estacionamento daqueles com restrições, creio que para aleijadinhos ou para descargas, algo assim. A clientela é sempre a mesma e inclui uma equipa da EMEL, que lá vai almoçar quase todos os dias, como nós. Quando acabam de comer e retomam o trabalho têm o cuidado de perguntar se algum dos outros clientes tem o carro estacionado nesses lugares.