8.12.20

Parábola

Como um navio-tanque encalhado a meio da noite, à espera que a maré suba e o vento caia. Neva, quase de certeza. A frente fria é vasta, a depressão a que está associada profunda. Já alijou todo o lastro que podia. Mais, só indo a carga. Fora de questão, claro. Não se resolve um problema criando outro maior. Está encalhado num baixio cartografado. Foi erro, azar ou a habitual mistura dos dois? Raramente andam separados, daí serem tantas vezes confundidos. Já enviou o tradicional telegrama: "Encalhei o navio." Quando desencalhar enviará outro: "Desencalhámos o navio." Não há a menor dúvida de que se vai safar? Há, claro. "São os capitães demasiado seguros de si próprios que perdem os seus navios." A dúvida salva. Sem ela estamos perdidos. Não basta esperar que a maré suba, o vento caia ou ronde, o navio aguente. Se pudesse, mandaria transfegar carga para a distribuir pelos tanques. Quer mais peso a ré e menos a vante. Mas os tanques estão cheios a deitar por fora. Nada a fazer, desse lado. Não perde muito tempo a analisar o que o trouxe ali. Isso fica para depois. Agora, há que safar o navio e a tripulação. Manter a ordem a bordo. Ordenar. Classificar por prioridades. Arrumar. Filtrar o essencial do acessório. Não deixar a situação piorar. Aguentar firme, um pé na certeza o outro na dúvida. Não ter medo, sabendo-se o elo mais  fraco da cadeia. Se o vento sobe e as vagas crescem o navio pode partir-se em dois. Ou avançar mais no baixio. Resistir à tentação de pôr as máquinas a trabalhar, sob pena de as encher de areia. Não tem um ferro a ré e se tivesse de nada serviria. Tem de esperar pelo rebocador. Vem a caminho. Nada a fazer senão isso: esperar, um olho no barómetro, outro no anemómetro, outro no radar, outro na sonda. Sobretudo, não deixar crescer o temporal que de dentro espreita a primeira ocasião para se apoderar dele, da situação, de tudo. Esperar. Aguentar. Quando o rebocador chegar há que ter os cabos de reboque preparados.  Quantas braças? Não sabe. É o capitão do rebocador que lho dirá. O imediato e o contramestre tratam disso. Deixar cada um fazer o seu trabalho. Não se intrometer. Pede um café à cozinha. A noite vai ser longa. Todos os encalhes duram uma vida.

"Desencalhámos o navio."

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