17.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 17-12-2023

A minha ideia de tratar primeiro da logística obteve resultados mitigados: as comunicações (leia-se «rede») e a tinta para as canetas tiveram de ficar para amanhã, segunda-feira; em contrapartida encontrei o bloco-notas Clairefontaine sem o qual as ideias não fluem e a mão se paralisa, coitada. O soma também está por metade: ontem um problema ficou resolvido e amanhã dou o segundo passo para tratar do outro, por sinal o mais importante, o que estaria pendente da boa vontade do SNS, «o melhor do mundo» como dizem tolos e socialistas - passem-me o pleonasmo, por favor.

De maneira a vida nos trópicos organiza-se à maneira dos trópicos: pouco a pouco. Em contrapartida, o duche frio pela manhã, a manteiga pronta a ser barrada cinco minutos depois de sair do frigorífico, o vizinho de baixo que pára espontaneamente para me dar boleia, os planteur (agora a um preço infame) e os ti'punch (ainda acessíveis), a gentileza de toda a gente com quem nos cruzamos ou interagimos - isso é imediato. 

........
A distância que separa o fim de um dia do dia do fim é a mesma que vai de agora a daqui a bocadinho, Resta definir «bocadinho» e em que plano o situamos: no metafórico? No primeiro grau? Não sei. Venho ao Indigo, um sítio aonde raramente vinha antes e ali encontro o melhor planteur até à data, ao preço habitual: onze euros! Onze euros por um planteur? Está tudo doido. Vou ter de comprar os ingredientes e fazê-lo em casa, mas não é a mesma coisa. Como toda a gente sabe, uma bebida num bar é diferente da mesma bebida em casa.

.........
Numa mesa perto da minha dois idiotas metem-se com a empregada, que é jovem e bonita. São grosseiros, as piadas não têm graça nenhuma, são grasses como dizem os franceses. A miúda lá vai respondendo o melhor que pode, tentando não ser malcriada. O «bocadinho» leva-me imediatamente a uma cena de há quarenta anos, dois jovens marinheiros em Calvi a flirtar com uma jovem e bonita empregada de mesa. Não éramos grosseiros e as nossas piadas tinham piada, mas isso não impediu o patrão de sair da cozinha com uma interminável faca na mão e nos pôr na rua - depois de pagar, claro.

........
Hoje é dia de passeio pela ilha. pelo que (cont.)

.........
(Continuação.)

O passeio pela ilha consistiu numa volta à metade sul da dita, com paragem em casa da S., minha cunhada (há ex-cunhadas?). Demasiado verde, demasiado bonita, demasiadas curvas, demasiado espanto; muito amor paterno-filial, um grande prazer com o P. C. - gosto de pessoas que se escondem, que não se dão a ver nem à décima quinta vez - um péssimo almoço e um óptimo proto-jantar no Indigo. O dia termina em casa com um rum La Favorite e o Lamento d'Arianna. Sei que tudo isto terá um fim, mas isso não me preocupa. Antes pelo contrário: limito-me a esperar conseguir sugar cada mili-segundo porque a felicidade é como a navegação - um dia bom paga dez maus e quanto mais eu puder viver momentos como este mais capital-felicidade terei para enfrentar a inevitável factura.

........
Amanhã: Fort-de-France para tratar do soma e do que resta da logística. Parece-me um bom mix. A forma e o conteúdo. Sinto-me como a jovem tartaruga que saiu da praia e chegou finalmente à água do mar: aquela travessia da areia pareceu-lhe, estou certo, uma eternidade. E o que a espera não é outra. São muitas. 

(Aos sessenta e seis anos, com a carcaça a degenerar a olhos vistos, o gajo atreve-se a pensar que ainda tem uma eternidade ou duas pela frente. Conhecendo-o como o conheço, sou capaz de acreditar que sim, tem. Eternidades, breves, curtas, mas eternidades.)

.........
Troco Monteverdi por John Field, cortesia do Youtube. Troco um rum por outro, um dia pelo que se lhe segue. Troco tudo menos tintas: isto tem um método, um sistema, um dispositivo, um objectivo, um alvo, mas as cores são sempre as mesmas: azuis, verdes e o dourado do rum, quando não é branco. Sou um gajo de vistas longas e palettes reduzidas.

........
Penso nas pessoas que me levaram do azul ao verde: a Helena R., a Rosa C., o Henrique P. dos S. (com métodos diferentes, apresso-me a esclarecer). Não me lêem, mas deixo-lhes aqui na mesma a minha vénia de gratidão. Eterna, transversal a todas as vidas. Creio que foi Adorno, mas não tenho a certeza, quem disse que cada artista cria os seus predecessores. Qualquer coisa do género, a citação está longe de ser verbatim. Hoje pensava nisto, perante a explosão de verdes, a bruta beleza e força desta natureza: desde o choque da chegada a Quepos, desde a viagem ao longo da Tramuntana com a T., desde a viagem de hoje ando para trás, para as viagens de jipe na Zambézia, para os dias no Panamá e a vida dá uma volta e aqui estou de novo hoje, mistura mal cozida de ontens e amanhãs - porque estes hojes fazem e farão parte deles, só por isso, apesar de não se misturarem bem, precisam de tempo. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.