31.12.19

Diário de Bordos - Neuaubing, Bavária, Alemanha, 31-12-2019

Neuaubing (ou Aubing, aparentemente. Neuaubing é a estação, não sei se designa também o sítio) é um subúrbio de Munique. Não o conheço suficientemente para o descrever: nos cinco minutos que dura o trajecto entre o comboio e o hotel vejo um supermercado, vários stands de automóveis e garagens, dois ou três bares, cafés e um spielcenter (não sei o que é. Visto de fora não dá vontade  de entrar). Em si, o lugar não é nada apelativo. É feio, desagradável apesar da limpeza e do aspecto bem-tratado das ruas, passeios, edifícios e de tudo o que se vê. A fealdade não lhe vem da falta de cuidado.

Vim aqui parar porque foi o hotel mais barato que encontrei no booking. O hotel - que se auto-designa hotel, motel e pensão nos diferentes suportes que vi - fica nas traseiras de um edifício que alberga o tal spielcenter,  duas garagens (uma das quais, provavelmente, especializada em VW carochas antigos: o pátio está cheio deles). O quarto é à imagem de tudo o resto: funcional, limpo, confortável. Não tem casa-de-banho mas tem um duche... Enfim, um micro-duche. Pergunto-me quem raio teve a ideia de pôr aquilo ali, tanto mais que a cama é para uma pessoa só. Fosse para duas... - não haveria espaço, mas pelo menos compreender-se-ia a função do duche. Deve haver dedo da regulamentação, por aqui.

Comprei uma garrafa de Chianti, um camembert, um pouco de carne seca - uma espécie de presunto da Floresta Negra -, pão e um tubo de mostarda e preparo-me para me despedir de 2019 sem grandes comoções, emoções, sentimentos ou outros. O ano foi bom e mau, como todos: teve períodos extremamente duros e outros extremamente bons, teve uma pequena e breve história de amor que começou e acabou mas podia não ter começado e não ter acabado (em cujo caso terminaria o ano cheio de dúvidas, quase de certeza). Estou de novo numa fase de impasse mas sei que este será mais curto do que o anterior e até agora tem sido mais leve. É uma comichão, não o golpe profundo que foram os meses todos que passei em Palma a desesperar.

Teve, sobretudo, a publicação do livro. Como todas as coisas que inicialmente não se querem, agora deixa-me feliz, apesar dos problemas de edição. Tenho, um livro, vai haver mais e melhores.

O Chianti não é mau, o «presunto» é francamente bom, o queijo uma merda indescritível. Vá lá que é «Bio»... Não. Vá lá que era o mais barato dos camemberts à venda. Uma vez trabalhei numa quinta, na Suíça, nas montanhas do Jura - que prefiro aos Alpes por serem mais redondas e mais macias. Os agricultores suíços vivem apertados, muito apertados, apesar das subvenções que recebem. A dona de casa - uma balzaquiana esplêndida, escultural, que trabalhava tanto como o marido, ou seja: muito - só comprava as coisas que estavam em promoção na Migros (é uma das cadeias de supermercados da Suíça, para quem não sabe). Um dia disse-lhe que no fundo quem escolhia o que se comia lá em casa não era ela, era a Migros. Não me lembro da resposta da senhora, mas gosto de pensar que me calou com um «digamos que somos os dois, a Migros e eu». Ñão tenho uma entidade a quem possa apontar as minhas escolhas, mas deve haver na minha vida uma Migros qualquer omnipresente, englobante, que por vezes sai do buraco onde se anicha. Um ersatz de Migros... Não ganha sempre, longe disso: Recuso-me. Compro coisas baratas nos dias de seca e desforro-me nos de chuva. Hoje não foi um desses, mas qualquer dia virá uma chuvada das fortes e ficará tudo inundado. Inch'Allah.

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Fui passear a Munique. As ruas estavam sufocantes de gente, a maioria tendo o démarche vaga e o olhar disperso dos turistas.  Os locais distinguem-se imediatamente, pelo andar enérgico e os olhos postos no destino. Comi num desses restaurantes tradicionais que o Tripadvisor me garantiu - com razão - ser bom (e barato, mas estou farto deste termo e vou arrumá-lo numa gaveta). A cidade é bonita, mas a verdade é que sou um péssimo turista: gosto de descobrir uma cidade, não de a visitar.  Por muito que goste de turismo e de turistas - e aprecio-os muito - nunca os compreenderei. (Não estou a ironizar. Ao contrário do que muita gente pensa, a Suíça não é rica por causa dos bancos. O que tirou aquele país da miséria foi o turismo, muito concretamente o senhor Thomas Cook, cuja empresa acaba recentemente de ir à falência. A Suíça tem bancos por ser rica, não o contrário. E antes do turismo era um país miserável. Portugal não vai aproveitar esta vaga de turismo, claro: gostamos demasiado de ser pobres. Comprazemo-nos na pobreza como os porcos chafurdam na lama).

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[Adenda: o projecto de me despedir de 2019 sem grandes emoções falhou. Paciência.]

29.12.19

Saúdes

Espero bem que me perdoem, mas por vezes duvido da saúde mental dos obcecados com a saúde física. Não consigo impedir-me de pensar que é estranho alguém submeter-se a uma série de sacrifícios para ter um corpo capaz de suportar o que esses sacrifícios vieram substituir.

Zoologias

A cabra da velha cadela preta voltou. Tanto gostaria eu fosse para a pata que a pôs.

27.12.19

O monte dos sonhos abandonados

Vivo ao lado de uma estação de comboios que é a última da linha. Daqui, os comboios só podem voltar para de onde vieram. A estação é grande, tem bastantes cais, alguns já não usados, como um garfo com demasiadas pontas. Depois dela começa o lago. Digo começa porque a minha cidade fica-lhe numa das extremidades. Do outro lado, montanhas cobertas de neve que nos dias de foehn se aproximam e nos de chuva ou neve deixam de se ver.

Ao lado da estação há um pequeno monte invisível para a esmagadora maioria dos viajantes que chegam ou partem da cidade. Não tem forma, nem cor, nem cheiro. Não se sabe se é grande ou pequeno, arredondado ou pontiagudo, se é íngreme se espraiado. Perguntei a toda a gente na cidade, mas ninguém nunca o tinha visto. Os anos foram passando e eu afeiçoei-me ao lugar. Gostava da arquitectura, salva da destruição devido à manha do presidente da câmara durante a guerra: em vez de obedecer às ordens de couvre-feu, ordenou que se mantivessem as luzes todas acesas, para que os bombardeiros inimigos pensassem estar ainda no país vizinho.

Contudo, aquele monte intrigava-me. Seria eu realmente o único a vê-lo? Um dia entrei na loja da Monika, uma senhora de idade que para  ocupar a reforma vendia aguarelas e histórias do outro mundo (literalmente: ela acreditava na existência de mundos paralelos, realidades diferentes, cheias de fantasmas e energias benéficas ou  maléficas, consoante eram abordadas correcta ou incorrectamente). Estava nas traseiras, a fumar um dos três charros com que mobilava os dias. A cidade é pequena, mais vila do que cidade, ninguém rouba nada a ninguém (e muito menos à Monika, mas isso é outra história).

- Monika, olá. Bom dia. Como estás?
- Viva, Luís (ela pronunciava Louis, em francês, sem o s final: Lui). Estou para aqui a fazer arrumações. Olha, encontrei qualquer coisa que te pode interessar.

E mostra-me uma aguarela onde estava, claramente representado, o monte que eu continuava a ver e mais ninguém via.

- Não és tu que queres saber o que é isto aqui, ao lado da estação?

Fiquei paralisado. Monika fora uma das primeiras pessoas, depois do pessoal da estação, a quem eu perguntara que raio era aquilo e uma das todas que me respondera "Monte? Qual monte?'  Era grande, quase da minha altura; a idade não lhe curvara as costas. Embranquecera-lhe o cabelo e avivara-lhe a mirada, só. Há muito vivia sozinha, perdera o rasto ao marido. "Pelo menos neste mundo. No outro sei muito bem o que anda a fazer", dizia-me por vezes, quando eu lhe levava uma garrafa de schnapps local, mirabelle destilada por um vizinho nos tempos livres, que eram todos. O homem estava reformado e não fazia outra coisa se não destilar aguardentes, para ele e para os vizinhos.

- Aquele monte, Lui, chama-se o Monte dos Sonhos Abandonados. Foi começado pelo sacripanta do meu ex-marido, que o Inferno o tenha e o queime devagarinho. Um dia, resolveu abandonar os sonhos incoerentes, os sonhos que não fizessem sentido...
- Nenhum faz.
- Claro. Por isso o monte cresceu tão depressa, inicialmente. Todos os dias ele lá ia deixar um ou dois, mas pouco a pouco os sonhos foram mudando. Começou a sonhar sonhos com sentido, coerentes e verosímeis.
- Contos?
- Exactamente. Contos. Acordava, sentava-se à mesa, escrevia-os numa velha máquina de escrever que o pai dele adquirira a um soldado americano e vendia-os a um jornal daqui. Nessa altura os jornais compravam e pagavam bem, mesmo a pequena imprensa local. Eu ilustrava o que ele escrevia. Vivíamos bem. Todas as noites fazíamos amor. Dizia-me "Os sonhos ficam melhores se forem precedidos de uma boa foda." Volta e meia lá lhe aparecia um sonho incoerente e ele levava-o para a estação. Nesses dias, as histórias eram mais fracas, mas o editor do jornal não se importava: sabia que no dia seguinte a coisa melhoraria. Tens alguma coisa que se beba?
- Não, mas posso ir a casa buscar uma mirabelle.
- Não. Vai antes aqui ao lado ao Joseph e compra-lhe duas cervejas. Diz-lhe que são para mim. - Nunca vi Monika pagar o que quer que fosse onde quer que  fosse, mas a verdade é que toda a gente lhe vendia tudo.

Bebemos a cerveja devagar e em silêncio. Entre dois goles eu olhava para a aguarela. O monte estava lá, claríssimo, mas era impossível definir-lhe a forma. Exactamente como quando eu o via, nas minhas excursões quase diárias à estação.

- A verdade é que o monte deixou praticamente de crescer. O palerma deixou de ter sonhos incoerentes. Um dia acordou, disse-me "Não sei para onde vou, mas sei que não é por aqui", pegou num saco, pôs meia dúzia de camisas, dois pares de calças e um de sapatos lá dentro, meias (o filho da mãe não usava cuecas, vê tu bem), lâmina de barbear, pasta e escova de dentes - pergunto-me para quê, o homem só lavava os dentes quando os morcegos se lhe queixavam do hálito - e foi-se embora. Nunca mais escreveu uma linha, que eu tivesse visto. Durantes uns tempos enviava-me dinheiro, todas semanas, o que significa que estava a trabalhar - gostava de ser pago à semana - mas depois até isso parou. Percebeu finalmente, aposto, que um sonho coerente é como água destilada: é muito útil mas é estéril.

- Então porque não voltou, buscar os sonhos ali amontoados? Estão ali imensos, teria material para muitos anos.
- Não sei. Provavelmente uma história de saias. Se calhar, começaram-lhe as fodas a não ser tão boas... Vai buscar a aguardente, Lui.

26.12.19

Santas e apostasias

O Ocidente matou Deus mas por uma razão que eu não conheço trocou-O por uma série de pequenos deuses seculares.

Uma senhora diz-me que há uma diferença entre religião e espiritualidade, ignorando o facto singelo de que a espiritualidade está na base da religião.

É curioso verificar que os muçulmanos não trocam de religião, nem os budistas. Isto é privilégio de cristãos e judeus.

Por mim, simultaneamente ateu e conservador, acho estúpido: demónio  por ďemónio, antes os já rodados, conhecidos, familiares. Santa Greta nunca chegará aos calcanhares de Santa Teresa d'Ávila, faça o que fizer.

25.12.19

Francofilia e tudo o que a precedeu

Vou dar uma volta à ilha. É uma tentação estranha, esta: quando se está numa ilha ninguém resiste a dar-lhe a volta, seja de carro, de barco, a pé, de bicicleta. (De avião não creio, é desnecessário: vê-se o território todo de uma vez.) De onde virá esta necessidade de delimitar o território, de lhe percorrer as fronteiras? De nos certificarmos que sim, estes são bem os limites? Ou será antes uma forma simples e pragmática de se maximizar o percurso?

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Tudo fechado. Lembro-me dos domingos na Suiça, quando lá cheguei, dos domingos no Reino Unido quando aquilo ainda era a Inglaterra, dos domingos na Alemanha aqui há um ror de anos e começo a pensar na estranha capacidade que estes povos têm de desligar, de se fechar. Num país latino, penso, haveria montes de cafés e restaurantes abertos, lojas de chineses... Chego à estação e vejo uma tasca (ou aquilo que aqui passa por tal) aberta. Um snack indescritível, com música abominável, sem qualquer espécie de decoração outra do que a simpatia com que sou acolhido.

O senhor é um alemão não se pode mais alemão, pergunta-me se estou com fome - primeiro na sua língua depois em inglês, quando lhe explico que não percebo. Digo-lhe que não: um vinho quente, por favor. Tenho pena de não ter fome, o homem inspira confiança, com o seu casaco de cozinheiro, cabelos brancos e grande barriga. É assim que todos os cozinheiros deviam ser - ou eram, antes de serem chefs e estrelas.

O lugar não tem qualquer espécie de decoração, é feio, mas de tão feio fica bonito. Talvez a estética seja um englobante e fora dela nada exista. Existirá tal coisa como a ausência de estética? Não sei. Para mim, sensível à beleza como sou, a primeira tentação é dizer: 'Sim, existe». Mas olho em redor e vejo que há uma beleza nesta funcionalidade seca; a simpatia do senhor - e da mulher, que deve ser tailandesa - são mais um elemento da decoração, são parte integrante do lugar, como o balcão de vidro e alumínio e as mesas de fórmica.

Se a estética é um englobante, então temos de aceitar que há muitos: a comunicação, por exemplo. O amor? Não, este não.

Penso que é a verdade. Aquele snack é bonito porque é verdadeiro. Ou melhor: honesto. Não pretende ser o que não é. Estética e honestidade são duas irmãs gémeas, simbióticas, siamesas.

Continuo o passeio, reaquecido pelo glühwein e do outro lado da estação há montes de cafés e restaurantes abertos...

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Está frio e o meu equipamento para ele é insuficiente. Lembro-me do norueguês cujo bote fui levar a Copenhaga: «Não existe "está frio." Só existe "Não estou adequadamente vestido."»

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E agora, en route para um poulet à l'antiboise e um gratin dauphinois. Deu-me para a francofilia, hoje (não foi hoje. Foi ontem e em boa hora: não há um supermercado ou uma loja aberta.)

24.12.19

Uma série de primeiras e uma receita de sobremesa (mousse de banana com gengibre e limão verde)

Comecei por fazer duas coisas ao mesmo tempo: a) cozer brandamente num decilitro de água e não sei quanto açúcar amarelo (para mim, muito), o zeste picado de duas limas e meia e um bocadinho de gengibre ralado e b) pôr três folhas de gelatina a diluir em água fria. Enquanto aquilo cozia e diluia espremi as três limas e no sumo misturei umas sete ou oito bananas esmagadas. Acrescentei rum, a água da cozedura das limas e do gengibre e as folhas de gelatina. Bati tudo isto muito bem, acrescentei um pouco de cardamoma e pus no frigorífico.

Acreditem se quiserem mas ficou francamente bom, doce sem ser enjoativo. Só precisava de ter levado um bom bocado mais de frio, mas o congelador da casa não pode com uma gata pelo rabo.

Gata essa que de resto foi levada à Áustria, oferecida, o que explica que eu tenha comido a dita sobremesa naquele país, hoje, véspera de Natal. Não vi nada, claro, aquilo foi ir com a gata ao colo e a miar de partir o coração, jantar - uma peça de porco absolutamente sublime, acompanhada por um Tuella demasiado redondo para o meu gosto mas apreciado pelas senhoras -, sobremesa, uma sesta pós-prandial no sofá da sala da anfitriã que não só não se importou nada como ainda me presenteou uma garrafa de aguardente de peras que pede meças à do meu amigo muçulmano (praticante) de Lausanne - o senhor não bebia uma gota da melhor aguardente que já bebi na vida. Esta anda lá perto. É caseira, também.

Ficam várias primeiras para a história: primeira ida à Áustria, primeira vez que me afeiçoei realmente a uma gata (literal, não metafórica) e pela primeira vez bebo uma aguardente que anda perto da do marido da S. (não há maneira de me lembrar do nome dele). Era chauffeur de táxi e quando começava a chover parava tudo e ia a casa pôr as garrafas de gargalo para baixo: fazia crescer as peras dentros de garrafas penduradas nas árvores (claro) e virava-as para não se encherem de água. A aguardente era pura e simplesmente sublime. (Nunca soube porque as voltava a pôr de gargalo para cima mal parava a chuva, mas agora é tarde.) Esta anda lá perto. É destilada por um senhor cujo passatempo é destilar bebidas e tem o seu próprio alambique. A ideia de que os alemães - neste caso austríacos - não sabem apreciar a vida deve ser revista. Como seria a burocracia em Portugal se alguém quisesse destilar o seu próprio medronho? (Ninguém quer, que horror. A pergunta é puramente retórica.)

22.12.19

Chegou a hora, Luís

Bom, chegou o inevitável momento de desejar Boas Festas a todos os que me lêem, os que não me lêem, os que... os que não... e por aí fora.

BOAS FESTAS, FELIZ ANO NOVO (em maiúsculas porque é gritado e vem de cá do fundo).



(As fotografias são um bocadinho pleonásticas, eu sei. Desculpem.)

Abaixo as Festas

A tempestade de ontem deixou poucas marcas exteriores. Com as outras, vou ter de viver até Janeiro. Nunca gostei da merda das Festas, mas este ano vou positivamente odiá-las.

Affogato

Talvez não seja o momento adequado, mas devo aqui deixar registado que (pelo menos) alguns italianos chamam affogato  a uma mistura de gelado de baunilha e café - basicamente, uma bica em cima de uma bola de gelado de baunilha.

Isto tem dois apelativos: o nome e o sabor.

Apelo para que as coisas se dissolvam

A insolubilidade das coisas que deviam dissolver-se e não se dissolvem é uma das facetas desagradáveis do Universo. Imaginem que viam o açúcar na Coca-Cola: bebê-la-iam?

21.12.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-12-2019

O filho de puta (peço desculpa aos crentes, mas é o único termo adequado) que coordena estas coisas lá em cima encontrou finalmente maneira de me fazer pagar a felicidade destes dias. As palavras de ordem da casa são: «Energia positiva» e «Tout ira bien». Partilho as palavras de ordem.

Quanto ao resto não garanto.

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Entrou badanal, desta vez com força. Estava no café Antiquari a dissolver as coisas do parágrafo anterior. Telefonei para a marina e disseram-me que está tudo em ordem. Continuei no café Antiquari a dissolver as mesmas coisas. Não se dissolveram, claro - as coisas que precisam de ser dissolvidas não se dissolvem, por natureza.

Peguei num táxi e fui a bordo. Está tudo bem. Não conto isto para mostrar que sou o melhor skipper do mundo. Não sou. Conto para explicar porque gosto deste trabalho mais do que qualquer outro: não é um trabalho, é uma parte de mim. Por acaso, a parte de mim de que mais gosto, mas isso é outra história.

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Bebo Fernet-Branca - uma forma particularmente desagradável de se engrossar, se por acaso alguém quiser saber - e vejo o vento lá fora. "Ver" não é figura de estilo. Vejo-o nas coisas que estão do lado de fora da montra, na roupa das senhoras que saíram para fumar e - sobretudo - vejo-o no casco do meu P. Estou aqui, de regresso ao café Antiquari e estou lá, com ele, aguentado com dois cabos de vinte à proa, a mais de um metro do pontão - e mesmo assim tão perto.

Não há Fernet-Branca, Mount Gay ou o raio que cure isto. A piada está em eu sempre ter dito que nunca quereria ter um restaurante, porque "é pior do que um casamento".  Um barco é pior do que um casamento e um divórcio juntos.

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Entrou badanal - no porto e na minha alma. Esperemos que passem depressa, ambos os dois. Um passará depressa, eu sei: amanhã ou depois. O outro, só lá para Janeiro. Inch'Allah.

Inch'Allah, minha querida. Não deixes o filho de puta lá de cima ganhar, está bem?

Alterações culturais

Palma está cheia de gente: ruas, cafés, restaurantes, lojas. Nem no Bar Rita consigo escrever. Ou muito me engano, ou o planeta vai acabar antes de o Natal desaparecer da paisagem cultural.

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Entretanto, a minha busca por uma mulher feia continua - e continua infrutífera. U. vê nisto um drama - diz que é o resultado da interferência das senhoras na própria beleza, como os homens (e as vacas) interferem no clima, acrescento eu. Mas U. é bonita, quatro patamares acima da média numa escala que contém três patamares para cada lado, sem qualquer espécie de interferência. Creio que nem com bâton a vi.

Felizmente, segunda-feira vou estar com uma senhora que é ainda mais bonita do que a U. (não desfazendo) e vou esquecer-me da função equilibrante, pacificadora e essencial das mulheres feias.

Cozinha de fusão

Hoje fiz uma harissa (h'rissa para os puristas) para acompanhar as merghez (ou merguez ou uma série de outras grafias). A harissa ficou óptima, mais graças à qualidade da alcaravia com que a temperei do que a quaisquer méritos. Aquilo consiste em misturar malaguetas, alho, azeite, alcaravia, cominhos e coentros em pó (no meu caso. Há outras opções), salgar um bocadinho e picar bem. É muito melhor do que a que se compra no comércio, garanto.

Foi tudo abaixo com cerveja. Este é o tipo de cozinha de fusão de que gosto.

[PS: quando sair de Palma vou precisar de um contentor para levar as especiarias do Cristian...]
[PPS: fui a alguns dicionários procurar a tradução de caraway, cumin-des-près, alcaravea, que não conhecia. Até hoje tenho feito com cominhos. Com alcaravia é um milhão de vezes melhor, mesmo que depois tenha acrescentado um pouco de cominhos e outro de coentros.]

20.12.19

O horror das coisas que já aconteceram mil vezes e me tinham prometido nunca mais se repetiriam

Descubro com horror que estou farto de Palma. O horror é tão genuíno como a surpresa. É o equivalente de se descobrir que o livro lido e relido desde a juventude afinal é uma merda; ou que a mulher amada não passa de uma loira (ou morena, ou ruiva, ou careca) linda e burra como as dos livros. E ainda ontem me apaixonei por esta cidade...

O pior é que falei com duas pessoas aqui "estabelecidas" há muito mais tempo do que eu (a U. da Sifoneria e o F. do Antiquari) e ambas me disseram o mesmo. É aterrador. A beleza é uma trampa. ("Trampa" pode ler-se em espanhol e em português, à escolha.)

E ando eu feito parvo por estas ruas a pedir que me apareça uma mulher feia à frente... E eu feito parvo a pensar que certas coisas não se repetem.

19.12.19

O que não é meu

- Era um amor artesanal, feito à mão... Escrevíamo-nos todos os dias com canetas de tinta permanente e em papel que ele comprava na papelaria Brachard, em Genebra. Era o único papel decente para cartas, dizia-me. Falava-me do futuro, das suas visões, dos seus sonhos e eu contava-lhe o dia-a-dia, as contas por pagar, as conversas (ou discussões, ou o que fosse) com os vizinhos. Era uma correspondência assíncrona, por assim dizer. Enfim, todos os dias é um exagero, uma vez por semana, por vezes duas. Mas não passava uma semana sem uma carta dele, isso é garantido. Cartas enormes, que ia escrevendo ao longo dos dias, até as considerar prontas. «As cartas acabam por si próprias», explicava-me.

Dizia-me que tinha bastante a aprender comigo, apesar de eu ser muito mais nova. "Em troca, ensino-te a diferença entre um bico, um broche e uma felação; mais: ensino-te a fazer cada um deles como deve ser. É a única coisa que te posso ensinar. Aproveita, é uma proposta desinteressada." Tinha o humor de quem já viveu muito e tem poucas ilusões sobre si próprio e sobre os outros.

Sei perfeitamente o que viu em mim: esta mistura de humor e sensualidade, a que ele chamava "um pleonasmo. Não existem separadamente."

"Respiras sexo como as outras oxigénio. Um gajo olha para ti e pensa que está a ver uma imagem da lubricidade. Mas ouve-te e vê que não: antes uma imagem da inteligência. Depois não sabe bem o que é, perde a cabeça, desinteressa-se - não vá o diabo tecê-las - mas a verdade é que cabeça perdida ou não tu não sais de lá e já que por ali andas, ao menos que andes nua, como dizia já não sei quem." Isto vinha logo numa das primeiras cartas que me escreveu, ainda eu me perguntava se aquilo era uma estupidez, uma loucura, uma simples palermice ou se valeria a pena experimentar. Pagar para ir a jogo, como ele dizia.

Nas cartas eu incluía por vezes fotografias de mim. Nua, a masturbar-me, em poses mais ou menos eróticas... Um dia desafiei-o para nos filmarmos, cada um do seu lado - ele andava sempre a viajar, não tinha poiso fixo. Acedeu, para minha grande surpresa. Tornou-se uma rotina, mas nem assim as cartas acabaram. Era um amor artesanal, garanto-te. Foi construído peça a peça, dia a dia, letra a letra, selo a selo ("lambe-se uma glande como se lambe um selo").

Um dia, ao pequeno-almoço, disse-me que devíamos acabar. Estava em Lisboa, entre duas viagens.
- Há quanto tempos andamos nisto? Um ano? Dois anos?
- Dois anos e três meses.
- Temos de acabar, antes que nos apaixonemos um pelo outro.
- Já estamos.
- Apaixonados sim. Mas ainda temos espaço para descer mais fundo. Ou subir, se preferires.
- E depois?
- Depois, tu és vinte anos mais nova do que eu e terás de te fazer à vida. Melhor que isso aconteça quando ainda és boa e bonita. Mais dois anos comigo e só atrairás intelectuais tesos, depressivos crónicos ou maníacos possessivos. Agora ainda tens cabedal para atrair um gajo decente, chefe de empresa ou director-geral na função pública.

Quase lhe dei uma bofetada.

- Obrigado pela contenção. Vou-me embora. Fica com tudo o que é meu e está cá em casa.

Morreu pouco tempo depois, no mar. Sabemos que foi um suicídio porque deixou uma nota a bordo. Fez as coisas de tal maneira que o barco fosse encontrado sem provocar danos, chamou o CROSS de manhã cedo, avisou que era possível ter de ir ao hélice e desapareceu.

A nota era-me dirigida. Dizia: "Não posso devolver-te o tempo que me deste e não gosto de ficar com o que não é meu."

(Para a T., com um beijo.)

(E para a Sandra Viva, da Tasquita d'Esquina, pela paciência)

Fragmento

"Há muitos anos (quinze?) vi uma exposição em Lagos. Exposição é um manifesto exagero: não foi numa galeria de certeza, mas não me lembro se a miúda expunha na rua se num café. Aposto singelo contra dobrado que foi na rua. Comprei-lhe uma série de quadros, que ainda tenho porque gostei imenso deles, pequenas obras abstractas que exprimiam melhor os dramas da vida dela do que mil palavras. A pintora era magra, loira, bonita e cheirava mal, pior do que um curral de cabras. Não sei como, acabou no meu quarto (eu estava num hotel, a organizar uma regata). Disse-lhe para tomar um banho, ofereci-lhe um jantar e ela pediu-me para "dormir com ela" (aspas porque cito), "mas sem a penetrar" (na proposta inicial, ela dormia no sofá). Já vi pedidos mais estranhos e acedi. Era sérvia ou croata ou daquelas bandas, conhecidas pela beleza das mulheres e pela brutalidade dos discursos. Falava mal inglês, mas de qualquer forma tinha notoriamente pouca vontade de falar e não insisti.

Foi uma das noites de amor (uso o termo propositada e adequadamente) mais terna que já tive. É muito raro isto acontecer, mas quando acordei ela já não estava. Creio, mas talvez imagine, que me deixou uma pequena nota. Não me lembro.

Recentemente revi os quadros, levei-os para Mértola e sonho com o dia em que os possa pôr numa parede.

Hoje - por isso penso nesta história - vim ao bar Rita e vi uma exposição menos abstracta mas com a mesma capacidade de me abalar. O autor é um homem mais velho e mais feio do que eu, chama-se Salvadiego (originalmente confundi com Salvadego, o que me tocou particularmente porque o meu Pai comandou um rebocador salvádego).

Comprei um quadro, dos mais pequenos. Lanento amargamente não ter dinheiro para mais e maiores. Como sempre, pensei imediatamente em o oferecer e perguntei-me a quem. Passei várias pessoas em revista. A busca durou pouco: vou guardá-lo. Ou pelo menos vou tentar guardá-lo. Não é fácil porque gosto de oferecer aquilo de que gosto, mas penso no prazer que tive quando redescobri os quadros da miúda balcânica. Talvez este me dê o mesmo gozo, daqui a uns anos, quando me lembrar desta noite em que me lembrei de ti.

Beijo."

Primeiros passos nas esculturas de velas

O processo de elaboração de uma escultura "vélica" (aspas porque não sei ainda que nome dar-lhe) está a revelar-se imensamente mais complicado, trabalhoso, caro e complexo do que eu esperava. O trabalho vem das limpezas que a elaboração da obra requer: a cera líquida escapa-se por tudo quanto é sítio. O custo, do preço das velas: apesar de as comprar baratas elas esfumam-se num ai. As complicações vêm das tentativas de gerir as interacções entre as diferentes velas. A complexidade, dos problemas criados por estas situações todas juntas.

Em contrapartida aprendo um montão sobre o comportamento destes fluidos (há outros piores), aprendo - pouco a pouco, dolorosamente pouco a pouco - a dirigi-los e orientá-los com fósforos, aprendo a limpá-los na secretária, no chão e nas paredes (um pano com um ferro de passar bem quente por cima, água e detergente) e sobretudo aprendo a antever o resultado. Penso que vai justificar todos estes esforços.

Não sei é daqui a quantos anos. 

18.12.19

Ouvido agudo

"Ya nos ensuciamos los dos", diz o ex-marido explicando a alguém que já foi casado com a senhora (o termo não é formalismo nem exagero) que está ao lado dele.

Talvez no fundo a tarefa do escritor se resuma a ser uma espécie de almeida, vassoura em punho e ouvido agudo.

17.12.19

Telefone, ideias, royalties et al.

Retido em casa à espera do carteiro. Maldito telefone, devia ter uma trela e não me largar. Isto dito, espero que a sueca não se lembre de reclamar contra os correios rápidos. Antes de chegar a Palma o aparelho passou por Vitória, no país basco e por Barcelona. A julgar pelas horas, Lisboa Vitória foi de avião, dali para Barcelona de camião e de Barcelona para aqui de avião outra vez. Pergunto-me se uma plataforma de entregas pessoais, directas, funcionaria. Um gajo inscrevia-se dizendo que ia de Lisboa para Palma e trazia uma ou duas encomendas que lá estivessem anunciadas. Acho que já existe isso para a carga rodoviária. Alguém quer pegar na ideia? Sou modesto nas royalties.

15.12.19

Contas mal feitas

O gajo que lá em cima comanda estas coisas anda um bocado desorientado. Compreende-se facilmente que era preciso fazer-me pagar estes dias de intensa felicidade, a alegria que foi ter o livro na mão, a magnífica festa de agradecimento a quem o encomendara antes.

Pronto, ísto é um dado adquirido. Tudo se paga, neste mundo.

Mas o senhor meteu os pés pelas mãos: fez-me perder o telefone no táxi e ter tanto azar que ninguém mo entregou, coisa pouco frequente aqui em Palma. Não chega para o empate, mas anda lá perto. Em contrapartida, a minha bicicleta Peugeot, que na escala dos meus amores ciclistas está ao nível da Rolex Voadora - infamemente roubada de um quinto andar em Lisboa - ficou na rua estes três dias e quando a meio do dia volto para casa vindo do P. vejo-a no seu lugar de dia habitual. Um bocadinho chateada comigo, mas enfim, nada que duas ou três voltas pela cidade não tenham acalmado. A felicidade está de novo a ganhar.

Depois de meia dúzia de incidentes desnecessários no processo de obtenção de um telefone novo - que está em vias de resolução, mas ainda longe disso - o homem enfia-me uma gripe em cima. Não é bem uma gripe, é a mãe de todas as gripes, parafraseando aquele benfeitor da humanidade que a esquerda gosta de defender.

Fazendo as contas, devo dizer que o homem dos dados ainda não conseguiu fazer-me pagar estes três dias. O que me assusta sobremaneira, oh se assusta. Se uma gigantesca gripe e dois ou três dias (úteis) sem telefone não chegam, o que será preciso?

14.12.19

Reflexões desgarradas

Nunca serei rico, mas pelo menos sou pobre com classe.

A palavra empobrece-me, é certo; mas antes isso do que enriquecer sem ela.

Pobre sim. Miserável não.

Sou o rico mais pobre que o planeta já acolheu.

Há uma complementaridade entre pobreza e felicidade: esta serve para matizar aquela. E aquela para não nos deixar acreditar demasiado na sorte - ou em nós próprios.

(Pour nous empêcher de gonfler comme des ballons ...)

(Para não nos deixar inchar demasiado.)

Para o ano há mais e até lá também

"Foi bonita a festa, pá." Mais do que bonita: foi linda. Estavam quase todos e os poucos que faltaram foi por absoluta impossibilidade. Obrigado a todos. Só para ver tanta gente tão bem valeu o esforço a pena.

Agora, há que pôr mãos à obra: vender este e preparar o próximo. Tarefa à la Janus... Pelo menos parto com o caminho balizado, o que já é muito.

Diário de Bordos - Lisboa, 13-12-2019

"Quem não sabe beber vinho bebe mijo", dizia-me o meu Pai com a sua característica delicadeza. (Isto é só meio sarcasmo. O Senhor manejava a delicadeza e a brutalidade tão eximiamente como Bruce Lee os nun-cha-ku: ora batia com uma ora batia com a outra mas ia sempre directo ao alvo.)

A verdade é que com esse simples preceito me arruinou todas as bebedeiras - enfim, quase todas - até aos trinta e muitos. Foi preciso entrar nos entas para aprender a deixar-me ir. Mas o mal, por assim dizer, estava feito: é raríssimo estar bêbedo sem saber que o estou. É raríssimo o álcool substituir-me. Acontece, claro: não sou o super-homem nem o anti-Baco. Às vezes com consequências chatas, até. Mas não é frequente.

Talvez seja por isso que suporto tão mal as bebedeiras feias, favor que devo ao "senhor Pai" (aspas porque cito). Quem não é educado quando está com os copos não foi educado sem eles.

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Belíssima a festa de agradecimentos do livro. Só faltou uma pessoa para que a festa tivesse sido total. Mencionei-a quando falei e durante larga parte da cerimónia ela esteve lá. Depois foi-se embora.

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Descubro finalmente o bar Old Vic. Excelente bar, com um bife de fazer lembrar o Snob dos anos oitenta. Não substitui o Procópio - nada o substituirá nunca - mas complementa-o muito dignamente.

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Amanhã estarei em Palma de novo. É como se vivesse com um pé em Mallorca, outro em Lisboa e me faltassem pés para Mértola e Genebra.

Questão de me pôr de gatas, talvez?

12.12.19

Olha-te

Rugosidades. Pele de pêssego que raspasse, como se o mar nos atirasse pedras, nos devolvesse com juros os seixos todos que da praia lhe mandámos. Tempos rugosos, picam, rasgam a pele dos dedos com que acariciamos os dias, a pele, as horas que passamos montados neles, dias, tempos. Lutas contra o tempo e sais magoado, o entardecer entorpece-te os sentimentos e vais para a praia, sentas-te na areia e olhas-te.

8.12.19

O nascer do dia

Era loira, de pele muito clara e mamilos da cor da alvorada. Cada vez que nos deitávamos eu tinha o nascer do dia nas mãos. 

Reflexões à solta

Ouvir Yves Montand no bistrot mais bistrot de Palma (pertence a um francês, não é propriamente uma coisa do outro mundo), ser informado de que o Mount Gay acabou, a merda da lista de músicas passou para um standard americano dos anos 50, uma big band que não identifico - obviamente - não faz mal, bebe-se Barceló. Um gajo é obrigado a perguntar-se se foi feito para viver num sítio (e de caminho dar razão às miúdas todas que descobriram antes dele que não e consequentemente lhe deram tampa), como é possível estar farto até da cidade que se ama tanto, é uma espécie de drama que oscila entre a tragédia, a comédia e a opera magna, triângulo esse que é o das vidas todas, mesmo as que se ou o ignoram.

Um gajo sabe que qualquer dia terá de ser operado e pergunta-se a quantas operações mais estará disposto a submeter-se para se manter em vida? Isto é: quanto tempo durará esta vontade de se manter em vida?

L., A., D., P., R. - R. - R., A.,T., V., D., A., Z., A. (há muitos nomes repetidos)... Bom, pelo menos um gajo continua a desejá-las todas, umas mais do que outras e uma mais do que todas. Mai-las miúdas que lhe passam todos os dias à frente, louvadas sejam, louvada seja tanta boa-vontade de Deus Pai que está no céu.

Nunca serei homem de uma só mulher e nunca amarei outra mulher.

6.12.19

Às vezes

Será o homem um animal racional ou um animal que às vezes é racional? Este princípio de século XXI tende a confirmar a segunda hipótese. 

Retratos possíveis

Uma vida dilacerada entre a insónia e a azia. Como não fazia nada até ao fim, vivia com as duas.

4.12.19

Rita

É uma questão de alfinetes que me correm pelas veias e se espetam a cada curva. São muitas as curvas e muitos os alfinetes. As picadas doem e além disso deixam escapar sangue. Os lençóis da cama onde tento penosamente dormir estão empapados. O sangue está quente e peganhento nas depressa seca e arrefece. Formam-se pequenos canais que encarreiram o que me sai do corpo para o chão. Li uma vez que um homem tem quatro ou cinco litros de sangue no corpo mas duvido. Só isso tenho entre lençóis e soalho.

O corpo humano é um poço infinito de recursos, incluindo  os sanguíneos. Há quem prefira sonhos, quem olhe para o passado com saudade, quem se contente com leituras esotéricas num parque ao Sol, raios de luz filtrados pelo verde das folhas e reflectidos pelo da relva. Eu não: prefiro o sangue quente e espesso que os alfinetes nas veias deixam escapar. Devo atrbuir um valor a cada um desses alfinetes: um dia, uma intenção, uma relação amorosa que falhou, as que foram bem sucedidas, os olhares que todos os dias trocava com a senhora da bilheteira da estação de comboios.

Vendia-me o bilhete languidamente, fazia tudo o que podia para me tocar a mão por baixo da divisória de vidro que nos separava. Um dia, com o troco vinha um pequeno bilhete: "Rita, 912 423 ... Acabo o trabalho às 19h. Espero por si no British Bar".

Rita. Alfinetes nas veias, pelo lado de dentro; percorrem-me o corpo  e espetam-se constantemente. Algo ou alguém os tira e os repõe em circulação. Rita.

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Apaga as velas que tem espalhadas pelo quarto, cerca de trinta. Está nua, despiu-se mal entrámos em casa. Deita-se.
- Viola-me, por favor. Não me beijes, não me faças festas. Entra por mim como estou agora, seca. Quero que me doa,  que me magoes, que me possuas a seco como se fosses um alfinete em mim.

(Cont.)

3.12.19

Esquizofrenia, chefias

Uma vez li um ensaio cuja tese era que a hominização aconteceu devido ao aparecimento de traços esquizofrénicos em alguns indivíduos proto-humanos. Graças às características esquizóides, esses indivíduos tornaram-se chefes dos respectivos clãs e tribos e introduziram nesses grupos os primeiros passos para a hominização.

A tese é interessante e o autor defende-a bastante bem. Contudo, sempre hesitei em aderir a ela totalmente. Custava-me associar a génese da  humanidade a uma patologia.

Hoje, basta substituir esquizofrenia por outra doenças mentais para nos apercebermos de que o homem estava  podre de razão. Só lamento não me lembrar do titulo do livro e não ter forma de o procurar.

Adenda: Estes senhores dizem que não, que a esquizofrenia apareceu mais tarde. A ver se alguém faz a pesquisa com outras patologias.

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5231388/

2.12.19

Teste

Qual é o melhor critério para definir a solidão:

a) a ausência de um corpo;
b) a ausência de olhos que nos leiam;
c) a ausência de ouvidos que nos oiçam?

Louvor e simplificação de L. Cohen

Com a absoluta e inescapável excepção de Leonard Cohen, a canção aborrece-me. Seja ela Marianne Faithfull, Nico, Bob Dylan, folk, rock, pop, the lightning that breaks it, não há uma canção que ao fim de um momento, mais ou menos longo, não me faça ter vontade de ouvir outra coisa.

Acabo de descobrir a razão: não vejo a relação entre as canções e a vida (mais uma vez, exceptuo Leonard Cohen). Um gajo ouve os Pogues, os Steeleye Span, Zappa, Doors, isso tudo e o que obtém é uma visão parcelada da vida. (O melhor de Zappa são os instrumentais - Shut up'n play yer guitar é um álbum fabuloso, por exemplo.)

O único cantor que consegue embrulhar a vida toda numa canção é Cohen. O resto não passa de lanternas que alumiam uma parte do caminho mas nos deixam às escuras nas outras. 

1.12.19

Foi às seis e meia da tarde do dia 1 de Dezembro que N. entrou por um túnel de que desconhecia a saída. Fê-lo empurrado pelas contracções daquilo que para ele era, à altura, o mundo exterior. Entrou de cabeça, chorou quando saiu, nada sentiu quando lhe cortaram o cordão que, por precaução, deixara ligado durante a travessia. Faz hoje uma incerta quantidade de anos: N. não se lembra do evento, nunca ninguém lhe disse a data completa e só sabe que tudo aconteceu num dia 1 de Dezembro porque recorda vagamente algumas conversas domesticas.

N. é órfão de pai e mãe. Morreram cedo, acidente de intoxicação colectiva num restaurante que lutava pela igualdade dos sexos. Distribuía veneno igualmente entre homens e mulheres, desde que lá fossem jantar em casal. Um homem ou uma mulher sozinhos não corriam riscos: o dono do restaurante acreditava na divina providência e achava que se alguém lá ia comer sozinho morreria em breve, atropelado, vítima de um enfarte cardíaco ou de uma bala perdida durante uma luta entre gangues, frequentes naquela cidade.

N. cresceu sem saber em que ano teria nascido (usava o condicional. Não tinha a certeza de ter nascido).

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N. não sabe a sua idade exacta, mas aprendeu a viver com isso. Vai ajustando o tiro: quando lha perguntam, diz um número, baseado em experiências anteriores. Se a resposta for «Pareces mais novo», faz uma nota mental para a aumentar a próxima vez; raramente é «Pareces mais velho» mas quando é não liga. Prefere aproximar-se da verdade por um lado só, questão de simplificação e equilíbrio emocional: «Preciso de manter um certo controlo sobre estes processos», sendo "processos" uma definição vaga e ampla das suas interacções com os outros.

Em adolescente leu Camus de fio a pavio. Guardou apenas uma frase: «é preciso imaginar Sísifo feliz e livre.» É isso que tem gasto a sua vida: a fngir que é feliz e livre. Pensa vagamente em Borges: «Todos acabamos por nos parecer com a imagem que os outros fazem de nós.» Seria provavelmente a isto que se referia quando pensava nos processos sobre os quais queria manter algum controlo: aproximar-se da sua idade "por baixo".

A vida afectiva de N- era caótica. «A minha casa parece um escape room, com a diferença que elas não pagaram para dela fugirem o mais depressa possível.» Casa sendo aqui uma metáfora para coração, vida, amor, afecto, carinho, desejo. Por vezes pensava em Joseph Heller: "Yossarian was in love with the maid in the lime-colored panties because she seemed to be the only woman left he could make love to without falling in love with." Yossarian era da mesma idade do que N. ou lá próximo e teria lido Camus também, se não fosse uma personagem. «O autor, Heller leu de certeza», consolava-se. «...and he did not hate his mother and father, even though they had both been very good to him

Como poderia N. odiar mãe e pai se nunca os conhecera?

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Fazia compras aos sábados de tarde porque achava as mulheres de sábado mais bonitas do que as dos outros dias.


(Cont.)

Cláudia R. Sampaio

"Vou escrevendo a minha verdade
sem que nela reparem
sem que dela saiam salvações ou cânticos

A minha verdade é calma, invisível
e mesmo que seja o candelabro aceso
é o que me afasta de mim

Vou rolando alma fora como um Sísifo
Vou roendo os lugares, como eremita findo

...

Onde estão os Poetas que morrem a cada verso?

..."

In ver no escuro, ed. Tinta-da-China

Foz, rios, tolerância, etc.

A senhora da imagem chama-se Greta, nome que resultou de um acordo duramente negociado. Tem como função dar penduro à minha roupa e provar que uma só foz pode acolher dois rios.



Luz, tempo

Estou a fazer uma escultura com velas. Uma escultura feita de luz e de tempo. Enfim, muito tempo e pouca luz, mas com um bocadinho de sorte e muito tempo ficará bonita, espero. Aqui fica um registo do início.

NB: o rum e o café não fazem parte da escultura propriamente dita. São ferramentas auxiliares, apenas.