30.9.21
Diário de Bordos - Cabrera, Baleares, Espanha, 30-09-2021
25.9.21
Tudo o que vejo, tu
Vejo fotografias lindas deste mundo e pergunto-me como seriam contigo nelas, nele.
Concluo que pouco mudariam: estás em tudo o que vejo.
Quantidade, qualidade et alia
Há quem treine em ginásios, em tapetes rolantes, bicicletas fixas, halteres. Eu treino no passado e no futuro. Corro com um e faço o outro, milímetro a milímetro. Ambos me são gentis, como se tivesse sido eu a fazer um e a esperar o outro, braços abertos e mente fechada. É mais ou menos isso: fiz o meu passado tanto quanto modelo o que aí vem.
Só não é inteiramente isso porque o passado também me fez, tal como o futuro: sou o que fiz e o que serei.
Em partes iguais? Não sei, mas espero que sim. Não é a quantidade, meu caro. É a qualidade que conta.
Presente, passado, futuro?
Ainda agora estávamos deitados, não é? Um ao lado do outro, ou dentro (se preferires) e eis-nos aqui agora de repente deitados a milhas um do outro, ligados apenas pela memória e pelo desejo. Separa-nos o presente, miserável presente.
Enfim, verdade seja dita: prefiro estar separado de ti pelo presente a estar longe no futuro, ou a não ter sequer estado perto no passado.
24.9.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-09-2021
Lá vamos nós de novo a escorregar por este rinque de patinagem no gelo, sem patins e sem objectivo. Sem nada em frente, digamo-lo já, de seguida. E com tudo atrás: anos de patinagem no gelo, figuras lindas, confusas, mistas como as tostas nos cafés: queijo e fiambre, mas nem um nem outro têm sempre a mesma qualidade. As combinações são várias: bom queijo, bom fiambre, bom pão. Assim de repente creio que há nove delas mas não as vou enumerar todas: falta-me paciência e sabedoria para tanto.
Não sei nada (saber que nada sei é mais do que o que sei). Ou melhor: sei pouco e o pouco que sei é imediato: estou cheio de dores, por exemplo. Estou meio grosso. Estou em Palma. Oiço Lou Reed (Magic and Loss). Quero que as dores se fodam, que vão para longe. Gostaria de ter uma capacidade ilimitada de absorção de vinho tinto, coisa que não tenho, apesar dos anos de treino, note-se. Gostaria de muitas coisas: que o meu P. estivesse pronto, por exemplo. Que todas as cidades do mundo me fossem como Palma. Que o meu amor estivesse aqui (está. O que está longe é o objecto desse amor).
Gosto demasiado de Palma para dizer bem ou mal de Palma: como dizer bem ou mal de mim?
Amanhã largo para Ibiza e Formentera. Forçoso é dizer que podia ser pior: não gostar de uma ou outra é um luxo ao qual me entrego com voluptuosidade, consciente de que é um luxo quase a roçar no pedante. Quase. Entre mim e a pedantice a fronteira é fluida.
Que se lixe a pedantice.
Nada sabemos do que fizemos, quanto mais do que vamos fazer.
Comoção, reclamações
Não consigo, por mais que tente, deixar de me comover quando leio automobilistas reclamar contra as ciclovias. As quais existem, nunca é demais relembrá-lo, devido a esses mesmos automobilistas. Reclamam contra uma coisa que pediram, o que não deixa de me trazer à memória aquele velho provérbio não sei de onde segundo o qual "Deus te proteja de teres aquilo que pedes". Ou coisa que o valha.
Por mim, trocava todas as ciclovias do mundo pelo fim de buzinadelas, razias, insultos, gritos etc. e poder usufruir das ruas, como os reclamantes.
Bar Rita
Não consigo vir ao bar Rita - uma das minhas casas em Palma - sem pensar numa senhora de nome muito parecido por quem um dia me apaixonei. Foi há muito tempo, há mais vidas do que as que os meus poucos dedos podem contar. Foi um daqueles amores possíveis, impossíveis e belos que nos acontecem poucas vezes em cada vida. Ou no conjunto das várias vidas que cada um de nós vive. Acabou bem: o que começa mal acaba pior, o que começa bem acaba melhor. Ainda penso nela frequentemente, apesar de ter acabado há muito tempo: os amores antigos são como a comida da avó: não voltam e nunca nos deixarão.
Tal como a comida da avó nos constrói as bases do gosto, os velhos amores constroem as bases dos presentes: nada como uma boa plataforma de velhas dores para edificar - ou evitar - as novas.
O amor durou pouco, mas foi infinito enquanto durou. A prova é que o bar Rita mo traz à memória, como se na cicatriz bem fechada a memória - esse sádico cirurgião - se entretivesse com um bisturi.
23.9.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-09-2021
Fui buscar um copo de vinho para tomar os comprimidos da noite. Os da manhã tomo com leite. Evito beber água, faz-me pedras nos rins e pedregulhos na cabeça.
Enfim, o tema do parágrafo anterior não são os líquidos mas os comprimidos que agora tenho de tomar quotidianamente. Vejo isto como uma ingratidão do meu corpo, a quem sempre alimentei muito e bem. Doses enormes de álcool, hidratos de carbono e gorduras animais (os três pilares da minha dieta), poucos legumes e vegetais (tenho sérias dúvidas quanto à clorofila, não acredito numa coisa que torna as plantas verdes como os marcianos ou os enjoados), pouca água (sempre associei sede à cerveja). Além da alimentação: deixei muito cedo de fumar cigarros, um pouco mais tarde de fumar outras substâncias, sempre fiz pouquíssimo exercício - o menos possível, diga-se; enfim, sempre tratei bem a carcaça e que ela agora me retribua com comprimidos de manhã, à tarde e à noite acho repugnante. Tentei, verdade seja dita, dissuadir os médicos que me receitaram tais horrores mas não consegui. Foram taxativos: ou isso ou uma punição que não consigo sequer nomear, de tão infame. Resignei-me às coisas e aconchego-as o melhor que posso.
¡Qué vaya!: vivi até hoje como viverei a partir de hoje, com a possível excepção dos livros, que quero perto de mim. Que nunca mais me deixem. Eu retribuirei, prometo. O que não daria para ter agora um livro do Cavafys na mão, em vez de ter de me chatear com o Google. E daí saltar para o Quarteto de Alexandria percorrendo lombadas de livros... Puta que pariu o que vivi até hoje: tenho a morte inteira para morrer. Até lá, continuarei a viver. A prova é que estou enamorado, coisa que aos sessenta e quatro anos não sabia possível.
22.9.21
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-09-2021
Não tenho nem nunca tive uma mulher em cada porto, mas tenho uma bicicleta. Enfim, em cada um dos que frequento mais. A saber, Lisboa e Palma. Na verdade em Lisboa tenho duas: uma de estrada e outra de cidade. Aquela, vou vendê-la. Pouco a uso. Já a Coluer, só a troco por melhor e à vista não está nada melhor (mentira: uma Alps Vintage está no horizont. Porém, como este vai-se afastando à medida que avanço, é como o Teide que se vê três dias antes de se chegar à ilha).
Em Palma tenho uma Órbita branca, bonita e confortável, embora não tanto como a Coluer. Não percebo o suficiente de bicicletas para saber de onde vem esta diferença - isto é, sei que vêm do quadro, mas não sei o que as origina. Interesso-me pouco pelo tema. Não quero saber nada sobre a mecânica das bicicletas, por exemplo. Se uma mudança não entra bem, levo-a ao Ivo (em Palma) ou ao Fernando (em Lisboa). Ajo com as burras como os armadores comigo em relação aos botes: quero que isso ande e é tudo.
Hoje fui jantar ao Alfredo, um galego que tem bons vinhos, boas tapas e bons preços. Também tem uma mulher bonita, mas isso indifere-me. Só penso que o homem tem um bom gosto abrangente (ou circular, se preferirem).
19.9.21
Diário de Bordos- Lisboa, 19-09-2021
Estou numa esplanada a beber vinho tinto fresco e a apanhar sol quente. O vinho custa oitenta cêntimos o copo e é honesto, sem pretensões mas correcto. O Sol não custa nada, antes pelo contrário: recebo dele mais do que lhe dou. Costumo dizer que a saúde é a única área da minha relação com o meu país em que sou claramente o ganhador, mas não é verdade: também fico a ganhar na minha relação com o clima e com os preços dos copos de vinho (isto é uma sinédoque, se por acaso). Agora poderia também dizer que fico a ganhar em relação às mulheres: o país tem-mas dado claramente melhores do que eu tenho para troca. Enfim, isto é um tema delicado - ou pelo menos sujeito a variações tão labirínticas como as Variações Mandé que agora oiço, cheio de sol, amor e vinho tinto, tudo coisas que recebi do meu país e não retribuí à altura.
As Mandé Variations levam-me de passeio, de divagação em divagação. É um dos meus discos favoritos, já aqui o tenho dito muitas vezes. Não é de música africana, é música, ponto. Prova provada - como se fosse necessário - de que a música é como as pessoas: não tem passaporte. Classificá-las por origens é uma facilitação de linguagem e de raciocínio e como tal deve ser tomada. Não mais. Não há chineses: há pessoas que nasceram na China, ou são de ascendência chinesa. Não há portuguesas: há uma mulher que eu amo e nasceu em Portugal, nos Açores, ilhas encantadas s'il en est.
Uma mulher que eu amo e esse amor vai subido como sobe a maré. Qual maré, pergunta o marinheiro em mim: a do Mont Saint Michel, mais rápida do que o galope de um cavalo? Ou a do Mediterrâneo, invisível? Fiquemo-nos pelas marés abstractas, «normais», semi-diurnas. Fiquemo-nos pelos amores concretos, os que dia a dia sobem como sobe a maré abstracta. Fiquemo-nos pelo amor, o que não tem passaporte nem carimbos nem renovações: é uno e sempre uma viagem, com a Lua por companheira, como as marés.
Haveria talvez de fazer um distinguo entre os problemas automobilísticos de Genebra e os «problemas» ligados ao vírus Sars-CoV-2 (as aspas não são um acaso): pergunto-me (e já agora pergunto a quem sabe) quantas das dezoito mil pessoas que até hoje morreram com Covid em Portugal teriam morrido no prazo de um ano, sem vírus? Talvez este não tenha passado de um catalisador, um acelerador, não?
Claro que é preferível morrer um ano mais tarde a morrer um ano mais cedo, não ponho isso em causa nem um segundo. A questão não é essa. É: o preço que pagámos todos (e ainda estamos a pagar) é proporcional a essa vantagem? Justifica-a? Respectivamente: não e sim, mas só muito parcialmente. Eu estou disposto a ceder uma parte da minha liberdade para que o meu vizinho viva mais seis meses, sem dúvida. Não estou é disposto a pagar tudo o que paguei para isso - tanto mais que as autoridades poderiam ter tratado melhor do meu vizinho velhinho, em vez de concentrar a sua fúria benfeitora em mim, homem são e sem grande temor da morte (não por valentia, por estatística).
NÃO SEI - LISTA NÃO EXAUSTIVA
Estou no restaurante Zebras do Combro, sito à calçada do Combro e penso que tenho de ir para casa. A Coluer espera-me, amarrada a um poste. Contudo, o cansaço e o ziguezagueante raciocínio levam-me pelos carreiros da vida, forma simpática de me manter aqui sentado. Para fazer qualquer coisa - seja o que for - é necessário um misto de tempo, vontade e meios. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, estes são fundamentais: procurem levar um contentor de Lisboa a Nova Iorque num barco a remos ou numa prancha de SUP e verão o resultado, por muito tempo e vontade de que disponham. «A boa ferramenta faz o bom operário», diz um provérbio judeu aplicável qualquer que seja o sentido que se dê a ferramenta.
Ou seja: ponhamos provisoriamente de lado o terceiro
termo da equação. É uma constante, não é uma variável. Tenho os meios para ir
para casa: a supramencionada Coluer, bicicleta preta, quadro clássico feminino,
sete velocidades, cesto dianteiro e gira como o dono, acabo de explicar a uns
senhores cabo-verdianos que ma gabavam há pouco. Tenho os meios, tenho tempo,
falta-me a vontade, é tudo. Tendo dois
dos três ingredientes, exploro nos tais ziguezagueantes labirintos todas as
outras coisas que tenho de fazer.
O restaurante Zebras é horrível. As únicas
coisas que o salvam são a cozinha, a simpatia do pessoal, a decoração - toda de
azulejos - a localização (perto do Largo Camões) e a dimensão (pequeno). Além
disso, nada. As favas, por exemplo: sublimes. Quem faz favas assim no Verão vai
para o céu na Primavera (alegoricamente falando, claro. Espero vivamente que
seja daqui a muitas primaveras). O igualmente sublime bagaço da casa. O preço deste
frugal jantar: qualquer calvinista o aceitaria sem ser submetido a tortura. Que
tenho de fazer, além de pedalar até casa, confortavelmente sentado numa
poltrona com duas rodas, dois pedais e um guiador? Escrever estes textos, por
exemplo. Tudo me falta, mas à vez: ora é o tempo, ora a vontade. Os meios não:
papel, caneta, telefone portátil e computador há sempre, por atacado ou a
retalho. Tenho de responder à D.: falta-me o tempo. Tenho de... Falta-me a
vontade. Enfim, não quero maçar os leitores com as minhas divagações pelos
labirintos do dever: a lista é interminável. Ora me falta isto, ora aquilo, ora
tudo ao mesmo tempo.
Retomemos o caminho,
antes de parecemos formigas ébrias com um ataque de solipsismo: não sei por
onde vou, mas sei que não vou por aí. Pergunto-me o que levaria uma formiga a
perder-se? Primeiro, como seria possível em termos físicos. Segundo, que
sobraria da psique de uma formiga se se perdesse? Nada, claro. Nem da psique
nem de mais nada. Uma formiga perdida perde-se em todos os sentidos do verbo
perder-se: nada sobra, no fim. Não é o nosso caso: perdemo-nos por estas
veredas mas encontramo-nos algures na Baixa para um último copo, espero, se
possível na ginjinha da rua das Portas de Santo Antão.
Raio do texto está a
fugir-me, como a formiga individualista. Problemas de quem leu Sterne em jovem,
o que não foi o meu caso, prova provada de que a minha infância não foi tão
feliz como a imagino. Falava simultaneamente de dois temas: o restaurante
Zebras do Combro – está arrumado: é excelente; e a mistura de componentes de
que se necessita para fazer qualquer coisa: tempo, vontade e meios. Creio
também que algures aí pelo meio falei da fatiga – a que outros chamariam
exaustão, mas esses são ou exagerados ou meninos urbanos poliamorosos. Não sou
nem uns nem outros. Exaustão tem para mim o significado que sempre teve: vazio,
cheio de coisas para fazer. Talvez não fosse má ideia rever o conceito. Se não
tiveres nada que fazer, não podes estar exausto, porque a exaustão tem a ver
como futuro e não com o passado. Não estás cansado porque fizeste, mas sim
porque não podes fazer mais nada. Só se está exausto ab ante: antes de
fazer qualquer coisa, não depois.
Bom, passemos. On
s’en fout. O que é importante, no fundo?
Resposta: importante
é o que queres e consegues fazer depois de estar exausto. Depois de estares
morto, de não saberes como te chamas, onde nasceste ou onde queres morrer. Não
há melhor critério para delinear «importante»: o que fizeste depois de morto.
(Antes disso tudo foi secundário, aceita-o de uma vez por todas.)
Por que caminhos
andarão as formigas a direito?
Estamos a falar de
carreiros labirínticos. De coisas que partem de um restaurante na
calçada do Combro e acabam na exaustão, no cansaço – nos cansaços: o físico e o
metafísico, do qual tão bem falou o Álvaro, amigo meu íntimo do coração.
« Estou cansado, é claro,
Porque, a certa
altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou
cansado, não sei:
De nada me
serviria sabê-lo,
Pois o cansaço
fica na mesma.»
Depois, vem o verso chave:
«E a luxúria
única de não ter já esperanças?»
Reconheçamos: ele estava
menos cansado do que eu. «Esperança» é uma palavra banida do meu léxico. Já
«Luxúria» não sei. A luxúria ou é destemperada ou não é. Nada espero e consigo
que isso seja diferente de «De tudo desespero.» Como naqueles quadros do Klee,
eu sei: a relação entre o nome do quadro e o que ele dá a ver é muito ténue e
reclama grande participação de quem o vê.
Bom, tentemos
ordenar isto: os bons jantares terminam num labirinto fantasmático, cansaço
metafísico, carreiros ondulantes ou simplesmente na espera pela senhora que
decidiu agraciar-nos com o seu amor e receber o nosso?
.........
Não sei.
As discussões devidas
à minha recusa em usar máscara diminuiram em quantidade e aumentaram de
alacridade. Suponho que do meu lado há cada vez menos paciência; do lado de
quem tenta implantar regras absurdas também, porque há cada vez mais pessoas a
recusar cumprir as tais regras.
Isto não é o
resultado de um estudo «científico». Talvez seja apenas a minha esperança a
parir, uma vez mais. Parece um peixe de que todas as ovas dão origem a um
descendente: a minha esperança tem uma prole infinita, pare ao menor pretexto,
emprenha por autogénese, não pára.
.........
A Covid tocou os fundamentos da nossa sociedade, minou-os (mas não de morte. Cf.
supra). Infelizmente a verdade é que isto não começou com o maldito vírus,
vai muito mais longe, muito mais atrás. O C. M. F. diz que vem do fim dos
impérios. Não o creio, mas tão pouco sei onde começou o pêndulo a oscilar no
outro sentido. Talvez na segunda guerra mundial, quando a ciência eclodiu em
Nagasaki e em Hiroxima? Talvez na primeira, com o gás mostarda e a aviação?
Será que vai ser precisa
uma nova guerra para pôr o pêndulo a mudar de direcção?
Pergunta: o pêndulo
pára no seu ponto mais baixo. O que lhe garante que ele manterá o seu
movimento? De onde vem a energia necessária para isso?
TPC – Descreva em
menos de mil palavras o que sabe da entropia, da neguentropia e da vida sexual
dos pêndulos.
.........
«A ciência tornou-se a nova religião», diz-me o C. Verdade, claro, mas num
sentido secundário: é vista, seguida, ouvida como se fosse uma religião. A
ciência não pode ser uma religião, pelas simples razões de que a) é amoral. «O
nosso trabalho é inventar a bomba atómica. O seu é decidir se, onde e quando a
usa», poderiam os cientistas do projecto Manhattan ter dito a Truman (atenção,
isto não é uma lição de história. Houve demissões no projecto Manhattan por
razões morais. Tão pouco tem a ver com teologia. Há moral sem religião, mas não
há religião sem moral). b) Não há deuses e diabos na ciência. Que as coisas
caiam a nove vírgula oito metros por segundo ao quadrado ou a cinquenta é indiferente.
Já para as religiões é importante saber quantas vezes comeste carne à
sexta-feira, bebeste álcool ou comeste marisco. A aceleração da gravidade é o
que é; desejar a mulher do próximo uma vez é diferente de a levares para a cama
todos os dias e serás punido diferentemente, se acreditares que é pecado (é, se
pecado for sinónimo de errado, mas isso é outra história e fica para depois).
Sem Diabo Deus não
existe, não é nada, é um verbo de encher. Sem um nem outro, a ciência vive
muito bem; quem não suporta a sua (deles) ausência são os proto-religiosos do
nosso tempo, os que queimam livros do Tintim e atribuem a escrever tod@s em vez
de todos o poder da poção mágica do Panoramix. Ou acreditam que o vírus se
transmite em função do comportamento das pessoas. «Portas-te bem, mascaras-te,
limpas as mãos com hidromel e o vírus não sai de ti, ele gosta de rapazinhos
bem comportados e de meninas fiéis. Já se andares por aí feito homem livre
matas metade daqueles que te rodeiam e metade da metade que só de olhar para ti
se vê com um tubo na boca, deitado de bruços numa cama de hospital».
Gosto de Deus e do
Diabo mas só nas histórias aos quadradinhos e no pouco que me ficou da Bíblia.
Na vida real exasperam-me, prendem-me os braços, asfixiam-me.
Pergunto-me se há
verdadeiramente uma necessidade neurológica, evolutiva, darwiniana de religião,
de medos fundamentais (no sentido dos que vão aos fundamentos, como o vírus, as
alterações climáticas – dantes conhecidas por arrefecimento global primeiro e por
aquecimento depois –, a bomba atómica ou que o paquistanês da esquina já esteja
fechado)?
Não sei.
Luís Serpa, Lisboa, 17-18/09/2021 (Texto para o Luso Magyar News)
15.9.21
Sugestão aos governos
As pessoas que - como eu - recusam a vacina deviam ser obrigadas a usar um sinal distintivo na roupa. Proponho a estrela amarela porque tem várias vantagens:
Os governos deviam pensar nisto, em vez de desbaratar o dinheiro dos contribuintes em publicidade estática.
Untermenschen
O vírus concretizou o sonho dos nazis: somos todos untermenschen. Mascarados, vacinados, confinados, com o cu que não lhe entra um feijão e convencidos de que estamos a fazer isto "para o bem de todos". A colectivização da cobardia. A terceirização da boa consciência. A mediocridade dá-se a ver e orgulha-se de si mesma.
Aceitacionismos, razão,liberdade et al.
Ser corajoso não é não ter medo. Isso é ser idiota. Ser corajoso é vencer o medo. Deixar-se vencer por ele é ser cobarde. Cobardolas. Medricas. Mariquinhas pé-de-salsa. Forçoso é reconhecer, contudo, que por vezes a cobardia ganha. Somos humanos imperfeitos, não somos máquinas perfeitas e infalíveis. Às vezes a cobardia ganha e compreende-se - isto é, aceita-se.
Já a estupidez - sobretudo quando vem de pessoas inteligentes - é mais difícil de aceitar. Os estúpidos - grupo do qual faço parte, com grande pena e revolta - têm pelo menos a desculpa da deficiência cognitiva. Os inteligentes - grupo no qual tento escolher os meus amigos, porque para sair com iguais ou piores do que eu basta-me sair comigo - quando fazem ou dizem uma estupidez não têm essa desculpa. Ficam ali, sozinhos no meio da estrada, vestidos (ou despidos) com os farrapos de inteligência que o medo, condescendentemente, lhes deixou.
Ver uma pessoa inteligente desperdiçar esse dom para ceder ao medo está para lá do que se pode aceitar. É desolador, como ver um mendigo nu e esfomeado à porta de nossa casa e não poder ajudá-lo.
Pensar que o livre arbítrio, a liberdade, a razão - tudo aquilo por que o século XIX lutou - vai para as urtigas com um vírus é revoltante. Para a maioria das pessoas a liberdade e a razão não são armas suficientes para lutar contra o medo. O irracionalismo - escola filosófica que fez as delícias da minha adolescência e abandonei mal cresci um pouco - afinal estava certo.
A esquerda já foi a ideologia da luz, da razão, da ciência, da revolta e do progresso. Hoje está reduzida ao aceitacionismo irracional. Não é por acaso que a maioria dos «negacionistas» invoca a liberdade e usa dados objectivos para defender as suas opiniões.
Volta, Friedrich. Esquece o supra-homem e volta. Estás perdoado.
14.9.21
Parece que sim
Dois livros publicados não é o dobro de um livro publicado. É mais. Não sei como explicar isto. Seria preciso um autor confirmado ou um matemático especialista em séries não lineares, suponho. Tanto mais que três livros publicados é o triplo de um. Há um espasmo qualitativo entre o primeiro e o segundo, creio, que desaparece depois.
Não sei. Só sei que tenho um segundo livro a caminho e que isso me deixa imensamente feliz, apesar de igualmente incrédulo. Alguém achou aquilo bom? Parece que sim.
Diário de Bordos - Lisboa, 14-09-2021
Circular em bicicleta na cidade tem inúmeras vantagens. Vou enumerar três. (Há aqui um subtil jogo de palavras - ou de vogais, para os mais preciosistas -: troca-se uma vogal e a palavra gira de cento e oitenta graus. Espero que tenham visto e apreciado.) As três qualidades da circulação em bicicleta que seleccionei para hoje são:
a) Podemos andar à velocidade que nos apetece. Não há sinais a limitar-nos a velocidade máxima ou mínima, não há filas de carros cujas velocidade temos de respeitar. Nada disso. Rolamos tranquilamente na ciclovia - ou na via, tout court - e aquela malta das caixas verdes ou amarelas com bicicletas eléctricas passa-nos como quer. Avisa-nos gentilmente com um toque de campainha ligeiro, nada agressivo e passa.
b) Não precisamos de nos preocupar com a EMEL. Uma bicicleta estaciona-se praticamente onde se pode estacionar e ninguém - salvo os condóminos mais idiotas - nos vem chatear. E mesmo para esses há remédio: deixa-se a burra na rua ou subimo-la para o apartamento.
c) O prazer, o simples mas rigoroso prazer de pedalar pela - por exemplo - Baixa de Lisboa, ver lentamente prédios que vimos centenas de vezes, reconhecer apartamentos onde amámos ou deixámos de ser amados. Em espanhol pedalar diz-se pedalear e aquela vogal faz uma diferença enorme, prolonga a palavra e o prazer, adoça-os, por assim dizer. Prolonga-os. «Pedalar» é das raras palavras da nossa língua que podia ter mais dez sílabas e ficaria a ganhar com isso.
Pedalar é uma das raras actividades físicas que acrescenta prazer à existência (são três, na verdade. A outra é a condução de uma embarcação de vela).
Ouvindo Philip Glass enquanto se rememora o dia, que decorreu ao mesmo ritmo.
Como supra: uma aflitiva falta de palavras. Ou então uma só: amo-te. O mundo que se arrepie. Eu já estou.
(Esta apreciação é completamente objectiva, independente, não tem nada que ver com a intensa amizade que me liga à Margarida e muito menos com a admiração que tenho por ela.)
13.9.21
Imperfeição, tolerância
Sendo como sou um ser imperfeito - ou, provavelmente, mais imperfeito do que a média - habituei-me a aceitar a imperfeição nos outros. Evito julgar, excepto quando inevitável ou inescapável - tenho, por exemplo e como toda a gente um horror absoluto à pedofilia, apesar de o saber cultural (não tenho nada contra a minha cultura, antes pelo contrário); detesto a cobardia, embora por vezes a compreenda; a maldade gratuita; etc.
Daí talvez a minha inextinguível tolerância: na sua génese está um defeito irremediável.
11.9.21
Amor em loop
Cores, talvez. Hades. Vida
Talvez pudesses também divagar sobre cores: o efeito mirambolante que o azul marinho tem sobre ti, as dúvidas que o encarnado te provoca, a rejeição absoluta do cor-de-rosa em roupa masculina, o dourado de um rum ou de umas hierbas secas, o tinto profundo ou claro de um bom tinto (ou de um clarete).
Talvez.
Talvez pudesses fazer muito mais do que o que fazes e talvez pudesses fazer menos. Deixa as cores em paz. Não depende delas. «Ele tinha tomado o autocarro local em Hades» (Anne Carson, Autobiografia do Vermelho). De que cor é Hades? Vermelho, diz o título. Que interessa, digo eu? Só interessam as cores da vida.
Uma cama
Andava a patinar pela vida fora como um paraplégico a quem alguém pusera patins nos pés e empurrara para a pista. Levantava os braços a pedir ajuda e os seus gestos desesperados e descoordenados eram interpretados como forma de se equilibrar: ningém acorria. Assim atravessou o ring de uma ponta à outra, sem aprender a elegância, caindo muitas vezes, mas chegando de pé, que era o que lhe interessava. Chegar de pé. Morrer de pé a olhar para a frente, como se para lá do horizonte ainda houvesse mundo. Como se lhe interessasse o que há para lá do horizonte. «Nem para cá, quanto mais para lá», dizia entre dois desequilibranços. Verdade: nada lhe interessava mais do que não cair, aqui e agora. Antes e depois eram automática e sistemáticamente relegados para o saco do lixo dos dias, um saco assíncrono e talvez por isso sempre cheio.Os marxistas, recordou, chamam-lhe «o saco do lixo da história», mas para isso é preciso acreditar na história. Acreditava, mas não lhe atribuía importância suficiente para o distrair das suas desajeitadas tentativas de não cair. «Imagina uma piscina na qual nadas sem direcção. A piscina é infinita: só tem dois limites - o princípio e o fim. Uma vez dentro dela, fazes o que queres, nadas para onde queres. Só há uma condição: não podes voltar atrás. Não podes voltar a de onde saltaste para a água. Podes tentar todos os estilos: crawl, bruços, costas, mariposa; podes mesmo inventar um estilo só teu. Podes fazer tudo o que queres menos voltar atrás. A piscina só tem uma direcção. Tem uma corrente e nadar contra ela é impossível. Podes divagar, podes perder-te, podes mesmo imaginar que não queres nadar e que vais à rola. Podes imaginar curvas - sinusóides. de Gauss, ciclóides, epiciclóides, parábolas, espirais, trissectrizes de MacLaurin (obrigado, Google). Podes imaginar um mundo plano, em forma de pera, de maçã oun de ananás. Podes imaginar o mundo como o queres - ele nunca deixará de ser o que é: o ring de patinagem no qual alguém te deixou e no qual nadas ao sabor da corrente, tentando traçar curvas com nomes esquisitos enquanto ouves música com ritmos, melodias e harmonias esquisitas.
A vida não passa disso: um gigantesco desencontro onde por vezes e por acaso encontramos. Encontramos o quê?
Um corpo, uma mente e uma cama onde juntá-los.
Diário de Bordos - Lisboa, 10-09-2021 / II
Penso também nas vantagens da vida doméstica, sobretudo quando acoplada ao amor. São muitas, tantas que decido não pensar mais nelas e vivê-las, apenas. Uma e outro. São uma maravilha, quando andam juntos. Prémio Casal do ano? Não: casal da vida. O lado direito da curva andará por alturas que nem o centro sonhou.
10.9.21
Diário de Bordos - Lisboa, 10-09-2021
O meu ombro direito fez-me uma chantagem ignóbil: "Ou tratas de mim ou..." Atrás das reticências vieram dores insuportáveis que - percebi imediatamente - eram só para amostra. De maneira ontem lá fui ao melhor SNS do mundo. Atendeu-me uma médica colombiana e bonita, passe o pleonasmo. Além disso era competente (pelo menos pareceu-me). Saí dali com mais uma carga de remédios, ecografias, fisioterapias e a reconfortante informação de que só naquele centro de saúde há vinte e dois mil utentes sem médico de família. Estou a tratar de um cartão que me permitirá ser atendido em Espanha pelo SNS local, que apesar de não ser o melhor do mundo funciona infinitamente melhor do que o nosso, o melhor do mundo como toda a gente sabe. Aborrece-me um bocadinho que a única coisa na minha relação institucional com Portugal em que era eu o indiscutível ganhador se tenha degradado tanto. Em Espanha também não pago impostos, mas pelo menos tenho quase vontade de os pagar. Quase, claro. Nada de exageros. Não são assim tão melhores do que nós.
4.9.21
Diário de Bordos - ao largo de Almerimar, Espanha, 04-09-2021
A viagem acabou. Estou de regresso a Portimão, deixar o bote. Curiosa, esta sensação de em breve poder dizer "estou de regresso a casa": há onze anos que não tenho uma. Mais um ciclo que acaba, mais uma vida que começa. Já vou em muitas, mas não deixa de ser excitante, apelativo. Recebo-a como ela me recebe: de braços abertos debaixo da mangueira.
Vou com o VCP, por enquanto a motor. Amanhã entra o CD, que ainda não conheço mas vou conhecer. A previsão prevé vento, dez a quinze nós pela popa. Não sei se o vento a leu. Espero que sim. O bote anda bem à vela e estou farto deste barulho.
WISE
Wine induced siesta experience. E ainda penso que não tenho jeito nenhum para acrónimos! Até em inglês...
Diário de Bordos - Almeria, Andaluzia, Espanha, 04-09-2021
Passeio por Almeria como um cego por um labirinto de rosas: vim a esta cidade pela primeira vez há quarenta anos e desde aí tenho vindo esporadicamente. Não a conheço - hoje tive de perguntar onde é o casco viejo (à vinda descobri sítios dos quais me lembrava claramente. São rosas, senhor).
O sherry é sublime. Não pergunto a marca: devemos resistir à tentação de tudo saber, de tudo cobrir com palavras.
Continuo a ver montes de gente com máscara na rua. Também da tentação de me chatear fujo, feito cobardola das emoções. Se querem parecer idiotas - ou mostrar que o são - pareçam, mostrem. Só me aborrece que tantos sejam jovens. Que fizemos nós desta geração, nós agora velhos? Como nos transformámos de revoltados reichianos, debordianos, marcusianos em carneiros hiper-protectores, de bondade e medo hipertrofiados, carneiros a fazer carneiros?
[Tinha razão.]
No porto de Soller os restaurantes de que gosto ou me sugerem estão cheios. Meti-me num táxi e venho para Soller. O restaurante que o taxista me sugeriu também está cheio, tão cheio de gente como eu o estou de fome. Arranjo outro, ao acaso. O início não augura nada de bom: não tem palos e de vermutes só Martini. Vamos ver: quantas refeições começam mal e acabam bem? Muitas, mais do que as que posso contar.
Ainda é segunda-feira e já estou cansado. Verdade seja dita, não tenho muitas razões para isso. Os clientes são muito bons, uma família de franceses, judeus «semi-praticantes» (aspas porque cito), pai, mãe, duas miúdas de doze e dezasseis anos. Amanhã chega o filho de dezoito, vem de Chipre. Ele é matemático [não é, é engenheiro], deve trabalhar em finanças [é chefe de uma empresa familiar]. Ela, médica. Falamos de Covid, claro, uma conversa civilizada, polida, educada, interessante. Tristes os tempos em que se tem de assinalar ter-se conseguido manter uma conversa educada sobre opiniões divergentes. O único momento de ligeiríssima exaltação foi entre a senhora e ele. Ela é visceralmente contra a vacinação das crianças, não gosta de ouvir dizer «os números, etc.» que o marido usa amiúde, acha que não se deve fazer experiências com crianças e menos ainda se essas crianças forem os filhos. Disse-lhe que na minha opinião aí os governos tinham atravessado uma linha vermelha e que a maioria das pessoas reagiria como ela. «Talvez não», respondeu, vejo agora que cheia de razão.
A verdade é que não me interessam. Resta saber se por questões de estética - a boçalidade é feia - se por ciumes, inveja, dor de cotovelo. (A pergunta é retórica, claro, mas não tenho nada contra a retórica.) As duas da semana passada eram mais calmas (estavam com os pais) e ainda mais pirosas. Alguém devia explicar às senhoras que um calção de bikini a entrar pela raia dentro passa a fronteira do bom gosto e é capaz de desentesar um elefante. (Refiro-me à peça de roupa conhecida por fio dental, designação abominável s'il en est.)
O cor-de-laranja invade tudo, à medida que o Sol se afunda por detrás das árvores. O azul do céu, o verde das árvores, o branco das rochas e a cor indefinida da água ligam-se como se o cor de laranja tivesse desbotado.
(Cala Torqueta)