23.10.22

Definições

Viver consiste numa mistura de riso e de lágrimas. Saber viver é fazê-los acontecer ao mesmo tempo.

Sono, para sempre

Não é bem ter sono. Deito-me no sono como neste colchão, cubro-me com ele, enfio-me nele como num envelope. Afaga-me, acaricia-me com as suas experientes mãos, repreende-me se lhe resisto, relembra-me os tempos - agora distantes - em que eu o detestava. Abençoado sono, que todas as noites me transforma, metamorfose quotidiana: deito-me um, acordo outro. Há sessenta e cinco anos que isto dura e a cada noite gosto mais dele, história de amor que só acabará quando ele ganhar. Para sempre.

22.10.22

Viver, vida

Fazes desta noite uma curta noite, quando na verdade queres que seja longa, infinita. É sempre assim, não e?, este sobressalto entre o que queres e o que fazes, este precipício entre o que fazes e o que obtens, entre o que tocas e o que tocas te faz.

Toca, toca a vida, a noite, o que queres, o que fazes e o que tudo isto te faz. Essa é a diferença entre viver e a vida. São duas coisas diferentes, mas isso só se aprende quando uma das duas - a vida ou viver - se prepara para nos deixar pela sorrelfa, como um crepúsculo nas altas latitudes. 

À guia da vida

Ando à volta da vida, que queres? Um grande círculo cujo raio só conhecerás quando for para o seguinte e eu nunca conhecerei porque não terei tempo para o medir quando acabar de o percorrer. O centro desse círculo é a vida e eu ando à volta dela como um cavalo à guia.

À guia da vida, dirias com o teu sorriso trocista, um sorriso que tinha mais de compreensão do que todos os tratados de psicologia, antropologia, sociologia jamais escritos. 

À guia do amor, responder-te-ia eu, sorrindo também. Sorriso diferente, eu sei. O meu seria de dúvida, de inquietação. Se o visses, claro.

Não é a vida que dá voltas. Ela está parada, não se mexe. Os cavalinhos do carrossel somos nós, sujeitos porém a forças centrípetas, centrífugas, descontroladas, incontroláveis. Carrossel de cavalos bêbedos (de vida, a tal que nos controla).

A que nos guia.

18.10.22

Pontos, espaço

Querido, coça-me os três pontinhos, por favor. Mas um de cada vez, não vá o diabo tecê-las. Usa a língua, os dedos, a ponta do nariz, como quiseres. Mas a outra ponta guarda-la para o fim, está bem? Essa quero-a a fazer mais do que coçá-los por fora. Quero-a cá dentro, bem fundo, a tocá-los do interior, a tocar-me na alma,  a multiplicá-los por milhões de pontos espalhados por toda eu, por dentro e por fora, por cima e por baixo, pelo meio e pelos lados.

Faz dos três pontinhos uma tempestade dessas de que tanto gosto, todos os dias, todas as noites, redemoinho de mim, turbilhão de ti, poeira de pós a voar entre quatro mãos, quatro olhos, três pontos e uma ponta, duas mentes e duas peles.

Há melhor espaço do que este? Se sim, não sei qual é. 

13.10.22

Confirmações

Concorri a uma residência artística da FEQ (Fundação Eça de Queiroz) e não fui seleccionado. Nunca tive muitas ilusões sobre as probabilidades de o ser - a dose exacta para concorrer e nem uma mais - mas é sempre triste um gajo ver confirmada por terceiros a má opinião que tem de si próprio. 

12.10.22

Milésima ode a Lisboa (não é a última)

Ah, Lisboa, cidade, mulher e puta, que mal te chego me fazes saudades antecipadas. Pedalo-te as ruas, o calor, as caras conhecidas, o vinho tinto e a música do tempo, dos tempos todos, o que já foi e ainda aí vem, o de hoje e o de agora, no senhor David (que agora é o filho, Filipe), as melhores pataniscas de bacalhau do mundo e arredores. 

Mas és puta, cidade, vês-me como cliente, abres-me os braços, as pernas e ala que se faz tarde, venha o próximo, querido, que isto não está para pieguices, filho.

És demasiado calma para mediterrânica, demasiado pudica para céltica, demasiado viva para calvinista e pouco católica em tudo, mulher, amante e puta. Dás-te, vendes-te e resguardas-te, tudo ao mesmo tempo. Sem alarido, sem gritos, só à custa de olhares e de luz.

Ah, Lisboa. Já te fodi e já me fodeste. Estamos quites. Mas faz-me um favor, só um: não me largues, que eu nunca te deixarei. Ande por onde andar, esteja onde estiver.

11.10.22

Diário de Bordos - Lisboa, 10-10-2022

A classe beta portuguesa está de parabéns. Tem - finalmente, tanto quanto sei - o seu encómio, o seu hagiógrafo, depois de só ler troça e maldizer a seu respeito. Trata-se do livro de Rita Ferro, a cuja apresentação vim, a terceira em três días. Ninguém me pode acusar de não ter uma visão panóptica da vida cultural portuguesa: Brevíssimo Dicionário dos Snobs. Lisboa, Cascais e muito mais.

Do livro, pouco tenho a dizer - os breves trechos que li têm piada, mas isso não é propriamente novidade para quem conhece Rita Ferro. O tema interessa-me relativamente pouco, mergulhado que estou no meio, por vias familiares. Na verdade, o snob português não é muito diferente do seu congénere francês, inglês ou alemão. É menos culto e mais teso, mas num país de incultos sem massa isso não é de estranhar. 

A apresentação valeu, contudo, o tempo que me levou. Primeiro, porque foi agradável  ver tantos betos tão ao mesmo tempo - sendo Portugal um país pequeno, eram todos primos uns dos outros; Foi uma grande reunião de família. Ainda por cima, estavam contentes: ouviam uma bem-humorada descrição de si próprios e nada como uma caricatura amigável para nos reconfortar no nosso lugar (os velejadores têm Mike Peyton, por exemplo). Depois, pelo local: o  Museu da Água dos Barbadinhos, um edifício que não conhecia mas que saltou imediatamente para a lista de locais a visitar. Por fim, porque os últimos são os primeiros, pela companhia, uma amiga de longa data, senhora por quem nutro admirável admiração, para além da amizade. 

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Depois da beta sessão fui jantar com M. C. ao Haweli. É bom saber que continua um grande templo da cozinha indiana, merecedor de peregrinações frequentes, apesar de ter subido um bom degrau na escada da evolução restaurativa. Já não é a tasca que era quando o conheci. De entre os mui vastos e diversos temas de conversa, retenho um: ela diz-me que nunca quis fazer amor com um determinado tipo porque não o queria perder como amigo. É uma explicação que oiço frequentemente - seja eu ou não o «determinado tipo», que tantas vezes sou - e na lista das desculpas esfarrapadas ocupa lugar cimeiro. No binómio sexo - amizade e resultantes quatro combinações possíveis tenho experiência de todas elas. Ao contrário do que se pensa, não há relação nenhuma entre sexo e amizade (como não há entre sexo e amor, mas essa é mais complexa. Fia mais fino, por assim dizer). Na verdade, no mercado dos sentimentos o sexo está sobrevalorizado. É um tema que não tarda vai parar ao lado dos betos na estante dos temas que passaram a data de validade. O jantar foi óptimo, a companhia também, vi (e apanhámos) uma chuvada como não via há muito tempo, a apresentação do livro teve piada e o seu local foi bastante bem escolhido, tive boas notícias sobre o meu projecto mãe de todos os projectos (é tão importante que me fez usar o termo projectos de novo, imagine-se) e - sobretudo - regresso a Lisboa como se nunca a tivesse deixado. Pela razão simples e inapelável de que nunca a deixei, nem ela a mim. Quando penso que por vezes encaro a hipótese de ir viver para outro lado qualquer percebo quão fora de mim sou capaz de estar, por vezes. Ir viver para fora de Lisboa ainda vá que não vá, desde que seja em Portugal. Mas fora do país? Credo, cruzes canhoto, te arrenego, vade retro. E mesmo assim, quanto fora? Quanto longe de Lisboa? 

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Hoje recomeço as peregrinações médicas a Cascais. O raio da carcaça insiste em dar-me chatices. Ou melhor, em não se desfazer das chatices que dá há bastante tempo. Ainda pensei em fazer um seguro de saúde, mas agora que isso jé nem é apanágio de betos, não há gato-pingado que não tenha um já não tem interesse (isto é mentira, mas quem não sacrifica a verdade a uma piada, por medíocre que seja?) A evolução devia ter-nos dado um mecanismo de auto-regeneração mais eficaz do que o que temos, que serve para cicatrizar feridas e pouco mais... Sou injusto, eu sei. Na verdade, as minhas relações com o invólucro (de que o conteúdo faz parte, mas isso fica para depois) têm sido pautadas por uma espécie de respeito mútuo, de camaradagem viril: eu dou-lhe de comer e beber, não o submeto a esforços físicos exagerados (ainda me lembro da última vez que corri cinco metros seguidos), não o massacro com ginásios e similares e ele retribui com um bom estado geral e duas ou três picuinhices. Vou deixar de me zangar com ele, levá-lo a beber uns copos e assim selamos uma amizade que espero duradoura. Chama-se a isto «efeito Leonardo», reconciliação de largo âmbito provocada por um pedaço de carne que não pára de crescer e quero ver crescido.

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Em louvor do corpo: o olho esquerdo está a recuperar a um ritmo impressionante. Até já me esqueço das gotas.

(Provavelmente cont.)

7.10.22

Diário de Bordos - Porto, 07-10-2022

O Porto transformou-se numa daquelas senhoras de meia-idade que mantiveram a beleza da juventude e a ela juntaram o charme da sabedoria. É um prazer para os olhos e para a imaginação.

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No Porto encontrei os blocos Clairefontaine que já não vejo em mais lado nenhum, canetas e tintas Kaweco, postais giros, o café Império (o decente, da rua Santa Catarina, não o outro, self-service), um restaurante indiano francamente bom - chama-se Real Indiana, se por acaso - amigos recentes e de há muito e todos bons (não há como evitar a repeticção de «bom», no Porto? Não). Tudo isto com os abomináveis ardores no olho esquerdo, que afogo em anestésico a rodos ao primeiro segundo. Para herói e ou estóico já dei. Já comprei mais um frasco, preventivamente, não vá a coisa prolongar-se. Feliz - ou talvez sabiamente - a assistente do médico preveniu-me de que  os ardores de agora seriam piores do que os da última vez, que já não foram tristes. Aqui entre nós, penso que ela disse aquilo só para me preparar, mas pouco importa. Desta vez arrefinfo-lhe com Anestocil sem esperar.

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Porto, mercado do Bolhão, manhã de uma sexta-feira de Outubro. As pessoas preferem turistas a imigrantes. Bem vistas as coisas, os dois são necessários. Mas quando vejo as bichas para a Lello e para o Majestic, quando os vejo a «provar» vinho do Porto aqui no mercado confirmo o que já há muito decidi: a ter de escolher, opto pelos imigrantes. 

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Leio mais um relatório de mais um ataque de orcas. Isto só lá vai a tiro, os animalistas (ou animais, para quem preferir) que digam o que quiserem. Isto dito, pergunto-me: por que esperam os conspiracionistas para dizer que estes ataques são obra dos estaleiros navais coligados?

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Porto cultural

De manhã, uma excelente exposição de fotografia documental na Casa Comum. Fotografias complexas, ambivalentes, simultaneamente próximas e distantes, poderosas de todos os pontos de vista, incluindo o estético. 

À tarde, outra magnífica exposição de fotografia na galeria Pedro Oliveira. A fotógrafa chama-se Rita Magalhães e a exposição consiste em esbater a fronteira entre a pintura paisagista impressionista e a fotografia. Vale pela escolha das paisagens, pela réussite técnica e pela capacidade emotiva das imagens.

À noute, apresentação de um livro chamado Cinco homens que mudaram Portugal para sempre, de Isabel Nery,  no clube de Leça. Ao princípio temi uma seca das piores mas a intervenção da autora convenceu-me a comprar o livro. Sobre o clube e a assistência nada disse. Contas feitas, a seca não foi das piores - está no meio da escala - o livro parece valer os vinte paus que custou e voltei para casa de autocarro, muito melhor do que o táxi. 

O almoço foi com o meu editor do Porto (o gozo profundo que me dão estas duas palavras juntas, "meu editor" é tão legítimo como indescritível) e só ele mereceu a vinda ao Porto. O meu sonho de concurso pode muito bem deixar de ser um sonho, desta vez. Se desta vez isto se concretizar o gozo de "meu editor" vai passar a ser um simples soluço no sismógrafo do gozo,  também conhecido por orgulhómetro.

5.10.22

Diário de Bordos - Porto, 05-10-2022

Saio da sesta mais cansado ainda do que estava quando nela mergulhei, de cabeça e com forte impulso. Venho à Lareira beber um copo de vinho e comer uns pastéis de bacalhau, os quais sendo melhores do que os do aeroporto ainda estão longe de serem bons. Isto é o que mais me falta no estrangeiro: rissóis, croquetes, chamuças, pastéis de massa tenra e por aí fora. Em Genebra ainda tenho os croissants au jambon e os pâtés (e com problemas similares aos congéneres portugueses: fáceis de encontrar, difícil encontrá-los bons), mas é só em Genebra e arredores. Em Palma há empanadas argentinas. Nada disto se aproxima sequer dos calcanhares da nossa oferta.

Cada vez que chego a este país pergunto-me como é possível viver no estrangeiro. Depois passa, claro, ao fim de umas semanas e de duas ou três notícias. Já de salgados (e muito raramente de bolos) não há quantidade que chegue para me saciar.

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O San Marino é a minha casa no Porto. Se um dia tiver de ir viver para um hotel (longe vá o agoiro) seria num assim que assentaria arraiais: pequeno, familiar, sem xixis, hiper bem situado, barato, amável até à fronteira da amabilidade.

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Só hoje aterrei da viagem. Aterragem prolongada: táxi para Perpignan, autocarro para Barcelona, avião para o Porto, táxi para o hotel. Este último trajecto não mereceria menção, não fora ter-se dado o caso de o hotel se afastar à medida que o táxi dele se aproximava. Corrida estranha, com múltiplos intervenientes: o táxi e o hotel, claro, o cansaço, eu e o chauffeur do veículo, que não abriu a boca durante o trajecto, concentrado que estava na sua missão de ultrapassar o hotel. O homem merecia uma gorjeta enorme, mas infelizmente a Bolt desactiva a opção gorjetas ao fim de quinze minutos, coisa que me parece - e lhes escrevi, nos comentários - profundamente injusta.

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Lá acabámos por chegar, o táxi, a fatiga, a bagagem (pesada para burros) e eu. Foi só o tempo de arrumar tudo no armário e mergulhei num sono que mais parecia a mó de um moinho - aqui reside, provavelmente, a explicação do meu estado actual: andar à roda a moer exaustão exaure, toda a gente sabe. Resta-me esperar que cheguem as sete e meia, hora antes da qual só me é permitido comer pastéis salgados, para ir comer uma bacalhauzada e voltar à molição.

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A qual espero tão pesada como foi a sesta, só que mais longa.

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Adenda: desaguo no Papagaio. Os restaurantes decentes da zona estão fechados. Estou sozinho, com duas televisões enormes a transmitir um jogo de futebol, dois empregados que olham mais para o jogo do que para o restaurante, furioso comigo porque devia ter-me ido embora imediatamente. A maldita preguiça, de que cansaço não passa de alcunha chique.

É a segunda vez que venho aqui comer. Se tudo correr bem, será a última. 

Diário de Bordos - Palma a Barcelona via le Canet-en-Roussillon, 03 a 05-10-2022

Esta noite vi o clarão de Barcelona a sessenta milhas. Pensei logo nos fenícios, nos gregos e nos romanos. Com clarões visíveis a sessenta milhas esses sexistas esclavagistas não se podiam queixar e dizer que era difícil e isto e aquilo.

Claro que estou mesmo a ver: alguém me há-de vir dizer que naqules tempos não havia electricidade e portanto não havia clarões. Isso são desculpas de neoliberal explorador e subsídio-dependente. Se eu vejo a luz de uma cidade a sessenta milhas, os fenícios e os outros também as podiam ver.

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Fazer um quarto consiste basicamente em estar sentado na ponte de uma embarcação (se for de pesca ou de recreio. No comércio não é ou não era permitido sentarmo-nos) a olhar para o horizonte e tentar ver navios. Regularmente, olha-se para os instrumentos, ver se está tudo como deve estar e para as velas, caso não se esteja a navegar a motor. Nos intervalos olha-se para o céu, se for noite e estiver limpa, como agora está. Oríon saiu da água à uma da manhã, os Gémeos um bocadinho antes. Infelizmente, a porcaria do bimini tapa isso tudo. O "meu" P. não tem e nunca terá bimini e eu terei a noite inteira para mim.

Esta descrição é muito sintética e deve ser matizada. Por exemplo,  olhar para os instrumentos: sim. Mas eses devem servir para confirmar e afinar o que os nossos sentidos nos dizem e não o inverso. O melhor instrumento de navegação jamais criado é o conjunto de um cérebro e cinco sentidos. A parafernália electrónica, mais precisa sem dúvida, vem depois. Em regata, a ordem altera-se: primeiro as velas. Na pesca, primeiro os instrumentos e nestes dá-se a prioridade às sondas. A seguir vem o radar, para se saber onde andam os outros.

Estar de quarto consiste em regalarmo-nos com a beleza de uma noite como a que está hoje, apesar da ausência total de vento e pensar na sorte que se tem de poder fazer este trabalho. A viagem é curta, menos de trinta horas se as previsões se confirmarem - como até aqui - vai ser feita integralmente a motor e esta mistura de luz difusa (cada vez menos, estamos a aproximar-nos) do clarão de Barcelona, luzes dos navios - muitos cruzeiros - e escuridão de um céu por enquanto sem Lua e estrelas é de uma beleza avassaladora.

Estar de quarto consiste também em ter sono, ter uma vontade danada de ir para dentro dormir, olhar para a hora dez vezes por minuto e ficar surpreendido quando de repente é a hora e o camarada aparece na ponte.

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Chegámos a Le Canet-en-Roussillon às cinco da tarde. O tripulante enjoou e passou o dia no camarote, de maneira quando cheguei parecia um robot (eu, não ele). O sítio onde ficámos - a área técnica da marina - é muito perto do centro geográfico do deserto. Não há rigorosamente nada, nem um café, nem mesmo um quiosque nas imediações. Meti-me num táxi e fui jantar à cidade, ao restaurante La Cantina de Aldo, uma italianada surpreendentemente melhor do que é habitual. Foi o meu único contacto com le Canet, uma vila balnear que assim de repente me pareceu não ter ponta de interesse. Já em Perpignan tenho pena de não ter podido passar dois ou três dias, mas enfim. Não se pode ter tudo. A cidade já foi a capital do reino de Mallorca, um dos pontos importantes do catarismo e hoje é linda.

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Escrevo no autocarro, que saiu com quase quarenta minutos de atraso. Estou furioso com as minhas lacunas internetianas: há um comboio, mas só agora soube. Demora metade do tempo e tem muito menos atrasos. Só não sei quanto custa: não encontrei o preço...

A paisagem é linda, penso enquanto me pergunto se o autocarro vai chegar a tempo de eu não perder o avião. Ah, maravilhosa ambivalência...

1.10.22

Diário de Bordos - Genebra, Genebra, Suíça, 01-10-2022

Os sessenta e cinco anos - ou melhor, a entrada neles - está quase para trás. Hoje tenho o jantar de família e a coisa fica resolvida. É uma idade propícia a pensamentos vários, vastas emoções, algumas espreitadelas ao retrovisor, balanço de dúvidas e certezas (são mais aquelas do que estas), um olhar para o futuro que me resta. Infelizmente pus o vinho tinto no frigorífico e com ele a esta temperatura nesta temperatura não consigo resolver nada disso. Para o ano haverá mais.

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Isto dito, a nossa geração não tem muito de que se orgulhar da merda de mundo que deixa à próxima. O relativismo saiu-nos pela culatra, como não podia deixar de ser e só gerou wokismos, parvoíces, cedências ao zeitgeist. Hoje foi a vez da universidade de Genebra: vai mudar o nome de um dos seus edifícios porque o senhor de quem tem a designação - um botanista do século XIX - «tinha opiniões racistas e sexistas». Não põe em causa, note-se, «o importante contributo de Carl Vogt para a ciência».  O reitor da Universidade tem mais dois anos do que eu. Não foi ele quem tomou a decisão, é preciso dizê-lo - foi uma vasta consulta, à maneira suiça. É um pormenor, claro, minúsculo e só não é completamente irrelevante porque a universidade de Genebra é uma das melhores do mundo (cento e um num ranking qualquer, não sei se válido ou não). Pouco importa a universidade, de qualquer foma. Importa, sso sim, que somos nós, a geração que nasceu nos anos cinquenta e sessenta, quem endossa estas palermices.

Um dia o pêndulo voltará atrás, eu sei; infelizmente, não estarei cá para o ver.

(Cont.)