31.12.22

Auto-exílio

Auto-exilado de mim próprio percorro as ruas da cidade. Não é uma cidade só: são muitas. E não é só hoje: é todos os dias. Visto de fora, sou como as cidades que percorro: bairros bonitos, outros feios, nalgumas há uma greve dos homens do lixo, noutras os jardineiros esmeraram-se. Há ruas de todos os tamanhos e feitios, umas largas outras estreitas, alcatroadas ou meros carreiros de areia, umas sem fim à vista outras sem saída. Em todas os semáforos foram regulados por um tipo meio bêbedo. Desconheço se é o mesmo para todas ou se todas escolheram um que se parece com os demais. Talvez haja características específicas necessárias para regular semáforos e por isso as cidades escolhem gajos iguais ou parecidos. Por vezes uma casa abre-me a porta e eu entro. Fico um bocadinho, mais ou menos longo e logo saio. Comecei muito cedo a vaguear pelas ruas sozinho e agora a vista de uma lareira, uma mesa de jantar, uma estante com livros, uma mulher deitada numa cama assusta-me. Volto ao frio, ao vento? Sim. Mas também ao sol, ao doce afago de um nascer do dia sem ninguém ao meu lado senão a perspectiva do dia. Os meus dias são compostos por uma sucessão de minutos, a minha vida por uma sucessão de dias. Não se iludam, porém: sei muito bem para onde vou. Só não sei como lá chegar, mas isso é outra história. O acaso encarregar-se-á de me lá levar. Entretanto, vou desenhando os mapas das cidades por onde passo. Podem sempre ser úteis para alguém. Ou para mim, quando este exílio for substituído pelo seguinte.

30.12.22

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 30-12-2022

Duas horas com o neto. O miúdo cresceu desmedidamente e é de uma agilidade surpreendente. Estou ansioso por que comece a falar. Até lá, mantenho a minha opinião: é um tubo digestivo com pernas. Ao princípio era o Verbo. E antes do princípio era o quê? Amor mudo...
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Amanhã passo o fim do ano com o T. A experiência do Natal, que há tantos anos não tinha, continua. No princípio é a família. Não sou suficientemente mediterrânico para dizer que a família é tudo mas sou-o para saber que a família é a âncora que nos prende à vida. Os natais e fins do ano que passei sozinho ou no mar ou em casa de amigos não me fizeram mal nenhum. Antes pelo contrário: ensinaram-me a dar valor a estes seres com quem partilho muito mais do que genes.

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Está a chover, vírgula, claro. Estranho seria o oposto. Já as temperaturas estão amenas para a época. Mais lenha para a fogueira dos catastrofistas. O desequilíbrio na informação é brutal. Há pouco ouvia um programa da Sud Radio com um jornalista científico que escreveu um luvro chamado Sapiens et le climat. Faz um levantamento de tudo o que se sabe sobre as mudanças climáticas desde que o homo sapiens apareceu na Terra. As alterações foram ainda mais brutais do que aquilo que eu pensava e obviamente não tiveram nada a ver com o homem. 

Há verdadeiramente que fazer um enorme trabalho de correcção do rumo actual da comunicação social. Esse trabalho tem de ser feito, sob pena de se voltar à idade das trevas. Precisamos de um novo Nietzsche, que o antigo ganhou cheiros. Injustos, mas não há quem lhos tire. Verdade seja dita: ele tinha a tarefa mais fácil. Só tinha um deus a matar. Agora há muitos. 

A modernidade e eu

A minha geração bem pode limpar as mãos à parede com o mundo que deixa à seguinte. Podemos - e devemos - ralhar, gritar, insurgirmo-nos contra a cultura woke. Mas fomos nós quem a formatou. Falhadas as  ideologias dos colectivismos do século vinte, acreditámos na liberdade como valor absoluto.  Às novas gerações, a única rebelião possível é lutar contra essa liberdade. Demos ouvidos a Rimbaud: somos "absolutamente modernos". Não lhes resta senão ser anti-modernos, voltar à censura e ao cancelamento (como faziam os vitorianos com o sexo, por exemplo). Matámos os deuses: eles ressuscitaram com redobrado vigor, multiplicaram-se, compartimentaram-se em múltiplas capelinhas. Fizemos da Razão o pilar central das nossas mundovisões: não lhes resta outra porta que a do pensamento mágico.

Isto dito, continuo a subscrever todos os valores que me formataram. Por nada deste mundo trocaria a minha Liberdade (assim mesmo, em caixa alta). Lutei para a ter; agora luto para a manter.

O zeitgeist é um cilindro compressor. Vejo muita gente da minha idade ceder-lhe ("il faut être absolument moderne", lembram-se?) Resistir-lhe é quixotesco? Talvez. Mas não lhe resistir é trágico. Prefiro morrer de pé levado pelas asas de um moinho a morrer cilindrado por um rolo compressor pilotado por um "acordado" cego, surdo e intoxicado de "bondade",  Quem resistiu às sereias dos colectivismos tem a obrigação de resistir à do colectivo.

29.12.22

Palácios, pessoas

N'O Leopardo o Príncipe (enfim, o sobrinho por ele) diz " Um palácio do qual se conhecem todas as divisões não merece ser habitado".

O mesmo se pode dizer das pessoas, não é?

Vida - breve definição

É como se estivesses a esvaziar o oceano com um balde. A maré baixa e pensas que conseguiste. Mas logo a seguir volta a subir e apercebes-te do logro. Não páras o balde mas agora já não tens ilusões. 

Isto supondo que aprendeste à primeira.

28.12.22

Breve apologia do solipsismo

O mundo exterior aborrece-me. É monótono na melhor das hipóteses e maçador na maioria das vezes. Prefiro olhar para dentro. "Nada do que é humano me é estranho." Já fui quase tudo e o que falta serei. Basta esperar. Interagir com o real é como jogar ténis à parede. Já comigo há um jogador do outro lado da rede. O mundo exterior é como o recreio de uma escola: vazio é feio e cheio barulhento. Refugio-me em mim, onde tudo se alterna ou baralha ou mistura ou acontece simultaneamente. Tenho em mim toda a ordem e toda a desordem do mundo. Quando vejo vejo-me, quando sou olhado não sou visto. Tal como Sísifo subia pedras eu levanto paredes e logo a seguir destruo-as. Não escrevo, escrevo-me. Não vivo, vivo-me. Não morro.

27.12.22

Tempo, espera

É depois do solstício de Inverno que os dias me parecem mais longos, o que não é de espantar porque o frio aumenta. No fundo, a promessa do solstício só se cumpre em Março, quando chega a Primavera (e o equinócio, para os preciosistas). 

Se aprendemos alguma coisa com o tempo é a esperar. O que não é de espantar: é para isso que ele foi feito.

25.12.22

Grande angular

Bastar-te-ia talvez saberes enquadrar a vida, escolheres a focal correcta para cada momento. Seria fácil olhares pelo visor e veres a quantidade certa de vida, toda a que nele cabe a cada instante. Infelizmente não sabes. Apanha-la toda de uma vez só, engasgas-te, cospes metade, engoles a outra metade meio por mastigar.

Agora, aguardas tranquilamente que este cansaço tenebroso se aligeire e volte a ser do bom, do que te larga quando te deitas. Esquece o zoom. Deixa tudo para a grande angular.

Maldito cansaço

Deitas-te e o cansaço não te sai pelos poros todos do corpo, sedativo sopro que te expurga dos restos do dia. Hoje, ao contrário do que é habitual, deitas-te e o cansaço fica dentro de ti a moer-te espírito e músculos. Sente-lo a correr-te nas veias, feito sangue palpitante. Estás demasiado cansado. O dia - os dias, foram muitos - vão continuar a triturar-te por dentro, como se dentro de ti tivesses um ruminante indiferente ao que te rodeia. Este cansaço não é bendito. É nefasto, perverso. Que seja amaldiçoado. Sobretudo, que dê rapidamente lugar ao outro.

24.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 24-12-2022

Podem dizer o que quiserem, mas este foi um dos melhores natais da minha vida. Podemos dizer o que queremos, mas no fim da linha, no fundo do saco o que está são aqueles que conhecemos há mais tempo. Digo muitas vezes que uma das poucas coisas que admiro na aristocracia é o tempo, a noção de tempo com a qual ela vive. Desse ponto de vista, este foi um jantar nobre. Bem sei que o fio do tempo era curto; bem sei tudo e mais alguma coisa. Bem sei. Mas ter quatro quintos da fratria juntos, ter a maioria de sobrinhos e sobrinhas ao meu lado - muitas das quais não via há anos - não tem preço. Quem diz mal do Natal ou não percebe nada ou não tem família. Eu percebo e tenho e sinto-me feliz por isso.

Não sei se feliz é o termo correcto. Afortunado é. 

23.12.22

Recheio, ano

Quantos de nós poderiam escrever um livro, agora que o ano chega ao fim, intitulado Em busca do significado perdido? Não sei. O significado é parecido com o recheio de uma salsicha e nunca vi uma salsicha com o recheio perdido. O ano é assim também: não perde o recheio, ainda que por vezes seja dificil distingui-lo do resto. Não existe um ano sem recheio, tal como não há recheios negativos. Um recheio é sempre, por definição, superior a zero.

O mundo e eu

Todos nascemos com uma ideia fixa: fazer uma sociedade com o mundo chamada O Mundo e Eu, Sociedade Ilimitada. Nem sempre funciona, é forçoso reconhecer. Às vezes há falências (felizmente poucas), outras (a maioria) a sociedade tevela-se bastante limitada e nalgumas, raras, os sócios começam a lutar desde muito cedo e nunca mais acabam, até à morte de um deles (é sempre o mesmo).

McGiver e eu

Não me lembro de como começou este ano. Procuro no DV, mas no telefone é difícil e abandono. Estou mais interessado em como acaba e em como começa o próximo. A resposta é simples: mal. Mais complicado vai ser transformar este "mal" em qualquer coisa de aceitável. O desafio é interessante, obriga-me a transformar-me numa espécie de McGiver da mente, um McGiver manualmente desajeitado mas psicologicamente apto a enfrentar situações complexas e - sobretudo - a dar-lhes a volta, transformá-las, decompô-las numa sequência de status digeríveis, por assim dizer.

Claro que poderia argumentar: Estou farto de metamorfosear, decompor e reconstruir situações más e fazer delas um ersatz de felicidade. Não valeria a pena. Esta não será decerto a última. 

[Adenda: começou maravilhosamente em Ponta Delgada.]

22.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 21-12-2022

O solstício de Inverno é hoje (às vinte e uma e quarenta e oito, para quem estiver interessado) e eu aqui sentado à espera. Esperar é muito chato, é uma seca, um horror; há porém que reconhecer que ter esperança é pior. Eu não tenho esperança nenhuma em nada apesar de passar a vida à espera. À espera de chuva, à espera do solstício (é a primeira vez que isto me acontece e será provavelmente a última. Preocupo-me tanto com as paragens do Sol como com o meu primeiro biberon ou o que o Papa pensa do sexo antes do casamento. Espero pelo solstício unicamente para ter alguma coisa diferente do habitual por que esperar. Se esperar é chato, fazê-lo sempre pela mesma coisa é pior ainda).

Espero também que esta pedra que arrasto comigo para todo o lado me largue; sendo, contudo, pouco provável que isso aconteça em breve não dedico muita atenção a essa espera. Há que saber seleccionar as esperas, coisa que se aprende com a prática. Nenhuma teoria nos ensina a esperar ou o que esperar. Tem de ser uma aprendizagem empírica. Espera-se o que é inevitável esperar. Ao lado, acrescentam-se uns pós de outras esperas para variar o mix, esperam-se uns anos para que o saber consolide e pronto, um dia somos doutores em espera. (Tal como somos doutores em desenrascanço, outro atributo útil a quem tem de esperar.) 

20.12.22

Sono

Sono, insuspeito e fugaz sono, o que tu gostas de te fazer esperar é inaceitável. Despacha-te!

Diário de Bordos - Lisboa, 20-12-2022

Amor e ódio, como um cão que se morde a cauda a correr em círculo sem parar. É o que me ocorre cada vez que penso na minha relação com este país. Hoje fui à DGRM porque ando a tentar ligar para lá e ninguém responde (desde muito antes das cheias, se por acaso). Enviei-lhes um e-mail cheio de raiva contida e esqueci o assunto. Tinha de lá ir, ponto. A senhora que me atendeu foi de uma simpatia inexcedível. Portugal é isto: uma oscilação permanente entre a inoperância e a amabilidade - é o caso da TAP, já aqui o tenho dito. Até se entrar no avião é a pior companhia aérea do mundo, uma vez lá dentro metamorfoseia-se e fica uma das melhores. 

Vinha a pensar que devíamos exportar, para além de jovens qualificados, dois grupos de pessoas: os grafiteiros (?) e os funcionários públicos. Porém, depois da experiência desta manhã, penso que é injusto. Os funcionários públicos devem ter de passar por um filtro.  Não são todos os que merecem um lugar em países organizados. Para equilibrar as deficiências sistémicas retemos os amáveis, os prestáveis, os que merecem a designação de funcionário público. Os outros? No avião juntamente com os idiotas que sujam paredes.

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Começo a trabalhar seriamente no meu projecto pós-mar. É uma ficção, claro. Nunca deixarei o mar a menos que a carcaça decida por mim e as farmacêuticas se coliguem. Mas acredito piamente numa transição modulável, em suaves prestações mensais.

(De qualquer forma, verdade seja dita: a única forma de gerir o "presente actual" é projectar-me no futuro. Tenho uma carreira garantida: cursos de gestão de stress. Vou treinando a prática com os meus acontecimentos literários, que terão várias formas e feitios.)

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O mau tempo passou. Daqui a uns dias há mais. Há muito tempo que não via tantas depressões nas nossas latitudes. A jet stream veio a banhos e dá-nos chuva a baldes. Às vezes acontece, não tem nada a ver com alterações climáticas. A única coisa alterada no meio disto tudo é o bom senso e a Razão. Não me admira nada que os jornalistas se pavoneiem por aí com o rei na barriga. Fazem a chuva e o bom tempo (metafóricos, os das cabeças). Conseguiram parar metade do mundo com a histeria da Covid e agora sentem-se cheios de energia com as alterações. Deviam talvez ir ao café desalterar-se e pensar um bocadinho, caso lhes restem dois ou três neurónios funcionais.

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Vinho: Três Tourigas Reserva, 2020. É um vinho do Pingo Doce a quatro euros a botelha, "produzido e engarrafado pela Symington". Os vinhos do Douro estão a arredondar-se e cada vez têm menos pontas por se lhes pegue. Este escapa, por pouco. 

Qualquer dia restam-nos os vinhos da Beira e alguns de Trás-os-Montes. O resto irá para o carrocel: todos iguais.

19.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 19-12-2022

Estou de novo a bordo do S. M. II. As razões interessam pouco: deixemo-las de lado, que é aonde pertencem. O que interessa agora é esta sensação de ter um elástico nas costas que me leva para um barco, de preferência veleiro, cada vez que penso ter finalmente um pé em terra. É como se isto fosse o meu habitat natural, inelutável e de cada vez que penso que me afastei dele por uns tempos o dito habitat persegue-me, alcança-me, engole-me, coça a barriga e ri-se. E depois, claro, penso na sorte que é ter aquele grupo de que falei no outro dia, o grupo dos Eles, aqueles que me demonstram que não estou sozinho por muito que às vezes pense estar.

De maneira oiço a chuva, sinto com prazer os embalos do bote, felicito-me por ter deixado a burra no edifício do escritório (se amanhã tiver sorte os funcionários da doca partilharão o meu entusiasmo) e pergunto-me se os meus últimos vinte anos serão, um dia, mais calmos do que os precedentes.  Claro que serão. Antigamente, durante as tempestades os marinheiros deitavam óleo para o mar, para diminuir a violência das vagas. Os meus óleos para aplacar os anos que aí vêm são dois: o neto e escrever. (Neste não ponho muita fé, mas naquele sim.) Dorme-se bem num barco, pelo menos se não se for claustrófobo, sobretudo quando se ouve a chuva de tão perto e se está bem tapado, quente como se se estivesse ao lado de uma lareira.

Só que agora a lareira está do lado de dentro de mim e não sei se queima se aquece.

18.12.22

Embrulha

É como se tivesse o corpo dividido em duas partes, o invólucro e o conteúdo.  Mas aquele não foi feito a medida deste. Como se alguém tivesse querido embrulhar uma garrafa numa bola de futebol. O que está por fora não joga com o que está por dentro. Tento ajustar um ao outro: é como andar no gume afiado de uma faca, tem-te não caias em que se caires para um lafo magoas-te, para o outro dói e se não caires cortas-te até à medula.

Adivinha

"The world that we think we see

It's only our best guess".

Margaret Atwood, Dearly

Diário de Bordos - Lisboa, 18-12-2022

Acordei tarde e com uma ligeiríssima Menière a chatear-me. Pequeno-almoço rápido, de pé na cozinha e viemos para o hipermercado fazer compras para um jantar que o A. dá logo à noite. Resultado: estou no café a beber imperiais, esperando que o Menière se vá embora e o A. me encontre, qualquer das duas coisas o mais depressa possível, senhor. Às vezes digo, meio na brincadeira, que sou um troglodita. Nestes supermercados vejo que não é meio na brincadeira: é totalmente a sério. Odeio estes espaços cheios de objectos que não identifico, pessoas que não conheço, vendedores sempre ocupados, barulhos cacofónicos, mulheres gordas e feias, com filhos birrentos pelas mãos, meios de pressão que não controlo.

Quando vou a uma mercearia e o homem põe mais do que aquilo que eu peço, digo-lhe educadamente para tirar o que está a mais e pronto, fica o assunto resolvido. Aqui não: tudo está feito para que um tipo compre o dobro do que precisa, desde a iluminação à cor das saias das empregadas.

Dêem-me mercearias de bairro, mercados municipais, a loja de ferragens do Luís, a livraria da Caroline ou da Ana. Em troca, prometo deixar de dizer meio na brincadeira e assumir, completamente a sério: sou um troglodita.

(A meu lado senta-se uma senhora que não é gorda nem feia e não tem crianças. Muito gosta a realidade de me desmascarar.)

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Uma relação é feita para que cada um dos dois (polis, só para o duche) possa ser o que é. É um encontro de liberdades. Se não se puder ser o que se é,  se se tiver de restringir a cada instante, deixa de ser uma relação. Não preciso sequer de invocar a minha idade: nenhuma é boa para se viver o que não se quer viver.

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Agradabilíssima cerveja à beira Tejo. No regresso passámos pelo meu SCARLETT, todo arranjado e bonito. Uma das viagens mais bonitas que fiz: trazê-lo de St. Malo para Lisboa, sozinho. Na Roca hesitei em seguir para as Canárias. Não o fiz e não perco muito tempo (não perco tempo nenhum) a perguntar-me como teria sido a minha vida se não tivesse entrado em Lisboa. Limito-me a vivê-la, às vezes a revivê-la e ficamos por aqui, querida vida. Prefiro uma vida vivida a mil imaginadas.

Oiça um bom conselho

Compreender mil vezes antes de julgar uma; e que esta não seja a última, que não seja definitiva. Por muita lama em vez de lava com que a erupção te cubra. Sê paciente, espera até teres a certeza de que por baixo da lama só há mais lodo e que a lava é o que está visível à superficie. Não ajas precipitadamente. Espera até o cheiro do lodaçal se dissipar. É esse o momento em que te verás mais claro. 

17.12.22

Até amanhã

Qualquer coisa se me escapa das células todas do corpo. Não sei o que é mas sei porquê: para dar lugar ao sono. Talvez seja o dia, os restos do dia, o pó. Não sei. Mas à medida que vai saindo o meu corpo esvazia-se e dá lugar à noite, à benevolenta e apaziguante sonolência com que me despeço de mim. 

Até amanhã, eu.

Eles

Estou no rés-do-chão da Ler Devagar a beber devagar, sonhar devagar, divagar devagar, devanear devagar, passar o tempo devagar. Há treze anos tive um escritório aqui, não no rés-do-chão mas no último piso da máquina. Foi o escritório mais bonito que jamais tive e o melhor também, de certos pontos de vista. Escuso-me a enumerá-los; espero que não se importem. Estou também a memoriar devagar; nada de pressas nem de precisões inúteis. O escritório mais bonito, o projecto mais bonito, um ano bonito. Talvez um dos melhores, sim. Não sei. Foi há tanto tempo. 

Deixo o tempo fluir devagar. Vou buscar um livro, penso que no fundo tenho sorte: a minha solidão é superficial. No fundo (o outro fundo, aquele que conta) não estou sozinho. Nunca tinha pensado nisto: solidão superficial, vogar sozinho por cima da vida verdadeira, parte de um cardume que se manifesta em pirâmide, em cima despovoada, a base sólida. Vou provavelmente passar o Natal sozinho, mas isso pouco me afecta. Não é o primeiro, não será o último. O Natal é um dia como os outros a quem alguém um dia decidiu atribuir qualidades diferentes. Basta um tipo alhear-se dessas qualidades e "Natal sozinho" perde toda a carga emocional que tem à vista desarmada. Basta um tipo alhear-se da superfície para não se preocupar com o fundo. Eles estão lá. Que se vejam no dia a dia ou não,  que se oiçam por vezes gritar ou não se oiçam de todo, eles estão lá. Eles.

(Este texto é dedicado a Eles.)

11.12.22

Cachecol cinzento

Pronto, o cachecol cinzento lá saiu do armário outra vez. Aquilo entrou na minha vida desde que a minha vida começou, ainda eu não sabia que estava no começo da vida e dela nunca mais saiu. Há coisas que vêm para ficar, como a Toyota, as constipações e o cachecol cinzento. Aquilo já é tão parte de mim que não chega sequer a ser uma coisa, é quase uma pessoa, uma parte de mim que de vez em quando vem à luz do dia, como se o Sol andasse desregulado e só aparecesse quando lhe dá na gana e não quando a gravidade e a grandiosa mecânica celeste lhe dizem que deve aparecer.

Quando não está cá fora porque é Inverno e eu estou constipado o cachecol fica no armário, na gaveta da roupa de mar / Inverno, apesar de eu não o usar no mar. (Não o quero estragar.) Ou seja, no Verão vejo-o menos. Só vejo o Sol, de quem ele é, de certa forma, irmão.

Definição - escritor

Escritor não é o que escreve, é o que é lido.

10.12.22

Refúgios - editado (Re-re-reedição)

Talvez devido às nossas origens animais temos tendência a ver um refúgio como um lugar físico, uma paisagem, uma casa, uma gruta. Não é necessariamente assim: podemos por exemplo refugiar-nos na música (particularmente na de uma cantora de jazz chamada Jeanne Lee, na música medieval e mística de Hildegarde von Bingen ou na 5ª sinfonia de Mahler; ou em tantas outras). Podemos também refugiar-nos no álcool, especialmente no vinho ou no whisky, numa tentativa camusiana - isto é, inútil mas necessária - de afogar os demónios; podemos refugiar-nos nos livros, num corpo feminino (desde que esse corpo tenha uma alma, porque um corpo sem alma não é um refúgio, é um poço, é como cair a um poço). Muitos de nós refugiam-se na solidão: não é um bom refúgio, para mim. É o lugar da memória, da abjecção (“Solo una cosa no hay: es el olvido./ Diós, que crió el metal, crió la escória / y cifra, en su profética memória / las lunas que seran, y las que han sido”, dizia esse outro gande refúgio argentino).

A depressão é um refúgio, também; o pior e o melhor deles: é o mais doloroso, cruel, o mais indescritivelmente maldoso, o mais eficaz, porque nos isola de metade do mundo, da sua metade boa. E só nos deixa ver a dor. A depressão é como ter que andar com uma fractura exposta que não se vê, não se vêem as feridas dilaceradas, não se vêem as carnes rasgadas, não se vê o sangue, não se pode cortar o mal pela raiz sem cortar o mal tout court, ou a raiz. A amizade tão-pouco é um bom refúgio: não depende só de nós, e num bom refúgio devemos ser autónomos, por definição, sozinhos.

(Alguém dizia que a liberdade é a possibilidade de cada um escolher as suas própias prisões; um refúgio devia ser a versão optimista de uma prisão - como se houvesse versões optimistas do que quer que fosse...)

Mas enfim, devo reconhecer que tenho um refúgio secreto em Portugal, e que esse refúgio é um lugar físico: é o mar; em especial aquele pedaço de mar que vai do Cabo da Roca ao Cabo Raso, do qual nunca me canso, no qual nunca me canso. Gosto do contraste entre as linhas verticais do Cabo (que não são bem verticais, são oblíquas e um pouco grosseiras, como se estivesse a chover rocha) e a curva graciosa e horizontal da praia. Gosto do Guincho a pé, a cavalo ou de bicicleta, de carro ou de avião. Gosto de passar o Raso quando venho a navegar do norte porque é quando se começa a cheirar a terra e a serra de Sintra tem um cheiro bonito, a pinhais e a maquis – um pouco como o da Córsega, mas mais bonito, porque esta é a minha terra e o cheiro vem carregado de passado; o da Córsega só tem presente. Gosto de estar no mar a olhar para a terra e na terra a olhar para o mar. Gosto do Guincho nos dias de vento, que são muitos e nos dias sem vento, que são mágicos. Gosto do Guincho aos domingos, dias de procissão automóvel e às segundas-feiras à noite, quando não há ninguém para ver o facho luminoso do farol apontar para o mundo. Tudo isto apesar de não gostar de praia. Mas o Guincho e aquela zona da qual ele é a alma, o centro não é só uma praia: e ainda bem, porque como praia deixa um pouco a desejar, não é?, com aquelas correntes, a água glacial, as rochas, as ondas desencontradas, o vento.

Gosto daquele bocadinho de mar porque nele me refugio desde a infância e os refúgios da infância nunca mais nos abandonam, sejam eles uma paisagem ou uma cabana nas árvores. Gosto daquele bocadinho de mar. É nele que gostaria de me refugiar, um dia. Para sempre.

Elogio do desenraizamento (Roupa velha)

É preciso reconhecer, contraramente a tudo o que tenho vindo a escrever desde que iniciei este blogue, que sou um desenraizado e o serei sempre. Escrevo isto em vésperas de ter uma coisa pela qual anseio há anos: um apartamento em Lisboa (este, em prémio, vem com uma flor dentro); mas escrevo isto, também, em Palma, numa praça anódina, igual a milhares de outras por essa cidade fora. Resolvi experimentar um café que não conhecia e o resultado não foi brilhante. O vinho é bom, acabo de passar duas horas a ouvir um concerto com alunos de escolas de música - alguns francamente bons - penso que não tarda estarei nesse porto seguro que é o Bar Rita, bar que tem nome de amor antigo e irmã de sempre - e percebo que por mais que faça nunca deixarei de ser daqui, de Genebra, de dezenas de lugares onde vivi. (Vivi tem aqui o sentido de «viver», independentemente do tempo que neles passei.) A pertença, sobre a qual tanto escrevo e na qual tanto penso, é um fenómeno «complexo não-linear» que nada tem a ver com o tempo. Ou tem pouco, talvez. Não «sou de onde estou», é verdade. Tenho raízes. Mas levo-as comigo para onde quer que vá. Agora estou em Palma como poderia estar em Lisboa, em Mértola, em Genebra ou no mar. Não sou de onde estou, mas sou de onde posso ser. De onde as minhas raízes se sentem bem, seja isso onde for.

(Palma, 12-06-2021)

Mitos, «ciência»

Que a humanidade precisa de mitos para se manter é coisa fácil de aceitar. Basta olharmos para trás e ver como eles se têm sucedido - quase sempre (mas não só) vestidos de ornamentadas roupagens religiosas. O que torna aborrecidos os mitos da era moderna é terem deixado essas roupas religiosas. Agora, vestem-se de «ciência» (aspas porque cito).

9.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 09-12-2022

Ontem comprei um bloco-notas e uma esferográfica nua loja chamada Flying Tiger ou coisa que o valha. Já a conheço de Palma, entrei ali para comprar qualquer coisa um par de vezes. A de Lisboa é igual, naturalmente. Vendem de tudo e mais alguma coisa, desde que seja bricabraque e possa ser vendido a preços de bricabraque. Parecem versões bonitas, arejadas e limpas de lojas chinesas. De modo escrevo no meu novo bloco com a minha nova esferográfica, que não o é. É uma lapiseira. Não faz mal. A um euro perdoo-lhe a metamorfose, que de resto é apenas devida à minha falta de atenção. Bem me pareceu, mas como ligo pouco ao que me parece, sempre liguei, enganei-me. Acontece-me sempre que me esqueço de pensar no que me parece. É assim há muitos anos e será assim pelos que me restam. De pouco serve afligir-me.

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Descobri recentemente a Mercearia Criativa, na Guerra Junqueiro. Sou extremamente reticente a aderir a essas lojas destinadas à burguesia «gourmet», essa que há vinte anos não sabia o que era salmão fumado e hoje se lança com avidez e sem olhar a preços sobre tudo o que desconhece e seja caro. Como tantas vezes, as minhas reticências earm injustificadas, o que me deixa contente. Perder preconceitos - no fundo, troar os velhos por novos - é uma infinita fonte de prazer. Tanto mais, neste caso, que isto só confirma que a Comida Independente não está sozinha. A Mercearia Criativa tem óptimos produtos e se se tiver cuidado alguns podem ser adquiridos a preços decentes - sendo os outros facilmente evitáveis. Além disso, a amabilidade, simpatia e competência de uma das suas vendedoras são inexcedíveis, o que não estraga nada, muito antes pelo contrário. Uma loja muito recomendável, se querem a minha opinião. 

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Diga o que disser, preciso de três meses em qualquer sítio para conhecer as minhas redondezas. Hoje foi a vez de um talho chamado Edgar e Luís. Fui lá a conselho da supra-mencionada senhora da Mercearia Criativa. À primeira vista parece-me estar num talho suíço ou alemão. Não tenho a certeza de que a qualidade da carne supere em muito a do meu bem-amado talho O Naco, na rua dos Poiais de S. Bento, mas estou aberto a provas. A verdade é que está muito mais perto e só isso a um bom ponto a favor. Isto acontece-me em todo o lado: exploro as redondezas muito devagar, passo a passo, como um cego de bengala num passeio cheio de trotinetes. Tem vantagens e desvantagens, mas tem sobretudo uma característica já ali mencionada: não vai mudar. Não se pode dizer que já me tenha aceitado, mas uma coisa é certa: aprendi a viver comigo.

Só por isso, os sessenta e cinco anos que levo ao lombo valem o seu peso em ouro, incenso e mirra.

8.12.22

Diário de Bordos - Lisboa, 08-12-2022 - II

Apanhei duas vezes o eléctrico. Por acaso (no sentido em que nem olhei para o número dos ditos) era o 28, que in illo tempore eu aconselhava aos meus amigos como tendo o trajecto mais bonito de Lisboa. Hoje não me preocupo muito com o percurso: basta-me ir para onde não estou, mais depressa do que indo a pé. Como os sítios onde não estou são muitos mais do que aquele onde estou, que é só um, um eléctrico que pára numa paragem ao meu lado parece-me uma boa opção.  Uma opção inevitável, por assim dizer. De maneira lá vou eu para Campo de Ourique, levado por esse grande rio chamado Lisboa, parte sólida dessoutro chamado Tejo.

Antigamente conhecia os condutores dos eléctricos por wattmen. Parece que a designação correcta é guarda-freios. Gosto mais da designação inglesa: o homem dos watts, da potência. O guarda-freios controla os travões. Preciosistas: sei muito bem que controlar travões é a mesma coisa do que controlar os watts. Em termos práticos. Simbolicamente é o oposto e continuarei a preferir a designação da minha por assim dizer urgência. 

Inevitavelmente penso nas vírgulas: os portugueses gostam delas e de freios. Eu não gosto. Prefiro watts e potência ininterrupta, seja por virgulas seja por passageiros curiosos que se mantêm mesmo atrás do  wattman a ver como se conduz aquilo. (Já sei onde é o apito. É no botão encarnado à direita do tablier.) E frases corridas, escorreitas, em forma como um atleta para os cem metros barreiras. Um dia conseguirei, tal como hoje me mantive atrás do homem, separado de mim por uma folha de plástico devida sem dúvida às alterações climáticas. 

Desço na primeira paragem de Campo de Ourique. O vinho é muito melhor. As cidades são a forma que Deus encontrou de replicar o paraíso na Terra.

Diário de Bordos - Lisboa, 08-12-2022

Só me apetece não me apetecer nada e tenho sorte: não me apetece nada. Na parte do dia em que ainda me apetecia qualquer coisa também tive sorte: apetecia-me um bom almoço e saiu-me na rifa um excelente, no Sabores de Goa. Agora não me apetece nada e o que tenho é pouco, muito pouco, quase nada: uma taça de vinho (ainda não provei) numa cervejaria do Camões, aposto que não é grande coisa, quase nada. Apesar de gostar desta cervejaria, note-se  éum daqueles clássicos que agora ascenderam à categoria de resistentes. Mas não é o que me apeteceria, se me apetecesse ter vontade de qualquer coisa: o Vertigo, o Fábulas, lugares assim, fechados pela "pandemia" (aspas para) ou pelos "turistas" ou, mais prosaicamente, por causa desta estúpida propensão que as cidades têm para mudar, como se fossem pessoas ou obra de pessoas.

De modo estou assim, sem apetências e sem destino, sem vontades e sem eus a chatear-me. O vinho é medíocre mas não tão mau como esperava e o eu que agora carrego é transparente, mal se nota na paisagem: a luz verde de uma farmácia à direita, o encarnado do semáforo à esquerda, a cidade vem direitinha contra mim e eu aqui sentado não lhe ligo nenhuma.

Mentira: de vez em quando levanto os olhos para a fauna da cervejaria, penso que devia ter trazido a máquina fotográfica, que não devia ter perdido as canetas, que devia ter o bloco-notas comigo e assim só teria de pedir uma esferográfica ao empregado (um senhor baixinho e com um enorme sentido de humor) em vez de escrever no telefone, penso que escrever no telefone tem algumas vantagens, penso na cidade na qual vagueio e da qual faço parte como um quisto (maligno ou benigno? Não sei) faz parte de um corpo, bebo o vinho a um ritmo vertiginosamente lento, troco uma chalaça com o empregado baixinho e piadético, deixo-me ir no lento caudal de uma tarde involuntária.

6.12.22

TPC

Sou contra o aborto e a favor da sua legalização e a favor da eutanásia e contra a respectiva legalização. 

Há uma coerência nisto, mas fica para depois.

Preguiça, opiniões

Tenho opiniões muito firmes sobre poucas coisas e pouco firmes sobre a maioria dos temas.

Simples questão de preguiça: construir uma opinião exige muito trabalho e leva imenso tempo.

4.12.22

Gralhas, escrever

Escrever escorreito é um objectivo tão risível como viver escorreito, amar ou sequer pensar. Ele há gralhas em todo o lado.

Felizes cicatrizes

A vastidão do frio não tem fim. Nunca nos encontramos  nele, por mais edredões que ponhamos por cima de nós, por mais amores que estendamos por baixo. O frio é uma vasta planície deserta sem fim à vista. Ela era uma luz nesse deserto, uma fogueira, um fogo, um afogueamento, um nascer do sol, uma espada em cujo rasto eu me queimava. Ainda hoje tenho as cicatrizes desse lume. Felizes cicatrizes.