30.8.23

Notas dispersas: adormecer a bordo

O processo de adormecimento tem duas fases. Na primeira, o cansaço esvai-se. Não sei bem por onde. Pelos pelos? Pelos poros? Não faço ideia. Sei que passa do corpo todo para a corrente sanguínea - assim recolhendo todos os resquícios de fatiga, mesmo os mais escondidos - e desta para a atmosfera (pela pele, tendo a crer).

Isto se o dito processo ocorrer em terra ou numa embarcação relativamente grande (digamos, mais de cem pés). Na cabine de vante de um pequeno veleiro, com mar agitado, é necessária uma terceira etapa, prévia às outras duas: o corpo tem de habituar-se aos movimentos do barco, adoptá-los, casar com eles. Só depois disso acontecer as outras duas fases podem começar.

Da tristeza e outras coisas

A Covid demonstrou à saciedade que o homem não é um animal racional. É um animal medroso. 

(A propósito de uma conversa com P. sobre a impossibilidade legal de as tascas suecas de beira da estrada venderem hambúrgueres mal passados. P. aprova, claro. Acha que as pessoas não são capazes de decidir o que é melhor para elas. Na época pós-covidiana é impossível não concordar com ele. O homem é um animal gregário, o medo é contagioso e tem mais força do que a Razão. 

Resta-nos um refúgio: o inalienável direito ao erro. Quaisquer que tenham sido as consequências da carneirada covidiana ter aceitado a narrativa da pandemia - foram dramáticas - as pessoas têm direito a enganar-se. Mesmo que agora paguem esse erro morrendo aos magotes.)

27.8.23

Diário de Bordos - Scheveningen, Países Baixos, 27-08-2023

 São nove e meia da manhã, chove e a temperatura do ar é de treze graus centígrados. Adoro estas latitudes - e respectivas atitudes (creio que nunca esquecerei o hospital de Cuxhaven) - mas seria incapaz de viver aqui. Estamos em Agosto, que diabo! Bem sei que não é assim todos os anos, mas é-o com suficiente frequência para tornar inabitáveis estes lugares. Só de passagem. Muitas, é certo. Mas não mais do que isso.

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Ontem fomos jantar a uma italianice qualquer. Por sinal bastante boa - mas não é esse o ponto. O ponto é que não se pode dar um passo sem dar com uma pizzaria. A cozinha italiana é muito, infinitamente mais do que spaghetti e pizze, bolas!

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Só apetece gritar "No rain! No rain" como os outros, ingenuamente, pensamento mágico em acção. 

26.8.23

É tempo de reler Stuart Mill

O tempo está para tiranos: a segurança, a «igualdade» (aspas porque cito), o clima e suas «alterações»... Tudo é matéria para certezas absolutas e invectivas a quem não alinha com a maioria.

«The despotism of custom is everywhere the standing hindrance to human advancement.» John Stuart Mill

Diário de Bordos - Scheveningen, Países Baixos, 26-08-2023

Saio do camarote e a temperatura é  de catorze graus. A máxima vai ser de vinte. Nada mau, para um dia de Agosto.

Como de costume, o aquecimento global está onde eu não estou. Esta coisa das alterações climáticas está mal feita. O que deviam fazer é misturar todas as temperaturas, distribuí-las igualmente pelo planeta e só depois, se fosse preciso, aquecê-las um bocadinho, algures para cima dos vinte e cinco e abaixo dos trinta. Aí sim, teríamos um planeta que seria um paraíso e não esta espécie de coisa moribunda por causa do malvado do homem, fria nuns sítios, quente noutros. Além de que isso promoveria a igualdade e a inclusão,  acabaria com o racismo e faria mais pelas mulheres do que duas Calamity Jane juntas.

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Há uma classe profissional cujo trabalho consiste em zelar pela nossa segurança. Os membros (salvo seja) dessa classe consideram, justa mas infelizmente, que coçar os tomates e bater punhetas a grilos não chega para justificar o salário que nós, aqueles por cuja segurança eles tão zelosamente zelam, lhes pagamos. Vai daí, começam a produzir regulações. Em nome da segurança, claro. E provavelmente porque já não têm tomates para coçar. Portanto regulam. Isto é, fazem merda.

À nossa frente está outro Najad, um trinta e seis. O dono tem de fazer um compartimento para as garrafas de gás, que segundo os batedores de punhetas a grilos não estão bem lá onde estão. E onde estão? No paiol da amarra (o aitio onde se guarda a corrente do ferro, para quem não sabe).

Ontem ao jantar - no meu caso, uns mexilhões que fizeram jus à reputação da cozinha holandesa ser a pior do Ocidente - foi esse o tema de conversa. P. está de acordo com a asfixia regulativa, claro. Respondo-lhe que tem de se pôr um termo, um limite. Não tarda, as cadeiras dos restaurantes terão cintos de segurança, não vá alguém cair e magoar-se. Não se pode querer acabar com os acidentes, nem com o erro, nem com as coisas que se desviam do plano. Isso é o sonho de quem não tem mais nada que fazer - e o pesadelo de quem tem uma vida para viver. 

25.8.23

Figuras tristes

Compram barcos, não os sabem manobrar e não fazem nada para aprender. Pergunto-me porque não compram antes autocaravanas. Sempre fariam figuras menos tristes.

Diário de Bordos - No mar, de Ramsmora para Cascais (etapa Cuxhaven - Scheveningen)

Estes cabrões (desculpem, não há outro termo) conseguem transformar a navegação num trabalho. Não merecem qualquer espécie de consideração. Não percebem nada do que é estar no mar, ir por mar de um sitio para outro, viver no mar.

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Tal como suspeitava, Cuxhaven não é a cidade mais encantadora do mundo. Ainda não encontrei um café onde sirvam à mesa e só vejo velhos, todos avariados, de andarilho ou cadeira de rodas motorizada, a grunhir porque atravesso fora da passadeira ou com o sinal encarnado.

Uma coisa porém tenho de lhe agradecer: pela primeira vez nesta viagem pude vestir uma t-shirt e uns calções. 

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25-08-23

Sozinho à noite no poço da embarcação. Melhor do que isto só se fosse à vela mas não se pode ter tudo. A noite está linda, fria, tranquila, a visibilidade é boa. Nem o raio do barulho do motor consegue estragar isto. Volta a ser navegação, não é só trabalho como tão frequentemente tem sido. Cada vez penso mais na tabela de preços do americano: trezentos e cinquenta por dia. Com o dono a bordo, quatrocentos e cinquenta. 

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É preciso dizer que P. é adorável e não merece de todo o epíteto com que abri o texto. O problema é que uma coisa é ser adorável em terra e outra totalmente diferente perceber que a navegação é uma mistura de técnica, magia e estética. Reduzi-la à sua condição técnica  - sendo, para mais, incompetente - destrói a paciência e a tolerância do mais humano e humilde dos marinheiros. 

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Vamos ter de parar noutro porto qualquer para deixar passar uma frente. Felizmente é rápido - se o GFS e o ECMWF tiverem certos. Se for o UKMO a ter razão ficamos dois dias.

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(Cont.)

A paragem vai ser em Scheveningen, aonde já estive há uns anos para uma escala igualmente curta. De passagem. É esse o meu status, sempre. E o título do meu próximo livro, já agora.

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O tempo continua chato, cinzento, rabugento, frio e sem vento, ainda por cima. O motor não pára de fazer barulho e eu de vestir a roupa de mar - não por causa da chuva, mas do frio.

A isto acresce a chatice de vir com o dono a bordo. Um gajo bem pode dizer-lhes que ser proprietário e ser skipper são dois trabalhos diferentes e que cada macaco no seu galho, mas de nada nunca serve. Se a ignorância é sempre atrevida, quando aliada à propriedade torna-se mortífera. Ou será ao poder? O meu Pai contava a história do comandante de um iate real que desobedeceu a uma ordem da rainha dizendo-lhe que não iam para o porto que ela queria e sim outro "e mal cheguemos desembarco, para não ter Vossa Majestade necessidade de me despedir (esta última parte é invenção minha, mas não deve ser muito diferente do original)." Ideia essa de resto que já me passou pela cabeça várias vezes e não foi posta em prática porque na verdade o P. é um tipo porreiro (enfim, isto ainda está por confirmar. A ver, como dizia o ceguinho. Até ao lavar dos cestos...) e porque a situação não precisa de soluções tão drásticas. Isto para não mencionar o guito, de que tanto preciso: próxima operação ao olho esquerdo, P., B. P., exposição e - a esperança é a última a morrer - encontrar uma casa, se possível fora de Lisboa. Os meus livros querem ir para o campo e eu vou atrás deles, feito pastor. (Não sei se os pastores andam atrás ou à frente do gado mas pouco importa.)

21.8.23

Diário de Bordos - Cuxhaven, Niedersachsen, Alemanha, 20-08-2023

O restaurante era uma merda. A sua única coisinha boa era a empregada que nos atendeu inicialmente, que tinha tudo o que uma boa empregada deve ter e nos respectivos lugares.

P., porém, estava contente. Gostou do jantar e diz que pela primeira vez comigo teve uma palavra a dizer na escolha. É mentira mas não me importo muito: já o levei a sítios piores. O verdadeiro nó, para mim, foi o lugar ser grego e eu pensar que se estou na Alemanha devo comer comida alemã, pelo menos os dois primeiros dias. Ou as duas primeiras refeições, não sei.

Resultado: a tarama de bonito só tinha a cor, a moussaka de moussaka o nome, os ouzo (oferta da casa) e os vinhos eram decentes. E a empregada, claro. Em resumo: uma boa noite que me faz esperar ansiosamente pela chegada a Cascais, mesmo que isso implique uma perda financeira. De qualquer forma,   faça eu o que fizer há sempre uma perda financeira à espera. Já não estranho nem desespero.

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O que vi de Cuxhaven foi o resultado dos trajectos de táxi. À primeira vista não parece uma cidade encantada e menos ainda encantadora. Aposto que à segunda (longe vá o agoiro) o parecerá ainda menos.

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Segunda travessia do canal de Kiel. Da primeira pouco lembro senão o imenso aborrecimento. Espero que desta fique mais qualquer coisa. O cheiro a bosta de vaca, por exemplo. 

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Cada vez me parece mais que devia ganhar o totó milhões e uma injustiça discriminatória que seja preciso  comprar um bilhete para ter uma probabilidade em duzentos e quarenta e nove mil milhões de isso acontecer.

19.8.23

Diário de Bordos - Klintholm, Zealand, Dinamarca, 19-08-2023

(Notas soltas.)

Farto destes filisteus do mar que não percebem aonde andam.

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Escala técnica em Klintholm, na Dinamarca, com uma avaria no motor.

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É mais uma prova da fundamental injustica da vida, uma prova desta vez geográfica: que raio fizeram estes vikings para criar mulheres como estas? Nada! Mataram, pilharam, incendiaram. E é assim que são recompensados?

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O calor do bar transformou-se em copiosa e gélida chuva à saída. Cheguei a bordo encharcado, cheio de frio e com receio de que o meu computador - notoriamente avesso a duches - me faça pagar caro a imprevidência.

Começo a compreender porque têm estes tipos as mulheres que têm. Só lhes desejo que o clima não mude tão depressa como a parvalhona da miúda sueca quer que mude.

(Forçoso é reconhecer que ela tem pelo menos a qualidade de ser previdente e de começar desde cedo a acautelar o seu futuro, mesmo que isso implique lixar o dos outros.)

(Cont.)

15.8.23

Diário de Bordos - Ramsmora, ilha de Ljusterö, arquipélago de Estocolmo, Suécia, 14-08-2023

Da Suécia não vi ainda nada senão o suficiente para perceber que o que vi confirma ponto por ponto a imagem que fazia do país, apesar de só o conhecer dos filmes do Bergman e de artigos de jornais e revistas. Autoestradas com um controlo feroz da velocidade e do álcool, diz-me o P.; uma marina no meio de nada, versão nórdica de Shelter Bay; um shipchandler aonde fui comprar sapatos caríssimos - só tinham Dubarry, Sperry e Sebago, venha o diabo dos pobres e escolha; restaurantes que fecham às nove da noite. Felizmente um deles pertence a um brasileiro e lá conseguimos comer (um prato de salmão com batatas cozidas num molho que não sei nomear). E beber: três copos de vinho cada um. Não sei quanto foi, mas sei que foi caro e que o salmão estava bom.

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A época está a chegar ao fim e tudo está triste e vazio. Já eu não estou nem triste nem vazio. Estou ansioso e cheio de não sei quê, uma combinação que em mim nunca resulta. A viagem alegra-me e atenua a ansiedade pandemónica. Há muito tempo que sonho com ela. Só é pena ter ficado a tão poucas milhas dos sessenta graus norte (trinta e duas, se por acaso). É a latitude mais alta aonde estive até hoje, em qualquer dos hemisférios. Ainda um dia farei a costa da Noruega. Se possível vestido de amarelo e com um estojo de violino numa das mãos. 

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A embarcação é um Najad 38. Podia ser pior, muito pior. O P. quer largar amanhã e ir para outra ilha, a quinze milhas daqui. Mas também quer ir a Estocolmo comprar um cortador de cabos para o veio do hélice; e fazer compras; e arrumar o  barco; e fazer uma vistoria a tudo o que temos a bordo. Disse-lhe que se estivermos prontos até às cinco saímos, depois disso não. 

Apesar de por mim saíamos a qualquer hora. Shelter Bay sem macacos roncadores e com treze graus centígrados de temperatura não é Shelter Bay não é nada. De qualquer maneira, aparentemente a navegação nestas ilhas é de olhos na carta (ou no plotter, mais precisamente). Venha ela, que muito precisado estou.

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Um hip hip hooray para a minha neta Adriana, que um dia será muito mais bonita do que é hoje, coitada, que mal acabou de nascer.

Mas lá que é comovente e enternecedor olhá-la e tê-la nos braços é, e muito. Ainda ontem a vi e já estou com saudades dela, raio da miúda.


13.8.23

Deus, provocações

Cada vez estas mulheres muçulmanas me chateiam mais, com os cabelos e o pescoço tapados e as roupas disformes. Quem pensam elas que são, para esconder aquilo que Deus fez?

Paráfrase

A velhice são os outros.

12.8.23

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 12-08-2023

No outro dia ri-me, pela primeira vez em muito tempo. Bom, isto não é inteiramente verdade. A primeira parte sim, é: ri-me. A segunda não. O que eu quero dizer é que me ri de uma maneira diferente da dos últimos meses. Um riso em-si, puro, não teleológico: não tinha qualquer objectivo, nem à superfície nem escondido. Tenho andado para escrever isto desde esse dia, mas ando com pouco tempo para escrever. Ontem nasceu a Adriana, é um nome bonito. Hoje fomos almoçar com o PAD, para celebrar os seus setenta anos (foram em Julho, mas só calhou agora). Depois do almoço o T. e eu fomos beber umas cervejas os dois. A mistura de cervejas e filho resultou bem.

Agora estou deitado - escrever na cama substitui frequentemente ler (os leitores agradecem certamente: no telefone escrevo menos disparates do que no computador, sentado a uma mesa). Penso no riso, na Adriana e no irmão Leonardo, na vida que deixei para trás em Genebra, na ou nas que a substituiram. S. está na montanha, de maneira estou sozinho em casa.

Amanhã vou ao mercado de Plainpalais beber um copo de vinho tinto e comprar fruta e depois de amanhã à Suécia buscar um Najad 38 para Cascais, aonde já está o BP, ainda não totalmente isento de problemas mas lá perto. O trabalho no P. prossegue. Gostaria de lá estar, mas as coisas teimam em não ser como deviam ser - isto é, como nós queremos que elas sejam.

Como o meu riso do outro dia. Já não me lembro do que o provocou, mas recordo perfeitamente o bem que me fez.

9.8.23

Sorte, beleza

Deve acreditar-se na sorte como se acredita na beleza: sabendo que é passageira, fugidia, elusiva - mas existe.

7.8.23

Diário de Bordos - Barcelona, Catalunha, Espanha, 07-08-2023

Pergunta aos meus leitores juristas: o voo estava narcado para as vinte duas e quarenta. Durante a tarde recebi a mensagem do atraso para as vinte e três. Tarde essa que foi honoravelmente passada a beber copos como o V., um homem sério que me arrastou para esta vida contra toda a minha vontade. Às vinte e uma e trinta estávamos ambos no bar cujo nome não recordo e apercebi-me de que talvez - sublinho talvez - fossem horas de ir para o aeroporto. Saio do dito bar precipitadamente (mas não sem pagar a despesa, há que correr pelas razões justas) e mal cheguei a uma rua com trânsito apanhei um táxi. Dentro do qual fico a saber que afinal o voo sai às vinte e três e cinquenta. As consequências são: a) uma viagem de táxi em vez de autocarro; b) um jantar no aeroporto em vez de na cidade; c) uma espera de uma hora no aeroporto. A minha pergunta é: quem tem de pagar estes inconvenientes todos: a) eu; b) a companhia aérea; c) o tanas?

Voto pelo tanas, que é a vítima habitual deste tipo de incidentes. Infelizmente o tanas sou eu, no linguarejar das companhias aéreas.

Não é despiciendo notar que as minhas decisões foram tomadas com fundamento na informação que eu tinha no momento. Ou seja: começo a acreditar que não se devem tomar decisões com informação atempada, mas sim com informação a posteriori. Deve jogar-se ao totobola às segundas-feiras e não às sextas.

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Uma questão que me tem atarabustado ultimamente é a da influência da filha da putice no dispositivo de fixação de preços. Para um liberal, os preços fixam-se em função da procura e da oferta. Não há considerações morais no mecanismo. Porém, há quem pense que aproveitar-se da miséria alheia é eticamente censurável. Dou como exemplo os ingleses, que durante muito tempo não tinham rebocadores de alto mar (não sei se ainda é o caso) porque achavam errado aproveitar-se financeiramente da desgraça de um navio em dificuldades. Isso não os impedia de ter rebocadores estrangeiros em standby nos pontos estratégicos (o CINTRA, do qual o meu Pai foi imediato e mais tarde capitão é um exemplo). Havia uma razão para isso: a boa-vontade não chega para pagar a assistência a quem dela precisa. Financeira, económica e humanamente mais vale pagar a um rebocador do que não ter rebocador. Ou seja: no mecanismo da fixação de preços a ética não tem lugar à mesa. 

Um outro elemento a ter em conta nesta equação é um axioma simples: cada um deve defender os seus interesses e não os dos outros. Isto é: cada um é responsável por aquilo que é melhor para si e não por aquilo que é melhor para outrém. Se os rebocadores do meu exemplo supra pensarem no navio em dificuldade e não na sua tripulação e nos custos de manter o navio em menos de três não haveria rebocadores.

Contudo, neste mecanismo de fixação de preços há um parâmetro que permite a inclusão de factores subjectivos. A amizade, por exemplo. A empatia: se um amigo estiver numa aflição e eu o puder ajudar ajudo-o, independentemente da lei da oferta e da procura. Não vou cobrar a um refugiado o trabalho que tive a salvá-lo. 

Entre estes dois extremos - de um lado a lei da oferta e da procura, do outro a humanidade - há espaço para mover o cursor, como quando tentamos encontrar a iluminação certa com um dimmer. A grande dificuldade é saber onde colocar esse cursor. Em que ponto da linha, digamos. Todos e cada um de nós pensam ser único e merecedor da empatia alheia. Já os fornecedores da empatia não vêem o mesmo.

Por isso, devemos eliminar a filha da putice da equação. A diferença reside simplesmente numa situação diversa das perspectivas; ou, para rimar, das expectativas.

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O BP está a caminho de Portugal. Não se pode dizer que isto seja o fim dos meus anxiogénos. É simplesmente um passo em frente. Na esperança que em frente não esteja um abismo.

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Embarque no avião da TAP. Uma hora e dez minutos de atraso, o que não é raro em qualquer companhia a esta hora.

Em contrapartida: cadeiras em dois mais dois e não três três, como é habitual (o avião é um Embraer e não um Airbus). Digam mal da TAP digam. Eu usufruo.

6.8.23

Diário de Bordos - Blanes, Catalunha, Espanha, 06-08-2023

Pouco a pouco a tensão transmuta-se em cansaço. Os próximos dias começam a tomar forma e já não são aquela espécie de plasticina mole, disforme, nevoeirenta, assombrante, fantasmagórica. Claro que nada é ainda seguro a cem por cento - convém nunca perder de vista aquela tão velha quanto elegante máxima «só conta quando está lá dentro» (futebolística, se por acaso) - mas já é pelo menos possível começar a prever os próximos passos. 

Hold fast! Do not yeld! Não cedas! O marinheiro é sempre o elo mais fraco da corrente, sabes e estás habituado a isso. Riza pano e põe-te à capa. Em breve o vento mudará e largarás rizos, capa e roupa de mar. Um dia terás a força quatro pela alheta com que há tantos anos sonhas. A prancha ainda não está pronta para ti.

(Da série Monólogos insuportáveis.)

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Encontrei alguns catalães simpáticos. O que me saiu na rifa deve ser a ovelha negra da tribo. Negra carbono, negra buraco negro, negra filho-de-uma-puta-e-de-um-comboio-de-putas. Pela primeira vez na vida considero seriamente a hipótese de levar alguém a tribunal. Não é uma questão de vingança, mas sim porque tudo tem um preço. Até a maldade, a estupidez ou a mistura das duas. Há que partilhar esse preço. Não posso ser só eu a arcar com ele. 

(Da série Dream on.)

Azar, sorte

Dizem que a sorte exige muito trabalho. Soubessem eles o trabalho que é preciso para ter azar.

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Quando nasci caí por engano no caldeirão do azar. Os meus Pais tiraram-me dali e puseram-me no da sorte. É isso que explica esta alternância de azares e sortes na qual vivo. Sobretudo a vastidão de cada um deles.

(Não vou cair na armadilha de dizer que o do azar era maior. Não era. Era só mais caro.)

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É o momento de reler isto, lembrando sempre que o final não está muito certo. Devia ser: «And - which is more - you'll be a SuperMan, my son!»

«If you can keep your head when all about you   
    Are losing theirs and blaming it on you,   
If you can trust yourself when all men doubt you,
    But make allowance for their doubting too;   
If you can wait and not be tired by waiting,
    Or being lied about, don’t deal in lies,
Or being hated, don’t give way to hating,
    And yet don’t look too good, nor talk too wise:

If you can dream—and not make dreams your master;   
    If you can think—and not make thoughts your aim;   
If you can meet with Triumph and Disaster
    And treat those two impostors just the same;   
If you can bear to hear the truth you’ve spoken
    Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
    And stoop and build ’em up with worn-out tools:

If you can make one heap of all your winnings
    And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
    And never breathe a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
    To serve your turn long after they are gone,   
And so hold on when there is nothing in you
    Except the Will which says to them: ‘Hold on!’

If you can talk with crowds and keep your virtue,   
    Or walk with Kings—nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you,
    If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
    With sixty seconds’ worth of distance run,   
Yours is the Earth and everything that’s in it,   

    And—which is more—you’ll be a Man, my son! »

5.8.23

Diário de Bordos - Blanes, Catalunha, Espanha, 05-08-2023

A resiliência é perniciosa. Ceder à mediocridade, refugiar-se no álcool ou na loucura, na morte - refúgio supremo mas reticente, não se dá facilmente - é, isso sim, prova de sageza. A banalidade é um porto de abrigo. Deixar a adversidade ganhar, baixar os braços, reconhecer a derrota com uma vénia, chapéu baixo: eis os princípios de uma longa e feliz vida.

A mente explode-me - isto, explode ela e explode-me a mim, que a acompanho em tudo o que faz. Bebo rum, oiço um argentino tocar um orgão portátil, volto a beber rum, o homem toca Hallelujah («é a única canção que conheço dele» - há sempre uma desilusão ao virar da esquina).

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Resumo: o carro da T. avariou e tem de ser repatriado. Onde eu antes tinha um barco para levar para Lisboa agora tenho um barco e um reboque. O carro parou às dez e meia da noite e chegámos ao hotel às duas e meia da manhã, comigo metamorfoseado em zombie, esgotado pelas muitas horas de condução, pelas poucas horas de sono em Viana e pela energia esfuziante e omni-direccional da T. - que, forçoso é reconhecer, obteve resultados, por muito grande que a sua desproporção com a energia neles investida me pareça.

Critérios e respectivos preços

Poder um homem embebedar-se gentilmente e sem ter de pagar uma fortuna por isso é um dos critérios para escolher um país aonde viver.

2.8.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-08-2023

Não sei bem por onde começar, portanto mais vale começar pelo princípio. Foi há umas semanas. Durante a conversa para o relatório, o J. W. perguntou-e se havia alguns pontos moles no convés. Disse-lhe que não. O «meu» P. sendo o P., no dia seguinte descobri uma pequena deslaminação no convés. Decidi não tratar do assunto: para começar não havia ningém disponível (sabia-o devido às pesquisas para o traveller), em segundo lugar porque era pequena e em terceiro já tinha suficientes bolas no ar; de nada serviria juntar mais uma. Agora com o lazybag e o rigger em andamento e Agosto à porta voltei ao tema. Por muito que se pense que uma deslaminação de quinze centímetros de diâmetro não é muito, que o espantoso é não haver mais num barco com quarenta anos e que não é coisa realmente difícil de se tratar a verdade é que é uma surpresa completamente dispensável. Para dizer o menos, porque o que me vai na vontade de dizer é muito pior. «Não se pode deixar para depois?», perguntar-me-ão. Não, não pode. Hoje tem quinze centímetros, amanhã terá vinte e depois de amanhã custará dez vezes mais. Se alguém imaginar a vontade que tenho de ver este bote a navegar, refit terminado, relatório para o seguro feito, inspecção para o registo e tutti quanti ganha um prémio nobel da capacidade imaginativa.

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Amanhã vou de novo a Lisboa buscar o reboque para trazer o BP. Vou cair em cheio nas jornadas dos francisquinhos, mas como vou andar por vias periféricas creio que conseguirei evitar o pior. Isto se do pior excluirmos os preços dos bilhetes e - aposto - dos táxis. «If it weren't for bad luck / I would have no luck at all», lembras-te?

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Trabalho na página web do bote. Prefiro dez deslaminações a uma sessão de trabalho para escolher fotografias e textos e ordem dos menus e o raio que o parta. E prefiro um dia de navegação a cinquenta de cada um dos outros. Infelizmente, sem eles não posso ter dias de mar.

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Não resisti e fui à Copa (del Rey, para quem está fora destas coisas). O clube está a abarrotar, os barcos todos alinhados e todos lindos, o ambiente impecável. Até agora a Copa para mim tem sido a Cantina cheia de gente à noite - quando digo cheia de gente, quero dizer isso mesmo. Ontem não cabia uma mosca até quarenta metros para fora da porta. Hoje fui ao cerne do acontecimento. Como tudo isto me parece distante e como tudo isto me parece tão parte de mim. Vivi alguns dos momentos mais exaltantes da minha vida quando organizava regatas. A adrenalina é um excelente fixador de memórias não é?

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Não se trata propriamente de detestar comentar a actualidade. Trata-se de detestar a actualidade, o que é muito diferente.

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Cada vez que como um figo - ou uma breba, por maioria de razão - a minha relação com a botânica, já de si péssima, piora. Imaginar que aquilo não é uma fruta e sim um conjunto de frutas desafia a minha credibilidade. 

PS - prefiro as brebas (ou brevas?) porque são menos doces do que os figos. Mais uma coisa que devo a Palma: aprender o que são brevas.

Sai dia, entra sono

Curiosamente, o melhor momento do dia é quando se está deitado e ele se esvai devagar, através de cada poro, deixando uma pequena marca para o sono saber por onde entrar.