16.11.25
Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 15-11-2025
14.11.25
Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 14-11-2025 / II
Exala destas ruas, destes passeios, destas árvores uma estranha calma, apesar do tráfico. Não sei se é sugestão se é mesmo real, mas mal um gajo põe um pé fora da marina transforma-se. (A marina, essa, é igual a todas as marinas do mundo.) Será da simpatia das pessoas, que disparam sorrisos mais depressa do que o Lucky Luke sacava do seu revólver? Será da temperatura, deste calor temperado pelos benditos alísios? Não sei. Sei que percebo do coração quem quer que seja que tenha vontade de viver aqui (sem ganhar daqui, claro).
(Da qual gosto muito, pelo menos da parte que me tocou, de passagem seja dito.)
Diário de Bordos - Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde, 14-11-2025
O meu Pai tinha razão: "Luís, nunca vás a Cabo Verde. Se lá fores, nunca mais de lá sais." Poderia passar o resto dos meus dias aqui, na Columbinha, a ouvir música, ver dançar e beber cerveja. Ocasionalmente danço, mas é pouco. Eu só sei dançar sozinho. Mas sei apreciar o resto e isso chega-me. Nasci para viver nos trópicos, por mais que deseje o frio. Nasci para viver no mar. Nasci para ver esta gente dançar e lamentar não ser capaz de fazer o mesmo, tão fácil. Sou feito de emoções, fragilidades, lágrimas e noites como estas: mistura de misturas.
Nasci para ser o que sou: marinheiro em terra, marinheiro no mar, marinheiro em Cabo Verde e em breve na Martinique. Marinheiro na Lua, marinheiro neste mundo no qual me fundo como se fosse feito de aço. Não sou.
Quando muito, aço mole.
13.11.25
Classificação
As três melhores partes de vida no mar são, por ordem:
1 - Chegar a um porto;
2 - Estar no mar;
3 - Largar de um porto.
(A ordem é a cronológica inversa, claro.)
Diário de Bordos - No mar, perto de Cabo Verde, 13-11-2025
Claro que tenho a latitude - dezassete graus não deixam margem de manobra à dúvida. Mas uma coisa é a teoria, a "frieza dos números" e outra fazer o quarto das quatro da manhã em pólo e calções, pelo menos na primeira metade. Depois, é precido acrescentar umas mangas compridas e sonhar com as noites que aí vêm.
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Daqui a menos de meia dúzia de horas chegamos ao Mindelo. Há uns anos passei lá um fim do ano. Gostei da cidade e das pessoas, a escala foi agradável apesar de as circunstâncias não terem sido as melhores.
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Vejo o clarão do Mindelo. O farol Fontes Pereira de Melo em Santo Antão começa a dar sinais de vida. Hoje vou almoçar a terra e beber cerveja e vinho e aguardente e essas coisas todas que no mar não posso. E ainda há quem diga que o mar é monótono. Não é. Nem o mar nem a terra.
11.11.25
Diário de Bordos - no mar, entre Lanzarote e o Mindelo, 11-11-2025
A Lua sai da água, deitada mas jà lavadinha, toda limpa. Se não tem cuidado ainda choca com Júpiter, que está ali a guardar os Gémeos. O céu está limpo, ao contrário de mim, cheio de dores musculares a baterem-me à porta. Amanhã - hoje, já passam três minutos da meia-noite - vai ser lindo. E ainda há quem seja a favor do exercício físico. Estas dores estão para o abuso dos músculos como a ressaca para o do álcool. O dia faz um arco, como a minha querida Oríon: começa com um spi na água e acaba com o corpo a reclamar. Oríon também reclama: sabe que devia estar na minha proa para eu a poder ver sem ter de me virar todo e provocar um motim muscular generalizado.
A luz da Lua, apesar de ainda estar fraquinha, já apagou as estrelas menos resistentes (à dor? Não. À luz) e Sirius brilha isolada e imponente. Júpiter também resiste. Castor e Pollux empalideceram muito mas continuam a zelar por nós, marinheiros. O cancelas lá vai andando a vento Yanmar que o outro está a desvanecer-se, coitado. E eu não tarda muito estarei de quarto em baixo, deitado, a pensar em Calasso e nas Núpcias de Cadmo e Harmonia, a coisa mais bonita que li sobre a mitologia.
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A propósito do uso de termos náuticos, objecto de debate interno desde que este blogue existe (ou seja, há quase vinte e dois anos): como todos os acidentes tem várias causas. Por um lado, o DV é uma conversa diacrónica de mim comigo e eu falo assim. Por outro, se há uma coisa que me entristece em Portugal - há inúmeras - é o desaparecimento do vocabulário náutico do nosso léxico. Em Inglaterra e em França as pessoas, mesmo não navegantes, têm uma noção de alguns termos náuticos. No nosso país isso desapareceu. Acresce que há sempre o simpático Google, agora com a muleta da inteligência caseira. Em última análise, quem quiser pode perguntar-me. Estar de quarto em baixo, por exemplo, significa não estar de quarto. Quando se está, diz-se que se está de quarto em cima, naturalmente. Gosto particularmente do uso da afirmativa em vez da negativa. "Estar de quarto em baixo" é mais bonito do que "Não estar de quarto", não é? É.
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O vento cai, a grande reclama - diz que lhe dói estar ali em cima, pendurada no mastro, a não fazer nada - e tudo indica que daqui a pouco vou ter de a arrear. Não é para já. Por enquanto ainda ajuda.
10.11.25
Diário de Bordos - No mar, entre as Canárias e Cabo Verde, 10-11-2025
A tourada acabou às seis da manhã e são oito e meia. Já posso escrever qualquer coisa, espero. Às quatro e um quarto o J. vem chamar-me: "o spi caiu". Estava a dormir no salão porque... enfim, porque e em menos de um minuto estava no convés. É preciso começar por dizer que o spi é um parasailor, daqueles que têm umas aletas que se abrem quando vem uma rajada. O tecido é duas vezes mais pesado do que o dos spis normais. Acresce que tem uma campânula para o abafar antes de ser arreado - os ingleses chamam sock a este método, que tem méritos em caso de tripulações reduzidas ou inexperientes, casos da minha. O spi é enorme. Não deve andar longe dos cem metros quadrados.
Era isto que estava agora na água, parcialmente debaixo dos cascos. Precisámos de quase duas horas, o marinheiro e eu, para o pôr a bordo. Uma hora quarenta e cinco minutos, para ser exacto, de trabalho insano. A próxima vez que me lembrar da minha falta de força física lembrar-me-ei deste episódio e terei vergonha, como agora tenho, de todas as vezes que pedi ajuda "por não ter força". Ainda tenho.
O que já não tenho são os reflexos que dantes tinha. Aquilo podia ter sido feito mais depressa se eu tivesse feito logo o que deve ser feito: largado os cabos todos menos um e deixar o pano flutuar. Sinal de velhice ou de falta de treino? Prefiro esta àquela: um gajo que forneceu aquele esforço todo pode ser velho mas não deve pensar que isso o incapacita.
Ou seja: posso deixar de me ciliciar os neurónios? Obrigado.
9.11.25
PTSD, PTSD
Por vezes pergunto-me se a minha vida não passa de uma sequência de PTSD. Salto de um para outro com a elegância de um saltador à vara.
Diário de Bordos - No mar, entre Lanzarote e Mindelo, 09-11-2025
Números, adjectivos, vida.
Força quatro ou cinco pela alheta, amurado a bombordo, sete nós no fundo, frio por enquanto suportável (näo tenho termómetro, este vai de adjectivo), Lua em minguante quase a chegar ao quarto, visibilidade boa, nebulosidade cinco (em oito, para quem não sabe e quer saber) sobretudo cumulus ou já estratificados ou em vias disso, mar de pequena vaga, proa ligeramente a sul do rumo porque não posso ou näo quero arribar mais. Acabamos de fazer sete horas a motor porque não havia vento mas agora voltou, entrou norte como estava previsto. E entrei eu de quarto, igualmente previsto: esperam-me duas horas e meia disto (se o vento leu a previsão. Se näo leu, a noite muda e eu com ela). Não dormira praticamente nada desde a largada mas agora desforrei-me: quase sete horas de sono interrompidas apenas duas vezes para vir à ponte, ver como estava a primeira, apagar o motor e ajustar os trapos a segunda. Quando sair de quarto continuarei a desforra.
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O bote já de si é um tamanco e vai carregado, o que explica a pouca velocidade e a muita água que arrasto pela popa. Fui calçar um par de meias e vestir o casaco de mar. Há algumas dezenas de anos (poucas) tive aquilo a que em francês se chama veste de quart. É um casacão não necessariamente impermeável - a sua função é aquecer. Este que me vem à memória tinha uma folha de alumínio no meio das diferentes camadas de tecido. Dizer que era quente é dizer pouco. Foi a melhor coisinha que me passou pelo corpo e o aqueceu. Nunca mais encontrei nada parecido. Ainda durou uns bons anos. Penso nele cada vez que estou de quarto à noite e tenho frio.
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O quarto continua: fui lá abaixo fazer café, não encontrei e fiz cacau, que me deixou mal disposto. O vento rondou a nordeste e tive de cambar. Uma das poucas coisas de que gosto no Bali é o sistema de escotas da grande. Transforma qualquer cambadela qualquer que seja o vento numa cerimónia de chá das cinco para senhoras da alta sociedade. Continuo mal disposto. Ou o cacau é manhoso ou bebi-o demasiado depressa, a pensar que tinha de cambar e a perguntar-me se no Mindelo encontrarei uma loja de café decente. Nunca se sabe. Em Barbate há uma. E em Arrecife há uma livraria. Tal como no Pico, Deus meu, quem pensaria encontrar uma livraria decente no Pico? Ainda por cima é também editora e vai publicar o meu próximo livro, Não Sei. Avenida da Liberdade, n° 1, De Passagem, Não Sei. A sequência soa bem, não soa?
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A má disposição não passa. Raio do quarto começou tão bem e agora isto. Orço um bocadinho, caço o estai e penso que quem olha para as derrotas dos veleiros deve achar que não sabemos para onde vamos. Sabemos e não é para onde nos leva o vento. É para onde queremos ir.
8.11.25
Diário de Bordos - No mar, entre Lanzarote e Gran Canária rumo ao Mindelo, 08-11-2025
Arrecife, capital da ilha de Lanzarote, foi uma agradável surpresa. Ontem (enfim, anteontem, já passa da meia-noite) voltei lá. Tinha de deixar uma pessoa no aeroporto e recolher outra duas horas e meia mais tarde. Aproveitei para ir a um chandler - não tinha o que eu queria - comprei um livro om textos sobre Calasso e passei duas deliciosas horas sozinho a ler. Tenho de recuperar a capacidade que dantes tinha de me isolar, de estar sozinho com um livro e uma cerveja ou um copo de vinho. Ando sempre cheio de gente à volta - näo é por acaso que escrevo cada vez mais no telefone, à noite na cama.
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Conseguí finalmente largar da marina Rubicon. Foi preciso dar um murro na mesa, dois gritos ao telefone e bater com o pé mas lá me pagaram o que tinham a pagar.
Esta empresa quer melhorar a horrível reputação que tem, mais do que justificadamente mas ainda não descobriu que pagar a tempo e horas seria uma estratégia eficaz. Acresce que nem sequer é por desonestidade. É simples desorganização - que de simples não tem nada, a falta de ordem, planeamento (e conhecimento, já agora) são alucinantes. Não há qualquer espécie de comunicação, nem interior nem exterior.
Têm uma qualidade - a senhora que (des)organiza isto tudo é bastante gira. Outra: e simpática.
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Passo entre Lanzarote e Gran Canária. Estou com vontade de Las Palmas e pergunto-me se teria preferido a descoberta de Arrecife ou o reconhecimento da capital do arquipélago, cidade de que tanto gosto e aonde há tanto tempo não vou. A resposta é imediata: Las Palmas. Quanto mais não fosse porque ali a marina é na cidade e não como Rubicon, no meio de nada e ao lado de um buraco de turistas. Ou seja: seria preciso reformular a questão: se pudesse escolher, teria preferido ficar na marina de Arrecife ou na outra? Não sei. Teria de descobrir uma livraria em Las Palmas equivalente à El Puente. Vermuterias e restaurantes há a granel. Não seria preciso procurar muito.
De qualquer forma a questão é ociosa. Não podia escolher, não sei quando voltarei e menos ainda se serei eu a decidir a escala.
Será Las Palmas, claro.
6.11.25
Diário de bordos - Marina Rubicon, Playa Blanca, Lanzarote, Canárias
A livraria El Puente, em Arrecife, Lanzarote, Canárias é a versão local da livraria Snob em Lisboa: uma maravilhosa selecção de livros e um livreiro simpático, eficaz e conhecedor. Entra-se e em cinco minutos tem-se vontade de comprar os livros todos. Consegui limitar-me a três (o que me valeu ter recebido mais duas plaquetes, a escolher entre várias. Trouxe uma antologia de Nietzsche e outra de Cervantes). Encontrei finalmente a Cidade de Deus, de Santo Agostinho e descobri uma colectânea de cartas de Cioran. Resisti a uma série de textos em torno de Calasso, que é daquelas coisas que me enfurecem e enchem de orgulho simultaneamente.
(Sería injusto não incluir nesta comparação a livraria Palavra de Viajante, em Lisboa. Ao contrário do que se seria levado a pensar é uma livraria especializada em temas de viagem e também tem essa horrível qualidade de submeter quem lá entra a uma pressão enorme: como sair dali sem ter comprado tudo o que está exposto? Como não invejar a livreira, que deve ter lido pelo menos três quartos daqueles livros e sabe falar deles com propriedade? Como não agradecer a seja a quem for que manda nisto não ter acabado com livrarias maravilhosas, daquelas que tornam o acto de transferência de dinheiro do nosso bolso para o delas uma infinita fonte de prazer e esperança?)
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À frente da livraria há uma vermuteria chamada Strava (ou coisa que o valha) cujo vermute de grifo é bastante aceitável; ao lado fica o restaurante uruguaio Barbacana, que recomendo vigorosamente. Se eu tivesse de escolher um sítio para viver em Arrecife seria ali, naquela rua, naquele canto.
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Arrecife encantou-me tanto quanto Playa Blanca me repugnou. Não consigo perceber o que vêem naquilo os milhares de turistas que lhe pejam as ruas e de caminho enchem os ouvidos de quem calha passar-lhes perto com aquele horrível inglês do estuário, rasca, eles sem camisa, cobertos de tatuagens, acompanhados por mulheres gordas, feias e igualmente tatuadas (e felizmente com camisa). Às lojas de bugigangas seguem-se bares feios e a estes lojas de roupa feia. Depois, o ciclo recomeça: bugigangas, bares, roupa. Tudo isto alheio ao mais pequeno toque de beleza ou sensibilidade.
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Hoje vêm mergulhadores limpar-me o casco e amanhã largo para o Mindelo. Qualquer dia morro mas até lá ainda há muito que viver, muitas milhas por navegar e muitos livros para comprar e netos para ver crescer.
4.11.25
Diário de Bordos - No mar, ao largo de Lanzarote, 03 e 04-11-2025
03-11-2025
Estou quase a chegar; a Lua está quase cheia, o mar quase sem vagas, o vento quase a zeros, a noite quase sem frio. O CdC - uma mistura de camião TIR de quarenta toneladas (?) e uma residência de luxo - avança quase depressa. Para terminar esta série, eu estou quase ansioso por chegar, ver se ponho estas porcarias todas em ordem. Ou quase em ordem, vá lá. A única que não aceita quases é a parte da massa. É verdade que não é nenhuma fortuna mas o guito é meu e quero-o do meu lado. A perspectiva de ir para o Panamá parece-me cada vez mais longínqua - o que de resto calha bem porque a ideia que me levou a Caminha deu um ténue sinal de vida.
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Em números bastante redondos estou a cinquenta milhas do waypoint (cabo Ancones, se por acaso) e a setenta da marina Rubicon, aonde conto chegar por volta das oito ou nove da manhã. Três dias de motor e um de vela, mas este valeu por todos os outros: vinte nós pela popa quase arrasada, umas dezenas de milhas a mais porque não dava para ir em rumo directo, duas ou três refeições memoráveis - quem tem um bom deckhand tem tudo. Até os passageiros ficaram suportáveis (ele sempre foi, verdade seja dita).
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04-11-2025
Venho à ponte para a passagem do waypont e consequente mudança de rumo. É o género de coisas que gosto de ser eu a fazer. O deckhand é bom mas não está muito familiarizado com o Raymarine. Que estivesse...
Passamos à frente de Arrecife, a capital da ilha. É bom ver as luzes de terra mas uma boa aterragem já não tem o sabor que tinha dantes, quando se navegava com sextante e com estima. Então sim, chegar aonde queríamos era emocionante. Agora basta carregar em meia dúzia de botões e pronto, signore. Salvo avaria que nos devolva ao lugar de condutor (vade retro, Satanás) somos tanto passageiros como chauffeurs.
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O vento vem de terra e traz-lhe o cheiro. Cada uma tem o seu. Para mim, só há um: o do cabo da Roca quando se vem de norte e se guina para o Raso. Enfim, dois: o do Algarve. Os outros são ersatz de cheiro a terra. Com a possível excepção do da Córsega, anisado e limpo, à força de bombas nas construções que eles não querem. O método deixa a desejar mas resulta. Não é só o cheiro que delas beneficia. A vista também.
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O vento caiu completamente. Dois nós, diz-me o simpático Ray. E dizem-me os olhos e a pele e as orelhas, talvez menos precisos e menos confortáveis do que aquela mistura de cabos eléctricos e processadores mas suficientes para o efeito. Continuo a navegar à antiga: a electrónica serve para confirmar o que os sentidos e o corpo me dizem. Excepto obviamente o GPS. Quem mo tira tira-me tudo. Saber instantânea, precisa e permanentemente aonde estou, a que velocidade e rumo vou e a que distância estou do porto ou do waypoint não tem preço.