26.7.24

De empréstimo

Vim ao Gambrinus beber um homónimo (epónimo?) e pensar que quem veste Vilebrequin de empréstimo bem pode vir de empréstimo ao restaurante da rua das Portas de Santo Antão. Antigamente vinha aqui muitas vezes, mas sempre de empréstimo. Comia uns croquetes, uma vez uma fatia de uma coisa de perdiz que eles têm e é uma maravilha, bebia uns gambrinus, um café, às vezes um porto (como hoje, Casa das Carvalhas, maravilha). Nunca me sentei a uma mesa, que me lembre. Estava aqui de empréstimo, como hoje, como sempre, como partout. Como quando ponho calções de banho da marca Vilebrequin, de empréstimo.

Ando emprestado à vida. Espero que ela me devolva no mesmo estado em que me recebeu. 

25.7.24

Amizade, evolução

As amizades começam por ser uma celebração da similitude e evoluem para se tornarem sobretudo uma gestão das diferenças. 

[Adenda: pensei acrescentar "cuidadosa" a gestão, mas não o fiz. Por um lado seria um pleonasmo; por outro um oxímoro. A amizade não precisa de ser gerida.]

24.7.24

Diário de Bordos - Lisboa, 24-07-2024

Apesar de todos os esforços que faz em contrário, Lisboa continua a cidade encantadora que sempre foi. O calor não é culpa dela, claro; os buracos nas ruas tão pouco; nem o barulho, a sujidade, os mendigos, os prédios modernos e asquerosos, passe o pleonasmo. Nada disso consegue vergar esta cidade, nada nem ninguém conseguirão tornar banal esta cidade. Não tem nada a ver com a pastelaria aonde tomei o pequeno-almoço, com as livrarias Snob ou Palavra de Viajante por onde passei como quem vai a Fátima de joelhos (isto é um exagero só literariamente aceitável), com o quisoque S. Paulo aonde comi dois pastéis de bacalhau como não os há em mais parte nenhuma do mundo (nem de Lisboa, quanto mais), nem com o restaurante Tentações de Goa, um dos dois melhores goeses da cidade. Não tem nada a ver com nada de preciso - pastelarias, livrarias e restaurantes são como chapéus - mas sim com o que lhes fica de permeio. Ou dentro, não sei. Faço parte daquele grupo de gente que pensa que uma cidade é feita sobretudo de pessoas e não apenas de monumentos, arquitectura ou história e Lisboa tem o melhor conjunto dessas coisas todas que conheço. Queixam-se do turismo? Credo! Lembrem-se de como era a cidade antes dos turistas e calem-se.

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Ontem fui a Cascais. Morei na Linha entre os três e os oito anos e depois dos dezassete aos dezanove, mais coisa menos mês. Voltei em dois mil e dois... Na verdade nunca deixei verdadeiramente Cascais e continuo ainda hoje a perguntar-me se o meu amor por aquele mar e aquela vista é um amor objectivo (há amores objectivos?), se o meu patriotismo tem a ver com a memória mais do que com o certidão de nascimento, se as inquantificáveis horas de navegação naquele mar serviram para fazer de mim o que sou. A pergunta é retórica. Claro que sim. Sem Cascais eu seria outro.

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Regresso a Lisboa num Uber. O chauffeur chamava-se Imra e é bangladeshi. Está a aprender português. É a sexta língua que fala. A maioria dos idiotas do Chega (há excepçóes) mal consegue balbuciar uma, a que lhes saiu na rifa do nascimento.

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Há uns anos - meia dúzia deles, provavelmente - a M. T. mostrou-me os preços dos fatos de banho Vilebrequin. Fartei-me de rir, um riso incrédulo, só mitigado pela leitura de Baudrillard, que ajuda a percebê-los. Desde aí, quando penso na moda e ou leio posts de uma senhora que no Facebook escreve bastante sobre o tema lembro-me dos calções de banho Vilebrequin, para mim um epítoma da debilidade do edíficio todo. Modas, marcas, m'as-tu-vu repousam sobre pilares feitos de consenso social, que requer primeiro um reconhecimento (para não dizer conhecimento, que é mais o meu caso) e depois sobre uma valorização de factores aos quais não atribuo muita importância - por exemplo, ter dinheiro e necessidade de o dizer (não tenho e não tenho).

Ontem vesti uns Vilebrequin emprestados e recusei a proposta de ficar com eles. Algumas mentiras não são defensáveis. Não quero induzir ninguém em erro. [Escrevo isto e penso nos meus calções Napapijri. Concluo que não é a mesma coisa. Para começar só os compro nos saldos; depois a marca não é imediatamente visível; depois ainda, há razões objectivas para se comprar bermudas dessa marca. São objectiva e inegavelmente melhores do que os outros. Nos Vilebrequin não notei qualquer diferença que justificasse o preço astronómico que custam.]

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-07-2024

Estou em Palma e não estou em Palma. Estou em Cascais a ver netos, filha, ex-mulher (e presente amiga) e o resto da tribo: irmãos, amigos, sobrinhos e por aí fora. Vagabundeio sem direcção. Deixo a burra decidir -  normalmente escolhe melhor do que eu. Desta vez viemos à Rambla, a uma esplanada perto de onde era a saudosa Ca na Chinchilla. Nunca comi aqui, mas a conversa com o empregado dá-me vontade de experimentar. A cena passa-se quando ele vê que o meu tinto de verano acabou e me vem perguntar se quero mais alguma coisa. Hesito, pergunto-lhe qual o vermute que tem.
- Rivera, de grifo. - Diz-me isto como se estivesse a propor-me o supra-sumo dos vermutes, coisa que o Rivera está longe de ser. 
- Quanto é que custa?
- Não sei. Deixa-me ver. Creio que é cinco e cinquenta, mas não tenho a certeza. 
- Cinco e cinquenta? Um Rivera? Nem penses nisso. - De repente a dúvida invade-me. - Quanto custa o tinto de verano?
Aqui chegados ele já encontrou os preços: 
- Quatro e cinquenta o vermute e cinco o vinho.
Olho para ele e faço um comentário qualquer sobre o preço absurdo do tinto e rimo-nos os dois, descrentes deste absurdo. Uma bebida composta pelo pior vinho tinto da casa e gasosa cinco euros? Só a rir é que se acredita. Não há mais nada a fazer. Claro que peço o vermute. É feito na Galicia e tem um marketing agressivo. Está em todo o lado. Não é grande coisa.

Já a Rambla é. Adoro esta avenida, mais pequena e bonita do que a de Barcelona. O vento ainda não caiu, está fresco, o meu cansaço espairece e espalha-se por estas filas de plátanos fora enquanto vê a cidade passar por ele, por mim, por este domingo suave em Palma-a-calma.

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O dia começou mal: cheguei demasiado cedo ao aeroporto e o taxista que aqui me trouxe roubou-me dez euros.

(Era para ter continuado, mas não continuou. Paciência.)

21.7.24

Diálogos

- O futuro não existe. Só há hoje e a eternidade.

- E o passado, aonde o pões?

- No presente, claro. Não passa de uma acumulação de passados.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-07-2024

Vista de um ponto elevado, como por exemplo o quinto andar do El Corte Inglés da Jaume III, a catedral de Palma é ainda mais imponente e mais bonita. Agora que a conheço por dentro olho para ela com outros olhos.

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Hoje tomei outra decisão difícil: vou começar a trabalhar na continuação da publicação do DV. Que se lixem as vendas dos dois anteriores. Nunca passarão do que está. Em terra não sou viável. Só o sou no mar e mesmo disso não estou certo.

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(Cont.)

Coisas que se encontram quando procuramos coisas que não se encontram

 CINCO MICRO-CONTOS

Desejo

No dia em que me roubaram a bicicleta estava a chover e eu cheio de dores num joelho. Além disso estava de ressaca, porque na noite anterior tinha bebido uma quantidade razoável de Bailey's. Espero que saibam como se bebe Bailey's: com um bocadinho de whisky, muito pouco, duas gotas para cortar o excesso de doce e uma pedra de gelo, não mais.

Foi nesse dia que a Isabel me levou a casa pela última vez. Ainda me vejo a sair do carro dela: miserável, devastado, curvado, a coxear e a pensar que nunca, mas nunca mais andaria com uma miúda sem estar apaixonado por ela. Já que é para sofrer, ao menos que se sofra por uma razão que valha a pena. E o desejo não é uma razão suficiente.

Lua

Não sei se já viram a lua a nascer nos trópicos, quando está cheia: parece muito grande e é de um encarnado vivo, brilhante. Dá a impressão de se lhe poder tocar com as mãos - bastaria estendê-las. Escolhia sempre essas noites para engatar uma miúda. A partir do momento em que ela acedesse a ir para a praia comigo era fácil: a lua dá-lhes volta à cabeça, toda a gente sabe. Claro que me podem dizer que se elas foram para a praia ... - tretas. O que lhes dá a volta é estarem ali deitadas e ver um enorme círculo encarnado sair da água como - suponho, nunca vi nenhum - um submarino incandescente a emergir.

Foi isso que fiz com a Ângela: levei-a para a praia e fui-lhe contando histórias de coisas que não me tinham acontecido, mas podiam ter. Elas gostam de ouvir histórias, eu de as contar; não me parece que o facto de serem  inventadas de uma ponta à outra tenha muita importância. Enfim, se analisarmos o caso de um ponto de vista da eficácia não tem com certeza: elas iam e vinham como baldes numa nora (faço esta analogia porque por vezes me sentia um bocadinho burro: sair da discoteca, levar uma mulher - que na maior parte dos casos nunca tinha visto - para a praia, contar-lhe meia dúzia de histórias, comê-la e vir-me embora - se isto não é como um burro às voltas numa nora não sei o que é. Verdade seja dita que, por questões de ética pessoal, nunca repetia uma história).

Onde é que ia? Ah, na Ângela. Era uma miúda pequena, nervosa, seca, com umas mamas muito grandes (tudo era pequeno nela. Só as mamas eram grandes). Quando estava a iniciar a minha segunda ou terceira história (parece-me. Se calhar foram mais) ela disse-me "ainda vais contar muitas, antes de foder? Estou a marimbar-me nos crocodilos e nos hipopótamos que mataste não sei onde. Podes calar-te e foder-me, por favor?"

Política

Não sou muito de manifestações, greves, movimentos colectivos, "futuros radiosos" ou "novos homens". Não gosto de engenharia social, de activistas - sejam eles monárquicos, de esquerda, de direita, a favor ou contra os animais, contra as marés ou por uma lua cheia aos fins-de-semana. Por isso, quando conheci a Anabela e me apaixonei por ela - foi quase simultâneo - sabia que estava a fazer uma asneira.

Anabela era sindicalista, dirigente de um partido de extrema-esquerda e professora de sociologia numa faculdade pública, boa. Conhecia-a porque veio ter aulas de ténis comigo. Ao fim da terceira lição eu estava completamente colhido por ela. Já o inverso demorou um bocadinho mais - e exigiu, sobretudo, que me calasse com as minhas piadas anti-esquerda, anti-maricas, racistas e machistas. É verdade; espero que não me confrontem muitas vezes com esta admissão: calei-me - ou melhor, mudei - por causa dela.

Era muito grande, mais alta que eu; loira, com um corpo ginasticado, tenso, elástico. Foi muito difícil convencê-la a ficar comigo mais do que a primeira ou segunda vez de cama. Todas as nossas conversas iam invariavelmente parar à política - até que eu tomei a decisão de não tocar no assunto, nunca mais. Anabela tinha um certo ascendente sobre mim, reconheço-o sem dificuldade de maior. Era eu que a amava; ela deixava-se amar.

Uma noite estávamos na cama e fui-me abaixo. Fiz-lhe uma observação - é verdade que totalmente gratuita, inútil, não provocada. Mas inócua; qualquer coisa do género "este palerma do [segue-se o nome de um sindicalista qualquer] só diz asneiras". "Imbecil", retorquiu.

Eu tinha um ano de pressão para sair. Comecei a bater-lhe - murros e pontapés, só. Mas foram muitos, é verdade. Só parei quando ela estava morta - os polícias que me invadiram a casa é que me fizeram parar, porque eu continuava a bater-lhe. Não sabia que se pode matar alguém com murros e pontapés, mas parece que sim.

 

Elevador da Glória

Não cabe na cabeça de ninguém cair de bicicleta num dia de chuva. Foi porém o que me aconteceu hoje de manhã. Estava atrasado e resolvi descer a Calçada da Glória. Por azar, apanhei o elevador a subir e quis desviar-me dele. Não consegui e caí. Magoei-me bastante, mas o pior foi o vexame: o elevador estava cheio, e aquela gente toda a olhar - saíram todos e precipitaram-se para mim; feriu-me mais do que a queda, claro.

Madalena começou por afastar toda a gente: "eu sou médica. É melhor afastarem-se. Eu trato dele. Senhor condutor, é melhor continuar a sua viagem". O wattman aceitou, visivelmente aliviado. Quando estávamos sozinhos disse-me "continuas o mesmo idiota, não é? Como é que te lembras de descer isto de bicicleta? Deixa-me adivinhar - estavas atrasado".

Madalena viveu comigo dez anos. Sei que não vale a pena contrariá-la, sobretudo quando tem razão. E não, não é médica: é dona de uma agência de publicidade. "Consegues levantar-te?"

Levantei-me a coxear, cheio de sangue e de óleo dos carris. Não estava atrasado: sabia que ela apanhara aquele elevador - paguei a um miúdo, filho de um amigo meu, para me dar um toque no portátil quando a visse entrar no elevador. A queda foi propositada. Não funcionou: quando lhe pedi o número de telefone ela respondeu-me "nem penses nisso". O pior, como disse, foi o vexame.

 

Lombo de porco

Vamos voltar atrás e recomeçar onde ficámos, queres? Eu chego a casa, ponho o chapéu no sítio do costume, tiro o sobretudo; tiro os sapatos. Vou à cozinha dar-te um beijo; pergunto-te se queres ajuda e tu dizes "não, obrigada, está tudo pronto. É só pôr no forno". Volto para a sala e vou ao bar preparar um whisky. Pouco depois tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:

- O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora. Fi-lo com mostarda e salsa, como tu gostas. E agora vou-me embora.

Começo por não perceber.

- Vais-te embora?

- Vou.

- Não percebo. Vais-te embora como, porquê, para onde, como? Quando é que voltas?

- Não volto. Vou-me embora. Vou deixar-te. Como sabes não gosto de lutar contra o que é, quando me parece que é e não pode ser de outra forma.

- Está bem. Adeus - e continuei a beber o meu whisky.

 

Foste-te embora e nunca mais te vi. É aqui, se não te importas, que gostaria de rebobinar e começar de novo. Assim, por exemplo:

Tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:

- O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora. Fi-lo com mostarda e salsa, como tu gostas. Fazes-me um gin tónico? - Levanto-me e faço-o, como tu gostas (é - ou melhor, era - um ping pong permanente, este "como tu gostas"), com bitter Angostura. Tu sentas-te no braço do sofá e dás-me um beijo.

Ou:
Tu vens para a sala, ainda a limpar as mãos ao avental. Dizes-me:

-O lombo de porco está no forno. Está pronto daqui a três quartos de hora. Vamos para a cama? - Respondo "sim" e vamos para a cama.

Tudo, menos:

- Está bem. Adeus.

20.7.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-07-2024

E provável que todas as cidades tenham uma rue Daguerre, uma rua que concentra tudo aquilo de que nelas (cidades) gostamos. Em Paris, para mim, é essa tal rua Daguerre. Tem uma queijaria que o Le Point classificou há anos - tantos que ainda os jornalistas não se vendiam por meia dúzia de amendoins - de "a segunda melhor de Paris"; tem um café/ cave à vins aonde se come, se bebe e se lê mais do que decentemente; tem uma livraria, que dantes se chamava Arbre à Lettres, para mim (repito-me, eu sei) um dos melhores nomes de livraria que conheço; dantes, ainda dantes, tinha a (para mim, ditto) melhor tasca da cidade, chamada apropriadamente Au Vin des Rues. Fechou, desgraçadamente. 

Em Palma, a minha rue Daguerre chama-se carrer Arabi. É mais pequena do que a rue Daguerre - não é bem sequer uma rua, é mais uma praça - e só tem três lojas. Para grande desgraça minha, são as melhores lojas de Palma, na respectiva categoria. Começo por cima (a rua é inclinada): En mi maleta, uma loja de presentes. Pertence a uma senhora chamada Paloma. Não é uma loja de fancaria, de recuerdos à la bimba. Tem objectos lindos e hoje lá deixei outra vez uma pipa de massa porque quero levar presentes à família; a seguir vem a Biblioteca de Babel, que o FT classifica de "uma das vinte melhores livrarias do mundo" e eu concordo. Cada vez que lá vou sinto-me na Citylights, versão reduzida. A Biblioteca de Babel é uma daquelas livrarias em que um gajo entra e cinco minutos depois está a pensar "quero comprar todos os livros, por favor".

Este "por favor" é dirigido ao dono, um senhor que para além de perceber de literatura percebe muito de literatura e tem um pequeno e simples bar aonde se pode dar aos livros os preliminares que normalmente reservamos às senhoras. Livros e vinhos excelentes. Que mais se pode pedir? Um bom vermute, José Luis, por favor. 

Ao lado fica o Antiquari, que hoje graças a Deus estava fechado.

São os cinquenta metros de rua mais caros de Palma. (Para mim, claro. Em cinquenta metros do Passeig des Born é possível gastar dez vezes o que hoje deixei na carrer Arabi. A diferença sendo que no Born seria deitar dinheiro à rua.)

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Segunda-feira vou a Lisboa ver a família e amigos, fazer uma ecografia e tentar ser visto por um médico do SNS. Aviso aos cépticos: eu acredito. (Refiro-me claro ao último objectivo. Os outros são do sector privado.)

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Bicha de vinte metros no Rivarena da Plaza de la Lontja. Penso: estes gelados são uma merda. Espero que os mentecaptos nunca descubram o Claudio.

18.7.24

Diário de Bordos - Portocolom, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-07-2024

A noite foi fácil e os sonhos alegres. É espantoso a influência que tomar uma decisão difícil e penosa tem na qualidade do sono. Antigamente, durante os temporais alijava-se carga, prática essa que consistia em deitar carga ao mar para garantir a sobrevivência do navio. Hoje isso já não se faz: uns senhores resolveram criar normas e regulações para nos protejer, como se não tivéssemos o direito de morrer como e quando queremos. Espero que esses senhores - ou alguém por eles - não se lembrem de regulamentar as más decisões, quando se tomam e quando nos livramos delas, por mais pele que se deixe no processo.

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Se por acaso algum dos meus leitores vier a Portocolom, uma má notícia: o restaurante do clube náutico fechou. História de rendas (e de estupidez, claro. O local está fechado). E uma boa: o restaurante Volare é excelente, tem um serviço impecável e não é mais caro do que os outros.

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Jantar com o S. R. ontem. O homem é enorme, deve andar pelos cento e vinte ou cento e trinta quilos, é veterinário (isto é, a mulher é veterinária e os dois são donos de um clínica que trata exclusivamente cães e gatos) e caçador, leitor e dono de uma enorme biblioteca (ele diz e eu acredito), maiorquino de boas famílias, estudioso de náutica e da sua história. [Adenda: também é um bocadinho chato, às vezes.]

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Os miúdos deste grupo são de uma boa educação notável. Pergunto-me até quando a América Latina resistirá.

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Soberbo jantar no Noray, Ses Covetes (praia de Es Trenc). Encontrei finalmente um arroz negro à altura do do Es Raor.

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O mar parece o lago de Genebra (ou Léman, consoante o lado da fronteira de onde se o considera), o EVE mal se mexe e como há muito espaço ferrei-lhe com quase trinta metros de corrente para menos de quatro metros de fundo, que ainda por cima é de areia da boa. Será preciso um tsunami para me tirar daqui.

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As minhas aventuras com (uma funcionária d)o SNS continuam. A formulação está um bocado bacoca - a senhora não representa o SNS. Representa-se a si própria e à parte da humanidade para quem ter poder é dizer não. O centro de saúde de Cascais tem pessoas adoráveis a trabalhar. Calhar-me esta senhora na rifa é azar, só azar. A ver se na semana que vem tenho mais sorte. 

(A menos que o problema sejam médicos de férias, no que não acredito. Essas devem estar marcadas há tempo suficiente para... para... Enfim, para.)

[Adenda: não sei aonde foram buscar essa ideia de que a saúde é um direito. É, sem dúvida, mas para quem tem dinheiro para a pagar. Quem está sujeito ao SNS tem o direito de esperar e é um pau por uma pedra.]

16.7.24

Diário de Bordos - Portocolom, Mallorca, Baleares, 16-07-2024

A isto chama-se falhar redondamente. Tanto que vem-me à memória aquela canção do redondo vocábulo, do primeiro dia e por aí adiante. O objectivo era ir ao restaurante do Clube Náutico de Portocolom, o meu favorito (é um dos poucos que conheço, acrescento não vá alguém tomar-me por guia). Fechado. (Há dois anos, diz-me o S. R., que é maiorquino.) A cidade, vila, aldeia, seja lá o que for está cheia a abarrotar. É a sua festa, informa-me um segurança destacado para controlar os contentores de lixo (não é piada. Aqueles contentores - cheios e com o lixo já por fora - são unicamente para uso dos iates e ele está ali com uma lista de nomes dos barcos. O EVE não consta dessa lista mas o homem deixa-me, após uma breve conversa, depositar os sacos.) As ruas estão insuportáveis,  cheias, intransitáveis. Encontro uma tasca que em dias normais deve ser óptima. Abrevio muito: hoje não é. O senhor que me serve tem cara de dono e está simplesmente esgotado e mal criado.

Pensar que ia para o restaurante do clube escrever faz-me rir. A tasca esvaziou-se de repente, só fica a música, abominável. Os gritos foram-se. Consigo pelo menos pegar no telefone e esboçar - isto não passa de um rascunho - o fim falhado de um dia porreiro. Enfim, mais ou menos porreiro. Um dia do qual um gajo não pode queixar-se senão de ninharias ou dele próprio é um dia chato.

R., o puto mais puto da família, adiantado mental - tem onze anos, mais coisa menos semana e parece ter dezoito - pergunta-me de que gosto mais no meu trabalho vírgula no mar, acrescenta.

"Primeiro: da liberdade", respondo. "Apesar de isto" - aponto para o barco e para o mar - "parecer uma prisão. Segundo: da complexidade. O que faço parece simples e fácil e não é."

O puto fica convencido e eu também. Consegui resumir uma vida em duas frases.

Há dias em que me sinto o Cônsul do livro do Lowry mas agora não consigo explicar porquê. Nem uma burra tenho lá fora, quanto mais um cavalo morto. Não há veículo que nos livre de nós, Geoffrey.

Apercebo-me - só agora - de que Geoffrey é a combinação de Terra e Livre. Não reli o livro vezes suficientes.

A tasca está quase vazia. Ele há milagres, Geoffrey. Bastar-nos-ia não acreditar neles. Nas nós somos incuráveis, não é? Vá lá, estou em Maiorca e não no México. Não arrisco a vida, com ou sem burra.

Apesar de vazia, volta e meia irrompem gritos na tasca. Desta vez provocados por duas mulheres que, diga-se de passagem, os justificam. Foram recebidas por um dos empregados com um justificado entusiasmo. Felizmente compraram cigarros e foram-se embora.

E assim quase acaba um dia que acaba quase falhado. Quase é uma palavra que engana muito. Agora vou ter com o resto da malta e depois vou para bordo, quase dormir.

É quando me queixo

«É quando te queixas que és melhor», diz-me S. F. (mais ou menos, cito de memória). Que desafio! Só posso queixar-me ou de ninharias ou de coisas de que não serve de nada queixar-me, como eu, por exemplo. Queixar-me de mim é, de todos os exercícios que pratico, simultaneamente um dos mais antigos e o mais inútil: não mudei significativamente nos últimos cinquenta anos e é pouco provável que tenha mais cinquenta para experimentar-me noutro formato. Por significativamente quero dizer estruturalmente. Há pormenores que mudaram, claro. Algum uso haveria de ter a quantidade de erros, asneiras, disparates que fiz e por vezes ainda faço, verdade seja dita.

Melhorei, sem dúvida. Mas não mudei. Como uma pedra que rola: fica mais redondinha mas mantém a forma.

ADENDA: S. F. esclarece-me qyue não é quando me queixo. É quando estou «em dor». Fica queixo-me, desporto preferido da minha gente. 

14.7.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-07-2024

Sempre desconfiei de homens que vestem cor-de-rosa, mas ontem vi o superlativo: um tipo dos seus sessenta e muitos setenta e poucos de calções cor-de-rosa e faixa do chapéu da mesma cor.

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Ontem falhei desastrosamente a manobra de atracagem. (Enfim, desastrosamente é um exagero. Não houve estragos, excepto no meu ego.) Foi a primeira vez em anos. Penso que de vez em quando nós, marinheiros, temos um anjo da guarda com um martelo na mão e quando começa tudo a correr demasiado bem ele dá-nos uma martelada na cabeça, para não nos enganarmos nem esquecermos.

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Mais uma semana de charter, mais uma semana de desespero. O ano de dois mil e vinte e três ainda não acabou, por mais que eu lhe implore que se ponha a andar de uma vez por todas.

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Hoje ainda há um jogo dessa merda desse campeonato, diz-me a A. I. Tê-lo-ia deduzido: as ruas começam a encher-se de gente com bandeiras de Espanha aos ombros. Acho insuportável, lamentável e desgostante esta manifestação de gregarismo, que não é senão um termo chic para carneirismo. Percebo a necessidade de pertença, mas não que ela se manifeste através de um jogo de futebol. 

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(Cont.)

13.7.24

Da escrita das gazelas

A escrita de Maria Belmonte é elegante, ágil e leve. Se as gazelas soubessem escrever, escreveriam como ela.

Felizmente não sabem e ela não tem concorrência. 

12.7.24

Dispersos diversos

Sonhos de infância

Na lista de coisas a proibir urgente e absolutamente deve incluir-se os trabalhos dos quais é impossível não gostar, correctamente pagos e que provam que os sonhos mais verdadeiros e mais válidos são os da infância. 

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Magia, beleza e dinheiro.

Três gatos pingados na cala Ses Ortigues: dois monocascos pequenitos e eu, num cata idem. Garrei um bocado (cerca de vinte e cinco metros, diz-me o GPS) e fiquei mais perto de um deles do que queria. Não é suficiente para estragar a magia do lugar, a qual faz parte do meu salário, juntamente com a beleza e a massa.

Nem os pilotos de avião podem dizer o mesmo.

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Num grupo de oito pessoas: um come tomate mas não cebola, outro cebola mas não tomate, todos comem abacate menos uma. Há o inevitável alérgico ao glúten. H., o pai – que acaba de me dar uma seca do tamanho do Sahara – atarefa-se na cozinha e impressiona-me – positivamente, desta vez. Começou a cozinhar cm o filho, o puto mais novo, mas este arredou-se depressa. Pergunto a H.:

- O teu assistente abandonou-te?
- Não é meu assistente, é o meu chefe.
- Esse é um dos dramas da modernidade.

 Cala Ses Ortigues, 10-07-2024

Diário de Bordos - Magaluf, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-07-2024

Os clientes queriam jantar em terra porque é o último dia do grupo: amanhã uma das famílias vai-se embora, um dia antes do fim do charter, que é sábado. Raio que os parta. O único sítio possível é Magaluf. Exacta e diametralmente o oposto do que gostam. Que se lixem. Pelo menos assim têm uma visão circular de Mallorca. Acordar em Sas Hortigas e adormecer em Magaluf é como começar uma viagem num carro de luxo e acabá-la num tuktuk a pedais.

Nunca conseguirei perceber as pessoas que vêm passar férias a sítios como este. Ao meu lado está uma família portuguesa: pai, mãe e dois putos pré-adolescentes. Que raio de carga de água vão eles levar deste jantar? O restaurante chama-se Ibizza, comi um arroz negro que estava simultaneamente negro e uma merda, vou pagar um balúrdio, a música (que não é tão má quanto seria de temer) está alta de mais. Talvez levem boas recordações: são frugais e usam três telefones entre os quatro - a mãe e o mais novo partilham um. A mulher é bonita e parece-me bem vestida. Isto é: não tem um decote espampanante, o vestido é comprido e não muito feio (pelo menos a parte que vejo), os cabelos são pretos ou castanho escuro e não tem adereços em demasia. 

Só venho a Magaluf se for pago para isso. Pagar para vir aqui parece-me o epítoma da bimbolice. Mas isto sou eu, pedante e solitário, marinheiro e desencantado.

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Pedi um gelado. Só têm baunilha. Paciência. Depois bebo um rum noutro lugar qualquer, aonde a música será de certeza pior mas pelo menos terei a impressão de não gastar tanto. Parcelar, meu caro, é a melhor maneira de passear o enfado.

[Acabei por beber o rum ali e o jantar afinal não foi tão caro quanto temia.]

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Eles foram jantar ao Pargos e dizem que gostaram. A ver se dá próxima vez me lembro.

(Espero que não seja tão cedo.)

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Cruzei outros dois grupos de portugueses, mais condizentes com o local.