12.12.24

Diário de Bordos - Lisboa, Portugal,

Noite de poesia "amadora".  Ponho aspas em amadora, mas deviam estar em poesia. Foi uma tortura. Não consigo compreender o que leva as pessoas a não ser capazes de avaliarem a esmagadora falta de qualidade daquilo que escrevem "brut de coffrage" [se alguém souber como se diz isto em português ficar-lhe-ia grato se mo dissesse], sem qualquer espécie de mediação. 

Digo que não compreendo, mas na verdade é inveja pura. Quem me dera ser capaz de não me morder os dedos a cada sílaba e deitar lá para fora tudo o que me passa pela cabeça (estejam os meus leitores descansados, amanhã não será a véspera desse fatídico dia).

Inicialmente a minha surdez selectiva funcionou às mil maravilhas mas pouco a pouco a indigência levou a melhor e deixei de conseguir evitar a derrocada. Ouvia tudo.

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Uma bióloga e um antropólogo unem-se para fazer vinho (e uma família). O vinho é inquestionavelmente bom. O resto parece-me irrelevante. Podiam ser os dois biólogos, antropólogos ou especialistas em doenças dos peixes-espada.

Podiam? Não sei.

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Passei pela luvaria Ulisses. Felizmente não comprei o par de luvas de que tanto preciso (por sinal bem bonito). Gastei a massa na A., que está doente e triste e no vinho da bióloga. Não menciono a "poesia", claro. Não teria sido gastar dinheiro. 

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Li um pouco de Li Bai, Omar Khayyam e E.E. Cummings. Gosto tanto de ler poesia em público! E pelo menos poupo aos outros os meus disparates.

(Os quais, para dizer a verdade, quando comparados àquilo - por exemplo - que hoje ouvi perdem  logo esse estatuto. Mas mesmo assim teriam de decantar muitos anos, antes de ser lidos perante uma assembleia desprovida de tomates e ovos podres.)

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Belém - Alvalade pela Infante Santo nas calmas. Ao menos isso.  Hoje fui ver preços de bicicletas eléctricas e isso sim, é um disparate completo. Custa o mesmo que um carro em segunda mão, tem as desvantagens todas das burras e tem poucas das vantagens. 

Enquanto as pernas funcionarem é essa a electricidade que usarei.

11.12.24

Sol, Terra

Basta um dia de sol no Paredão para nos reconciliar com a terra. Com a Terra. 

10.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-12-2024

Por norma não gosto de utilizar os duches das marinas. Só o faço quando absolutamente forçado a isso, como agora. Há excepções claro: Denia, por exemplo. Aquilo é um luxo e quando lá vou uso os duches do porto mesmo sem uma razão forte.

Não se aprende muito nos duches ou só raramente. Em Brighton vi um tipo a barbear-se como eu, ainda todo ensaboado e completamente nu, o que me levou a pensar que enrolar uma toalha à cintura nem sempre é má ideia. Ali andava tudo nu na casa de banho e os mastros estavam cheios de bandeiras com as cores do arco-íris, verdade seja dita. Em Denia não é preciso andar em pelota nos espaços comuns: cada duche é um apartamento em miniatura, exagerando pouco.

Hoje - contudo, porém, todavia - o meu duche matinal foi uma experiência notável, alegre e uma novidade. Na cabine ao lado da minha um senhor pôs o telefone a tocar música aos berros e começou a cantar ainda mais alto, uma espécie de karaoke duchal, tão mau como o outro mas muito mais rico em novidade. O homem elevou o conceito de cantar no duche a um nível difícil de igualar (nível nos dois sentidos: o sonoro e o da qualidade do acontecimento.  O do canto nem tanto).

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Último dia como skipper do P. Fiz o handover (termo técnico. Não tem tradução para português,  M.) ao R., que me vai substituir, acolhi a A. que vai fazer boat sitting (ditto), deixei a burra no armazém e vim comer à Cantina.

M. não gosta deste clube. Eu adoro-o. É verdade que com a possível excepção de Cascais - a pior marina do hemisfério norte e arredores - nunca estive tanto tempo no mesmo porto. Os amores correspondidos são os melhores, não são? São. 

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(Continuação)

Avião Barcelona - Lisboa

Reacção! Reacção! Jacto! Estes aviões andam a passo de caracol, essa é que é essa. E cada vez mais devagar, ainda por cima. Por cima de Espanha, que nunca acaba qualquer que seja o meio de transporte: carro, barco ou avião este raio deste país demora uma eternidade até acabar.

Dá tempo para os hospedeiros venderem perfumes, relógios e outras bugigangas. Só não vendem é sono, a única coisa que me apetece. Nem um minuto. A porcaria dos bombons comidos no aeroporto pesa-me no estômago. Porcaria é maneira de dizer, claro. São bons que se fartam. Vêm de um stand chamado Chocolate Factory, em catalão moderno. Comi cinco, se não estou em erro. Pergunto-me se a explosão de açúcar foi equivalente às de Hiroshima e Nagasaki combinadas e concluo que não. 

A rapariga do lado também não consegue dormir. Tem nas orelhas aquelas coisas que fazem as pessoas assemelhar-se a elefantes anões mas sem a inteligência dos bichos. Deve estar a ouvir música porque de vez em quando acende-se uma luz azul, a piscar como as luzes dos carros da polícia. Olho para ela de soslaio, furtivamente, não vá ela fazer-me aquilo que pus a personagem de um conto que estou a escrever a fazer. Espero acabá-lo depressa. É um conto pedagógico. 

Pela janela vejo aldeias, relativamente próximas umas das outras. Irrita-me não saber aonde estou mas não pago para ter wifi a bordo. Só faltam quarenta minutos para chegar. Gosto de seguir os voos nos ecrãs, mas estes aviões de pequenas distâncias não os têm. Quando penso no que me chatearam por não desligar o telefone!

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Lisboa

Recepção tradicional: um chauffeur de táxi que tenta enganar-me - debita-me um euro e sessenta cêntimos pela mochila. Pago-lhe a totalidade do que ele me pede e explico-lhe que ficou a perder: nestes trajectos curtos costumo deixar uma gorja maior. "Mas já que o senhor se auto-atribuiu a gorjeta, fica assim." Estes gajos não aprendem, nada a fazer. E eu entrei no carro a mencionar a Uber, para o ajudar a perceber. Não percebeu. Devo dizer que até tenho um certo respeito - ou será inveja? - pela profissão de taxista.

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Jantar no Portofino, pela primeira vez. Pode talvez argumentar-se que o acto inaugural é o melhor - hipótese que não compro - mas algo me diz que as próximas vezes (haverá muitas, Deus querendo) serão tão boas como esta.

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Portugal: no táxi vim a ouvir um programa de futebol. Não quis pedir ao homem que mudasse porque o trajecto era curto. No restaurante, uma mesa próxima fala de futebol.

Depois admiram-se de ser governados por Costas,  Montenegros, Marcelos e afins.

(Cont. ?)

Sim, continua.

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Acabo no Távola. Não sei se é inevitável - aceitá-lo seria aceitar que não tenho juízo nenhum, coisa que essa sim, me parece inevitável - mas sei que chegar a Lisboa e não parar aqui a caminho de casa é pecado mortal.

Uma cantora excepcional, o puto do baixo - Romeu ou Romão ou coisa que o valha cada vez melhor (conheço-o desde o glorioso café Tati no Cais do Sodré) - um guitarra tão bom como os outros. O bateria não me seduziu por aí além. On s'en fout.

"Ladies and gentlemen, you are floating in space", dizem os Spiritualized. "Luisinho, estás a flutuar em Lisboa", digo eu, que me conheço de gingeira e sei vet quando a árvore está carregada de frutos maduros, pulposos, a rebentar de sumo.

Está. 

9.12.24

Magia, paz

Aquele momento mágico do dia em que a noite e a paz se encontram.

Ou: aqueles momentos mágicos da vida em que os dias e a paz se encontram, se sentam num banco do jardim, namoram, vão passear à beira-mar, jantam e decidem que deviam passar juntos o resto das suas vidas?

Receita - vinho quente à moda da casa

O jantar acaba com Sonny Rollins e uma valente canecada de vinho quente, feito à minha maneira. Fica a receita, para próximas referências:

Vinho tinto;
Rum;
Açúcar mascavado;
Canela em pau;
Alcaravia;
Cravinhos;
Anis (estrela).

Põem-se todos os ingredientes menos o rum numa panela e aquece-se lentamente - esta é a palavra-chave: lentamente - mexendo de vez em quando.

Quando está bem quente serve-se, acrescentando o rum para quem gostar. Escusado é dizer que nem o vinho nem o espirituoso devem ser de alta qualidade. Baixa chega perfeitamente.

Dilui tudo, até a raiva provocada pela imbecilidade de um Papa woke que cede ao zeitgeist, esquecendo que a Igreja deve ser imune a essa peste. O zeitgeist é pestilento. Cheira mal. Não é só o nosso, de hoje - são todos, desde sempre. A Igreja Católica devia ser-lhes indiferente.

Nacionalidade

Venho ao bar España (o da carrer Oms, preciso) e sou recebido com um abraço e uma pergunta: ¿Palomita

Não tarda dão-me a nacionalidade.

8.12.24

De garfo e faca, fora da caixa

Às vezes fico desolado com a quantidade de coisas que me passam ao lado. Ou ao lado das quais eu passo,  dependendo de aonde se quer pôr o sujeito. Não é coisa de que me envergonhe e muito menos orgulhe, regra geral. Mas não deixa de ser aflitivo. É como se estivesse à côté de la plaque em tudo. O problema sendo que quase nada do que interessa a maioria das pessoas me chama sequer a atenção, quanto mais interessar. Hoje no El Corte Inglés passei por um mostrador da marca Façonnable e lembrei-me de que antigamente era uma das minhas marcas favoritas. Tinha camisas e provavelmente calças dessa marca. Agora pergunto-me: quando foi antigamente? Já nem me lembrava daquilo. Não me lembro das outras marcas de roupa de que gostava. Mentira. Lembro-me de mais uma: Burberry. Tinha pullovers da Burberry. E tinha sapatos bonitos, pretos, com os quais ia trabalhar. Também gostava de escolher gravatas. Orgulhava-ne muito da minha colecção delas. E usava perfume: Fahrenheit. Esse nunca esqueci. Ainda hoje, quando passo pelo walk through do aeroporto de Palma esgueiro-me até ao mostrador da Dior para me borrifar um bocadinho com aquilo, de que continuo a gostar um monte. A última vez que comprei um frasco - enorme - foi no duty free de Colón. Custou metade do que custava um frasco normal na Europa. Durou mais de um ano e ficou no aeroporto de Lisboa porque o levava na bagagem de mão. Ainda implorei ao segurança que ficasse com o frasco e não o deitasse fora. Não é exagero, prometo. Implorei. O homem disse-me que não podia. Aquilo tinha mesmo de ir fora. Espero que estivesse a mentir e que no fim do seu turno tenha ido ao saco buscá-lo.

Mas na verdade essa caixa - a das camisas, gravatas, pullovers, sapatos Oxford - tão pouco era a minha. Saí dela com uma facilidade desconcertante porque na verdade eu usava aquelas coisas por razões puramente estéticas. Achava-as bonitas, simplesmente. Nunca fiz parte da tribo, mesmo que lhe vestisse os uniformes. Não era para copiar, imitar e muito menos para me integrar que o fazia. Apercebo-me regularmente da distância entre mim e a plaque quando leio no FB uma senhora que sabe tudo sobre moda e sobre os sinais de distinção social e sobre tribos sociais. 

Já nem das marcas me lembro, quanto mais do que elas transmitem. Pior: não me lembro sequer de transmitir seja o que for. Penso em Baudrillard para compreender a função das marcas mas não para conhecer cada uma delas em pormenor. 

Digo que sou um troglodita e apercebo-me sem orgulho mas não sei se sem vergonha de que é cada vez mais verdade. É que já nem sequer posso dizer que sou um troglodita bem vestido. Apesar de saber a diferença entre uma mala e uma carteira, entre tratar os filhos por tu ou por você,  entre prenda e presente. 

Ah, sei comer de garfo e faca e abrir a porta do carro às senhoras. Não deixo de ser um troglodita fora da caixa, mas pelo menos não estou tão longe dela como temia no início deste post.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-12-2024 / II

Vendo bem, eu tinha comida a bordo; vendo melhor, não tinha pâté de campagne, queijo Camembert au lait cru nem chiapatta, esta ainda quente e tão boa que lhe comi quase metade enquanto deambulava pelo supermercado El Corte Inglés, o único capaz de suprir tão gritantes falhas ao domingo.

Comido quase metade do pão tive uma inapelável vontade de beber um chocolate quente, de que o ex-meu P. está igualmente desprovido. Da cave ao quinto andar foi um pulo de elevador, até descobrir que o cacau não é grande coisa levou um bocadinho mais de tempo mas sentado à janela com metade da chiapatta já comida, com as peças do puzzle a encaixarem-se se não da forma ideal pelo menos da expectável, com a ideia de que tenho com que fazer vinho quente a bordo, com um amor que está a deixar de ser nascente e se transforma a passos largos na nascente do amor, com a ideia de que a carcaça já conheceu melhores dias mas enfim, não está tão mal como gosto de pensar, com tudo isso - o peso relativo de um cacau medíocre e indigno do El Corte Inglés desaparece.

A bordo como o meu camembert e o pâté (em pães separados), o vento caiu, a chuva fez saber que só mais logo ou amanhã. Não é caso para dizer que está tudo bem no melhor dos mundos mas já não estar tudo mal no pior deles é apreciável e deve ser celebrado. Nem que seja com um cacau medíocre no quinto andar do El Corte Inglés. 

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Amanhã é dia de encaixotar o que tenho a bordo e tratar seriamente do seu repatriamento, terça faço a passagem de testemunho e os últimos adeuses. Sem o P. Palma vai mudar. Não será a mesma. Nem eu. Deixarei de ser um «residente» e passarei à categoria de turista, pelo menos até voltar aqui para trabalhar, lá para Abril.

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Dia calmo, este. Cada vez há menos probabilidades de que o transporte de Janeiro não se faça e Fevereiro cair-me-á nos braços como... como quê? Não sei. Ainda há muitas milhas, até lá e de milhas só gosto de falar das que já me passaram pela quilha, não das que aí vêm.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-12-2024

Como previsto o badanal acalma mas não acaba. Daqui a pouco, para alegrar o quadro, entra chuva. A noite foi longa - até às cinco da manhã foram os tais ciclos de meia-hora; depois lá consegui dormir mais ou menos correctamente. E ainda há quem se admire da minha capacidade de adormecer em qualquer sítio - agora até nos aviões consigo dormir... O cunho aonde estão os cabos dos muertos está mesmo por cima do meu camarote e o ranger dos cabos, mai-los barulho do vento nas mastreações e do oscilar do barco atingiam um nível relativamente elevado de decibéis. Mas lá está: se há coisa importante no mar - ou numa embarcação - é a gestão da fatiga. 

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Os «empresários» portugueses são gente curiosa. Têm uma gestão do tempo fantasiosa. Uma coisa que se resolve com um telefonema de dois minutos deve ser tratada por e-mail. Depois admiram-se de nossa produtividade. (Além de não ser sequer capaz de assinar uma mensagem com o apelido. É só o nome, como em África e nas creches.)

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Almoço: frango frito. Comecei por marinar a perna de frango em sal fumado, azeite picante e sumac (não tenho limão a bordo). Ainda está na marinada. A seu tempo darei notícias. É imperativo encontrar forma de transpor a loja do Cristian para Portugal. E o Xisco; e Fidel & Tom; e a bodega Bellver; e a bodega Can Rigo; enfim, quase tudo.

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BINGO! Nunca mais poderei dizer que não sei fazer frango frito.

- Marinar numa mistura de sal fumado e sumac e juntar um pouco de azeite picante;
- Envolver em farinha de grão-de-bico;
- Fritar.

Ficou uma maravilha. Agora falta assegurar o fornecimento de sal fumado em Lisboa, Porto, Caminha ou Seixas do Minho. Sumac há de certeza.

7.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-12-2024

O badanal que estava previsto entrou mais tarde do que as previsões previam mas entrou com a mesma força. Perdi o chapéu de vento, ia caindo da bicicleta, o P. chia por todos os lados, mudei defensas de sítio, o frasco com sabonete que a A. aqui deixou entornou-se e foi pelo cano (vá lá, ao menos isso) e eu pergunto-me a) se vou dormir esta noite e b) se sim, como?

A corrente de terra foi-se abaixo mas um dos vizinhos ensinou-me aonde a repor e tenho aquecimento. O P. dança tão desajeitadamente como eu. A chinfrineira na marina é enorme. E eu só penso que prefiro estar aqui a estar no mar. Paras estes dias a minha Mãe tinha uma oração especial cujo texto infelizmente esqueci. Duvido muito que a rezasse se me lembrasse, mas de que a apreciaria não tenho dúvidas. O lugar é para barcos maiores e os cabos dos mortos são demasiado grandes. Hoje pus o motor a ré a toda a força e a coisa aguentou-se, mas agora as defensas que pus no painel da popa trabalham. São quatro, espero que nenhum rebente. E que se aguentem, o pior vem amanhã. [Parece que não, afinal. Vai acalmar a partir das oito ou nove.]

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Dois gajos no princípio do pontão têm os mastros alinhados. Fico sempre na dúvida sobre o que fazer mas a minha irremediável propensão pedagógica acaba por ganhar. Disse-lhes que deviam desalinhar os paus. É uma coisa básica, porra. É o b do abc: não amarres ao lado de um gajo com os mastros alinhados porque se entra badanal eles podem tocar. Encolheram os ombros. Eu não. Acho que fiz o que devia fazer, mesmo que eles pensem que estou a meter-me aonde não sou chamado.

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Vou deitar-me. Dormir é outra coisa. Tenho sorte: não enjoo e as baterias recuperam depressa. Meia hora de sono e ei-las prontas. A noite vai ser assim: uma sucessão de meias horas.

6.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-12-2024

A ideia original era comprar café no mercado de Santa Catalina; juntou-se-lhe a de ali beber um copo com a I. e o A. A taxa de realização foi de cinquenta por cento: o mercado estava fechado pois hoje é feriado. Passei um bom momento - bom nos sentidos de bom e de largo - com o A. É a pessoa que mais subavaliei nos últimos duzentos e cinquenta anos e mais injustamente. I. estava preocupada pois perdeu um xale e foi procurá-lo. Resultado: duas horas de conversa em português na Madeleine de Proust, uma pastelaria francesa, contrariamente ao que o nome levaria a supor. Fica ao lado do mercado e vou lá de vez em quando. Finda a conversa venho complementar o almoço ao Jonny's Dhaba, história de preparar a cama para a sesta.

(Fecha-se uma porta e abrem-se muitas outras, como reza a piada sobre os carros franceses. Quantas se abrem, pergunta o céptico que há em mim? Tantas quantas o futuro conta de dias, responde o optimista.)

O Jonny está cheio. Gosto da clientela desta casa, é gente boa e faz-me sentir assim também. Como restaurante indiano deixa um pouco a desejar, é certo, mas como restaurante é soberbo. Os restaurantes, tal como as cidades, são feitos das pessoas que os frequentam. A comida não é tudo. 

No Jonny encontro o D., o «meu» rigger, ucraniano, um tipo que para ir ao galope de mastros até vinte metros não precisa de grua nem de cadeirinha: chega lá com as mãos e não precisa sequer de se pôr em bicos dos pés. D. tem trabalho em todo o lado: Filipinas, Singapura, Caraíbas... Este ano até à Austrália foi, um país onde toda a gente sabe não haver riggers capazes. Fala-me da guerra e dá-me informações absolutamente horrorizantes. É a favor da entrega dos territórios à Rússia, opinião sustentada pelas tais informações - que no caso dele vêm em primeira mão. Não respondo, claro. Limito-me a dizer que sim e a confirmar que numa guerra não há bons nem maus. Há os que têm razão e os que a não têm.

Dali venho à Cantina beber um rum. Para quem não gosta de despedidas esta arrasta-se até mais não ver. 

E disto se faz um dia. Verifico se o P. está pronto para o badanal que aí vem - está, mas de qualquer forma estarei a bordo - espero por segunda que é quando poderei ir buscar as caixas para a mudança, por terça, quando apanharei o avião e durmo a sesta, bendita sesta.

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Ao contrário de Coimbra Palma não tem mais encanto na hora da despedida. Bem sei que em breve estarei cá de novo, mas não será a mesma coisa. Palma fica uma cidade triste quando ouve alguém dizer-lhe adeus.

5.12.24

Escondo-me

Escondo-me no canto da noite que fica mais perto de ti. É ali que o sono me procura e me encontra, quando quer encontrar-me. É o canto mais quente, o canto de onde melhor se vê a Lua, de onde melhor se sente a manhã. Amanhã. 

Sismos à porta

Não é de certeza por acaso que a imagem do sismógrafo não te sai da cabeça. Um sismógrafo priápico, excitado com a quantidade de sismos com que deve lidar simultaneamente. Sismultaneamente, dirias se alguma coisa pudesses dizer  e não fosse fácil de mais, tantos os tremores que te abalam as fundações. Lou Reed canta a agonia de um amigo que lhe era próximo, hoje conseguiste não pensar na tua agonia e pensas que devias um dia erguer um altar a todas as mulheres que não te levaram para a cama, ver se o sismógrafo acalma, se sabe nadar num largo rio tranquilo. 

Sabe, claro que sabe. É um sismógrafo sensível e adaptável. Sente a mais leve das vibrações e adapta-se a todas. Até à de uma noite sem sono e sem frio, sem luz e sem amanhã, noite de noites, noite fugida do calendário, escondida entre sismos, mergulhada em medos e em coragens, noite contraditória: tudo e o seu contrário (que não é nada, lembra-te. O contrário de tudo é tudo).

Cavafy: que faremos sem os bárbaros? Quando regressares a Ítaca pede que o caminho seja longo.

Pizarnik: Que haré con el miedo / que haré con el miedo ¿Qué haré conmigo?

Borges: Sólo una cosa no hay. / Es el olvido.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-12-2024

Só a quem tenho mesmo de dizer digo que me vou embora do P. Não é fácil, quando ainda por cima tenho de mentir sobre as razões. Ou semi-mentir, pelo menos. Hoje foi à R., a melhor shipchandler com quem me foi dado trabalhar. Há quem trabalhe numa dessas lojas como se trabalhasse numa loja de roupas ou de chupa-chupas. Um shipchandler é outra coisa. Em português diz-se loja de aprestos marítimos, expressão essa que não exprime nem metade do que a outra, a inglesa, a original expressa. É a componente ship, - barco, navio, embarcação, lancha, iate, paquete, graneleiro, vaso de guerra, cimenteiro, petroleiro, arrastão, cargueiro... Ship é um universo, um planeta, uma vida, um meio de transporte, uma aproximação ao infinito. Marítimo é tudo isso, mas menos.

Um bom shipchandler está para um marinheiro como um bom padre para um católico, suponho. R. é isso e muito mais. Agora trabalha num rigger - um dos melhores de Palma, como se houvesse acasos - e ela, que já foi marinheiro (o masculino é propositado) continua a saber o que um marinheiro é e aquilo de que precisa. Longa vida à R., três hips e um hooray a todos os que trocaram o mar pela terra e não deixaram o mar.

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Almoço no Sabores Criollos: cerveja Aguila, arepa de carne, rum Viejo de Caldas. Ninguém me pode acusar de não me despedir como deve ser.

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Chego a bordo e oiço os Cânticos da Liturgia Eslava pelos monges de Chevetogne. Quando se está no céu convém não descer muito depressa.

Tudo menos viver como se estivesse morto

O conceito base de quem «desobedece» aos médicos - diabéticos que comem e bebem como se o pâncreas produzisse insulina para dar e vender, asmáticos que fumam, coxos que insistem em fazer os cem metros barreiras - é o de que a vida vale mais do que a morte.

Podres de razão. As coisas ou se fazem bem feitas ou não se fazem e viver faz parte dessas coisas.

4.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-12-2024

Triste, miserável? Hesito. São duas bolas de malabarista, na aparência juntas mas na realidade separadas? Ou estão ligadas por um elástico e são inseparáveis, por mais que se afastem?

Não sei. Sei que hoje pedalei ou triste ou e miserável pela cidade e que também ela estava como eu, hesitante. Sete anos é o ano do diabo para muitos casamentos, isso é certo. Mas porra!, ainda me faltam três meses. E não estava casado,  além disso. 

Enfim, pouco interessa. Verbiage verbiage. Paroles, paroles. Pouco a pouco, pedalada a pedalada digo adeus ao meu P., sabendo pertinentemente que não estou a dizer adeus a Palma. É a uma parte de mim que digo adeus, não a esta cidade que se tornou, ela também, parte deste gajo que circula montado numa bicicleta BH Glasgow Vintage branca, de jeans, anorak e chapéu, sapatos de camurça e miséria na alma. Ou tristeza, só?

Não sei. Jantei o melho vitello tonnato do universo, almocei uma pita shawarma correcta no israelita do mercado, bebi um vermute no Tulsa, avancei trabalho em todas as frentes e terminei o dia a conversar com este amor cada vez menos nascente. Conversa essa que me apagou do dia as duas palavras do início deste post. Tiveram de se refugiar na memória, coitadas, que na experiência já nem cheiro delas ficou.

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O E. do clube disse-me hoje que sou "un hombre cabal", entre outros encómios. Não faço ideia do que isso seja e venho ao Google. "In Spanish the word CABAL means precise or exact, thorough and on point."

Pelo menos não foram anos perdidos. 

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O caudaloso rio da minha vida encontrou finalmente um afluente tranquilo, penso. E logo a seguir digo-me que talvez seja ao contrário e o meu rio seja o afluente do outro e não este do meu.

Talvez. Sonhar não custa. O que custa, exige esforço, vontade e tenacidade é transformar os sonhos em realidade. 

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Vénia, chapeau bas e roupa de combate: tantas palavras para dizer Hallelujah! Ou, mais laicamente: Obrigado!

3.12.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-12-2024

Devido a um certo número de restrições orçamentais venho de autocarro do aeroporto. Palma cheira a despedida, um cheiro que não lhe fica de todo bem. Não lhe corresponde, por assim dizer. Para compensar, venho à San Jaime beber um Caravajales. O equilíbrio é a fonte da harmonia. O que se poupa de um lado deve gastar-se no outro, sob pena daquilo a que os ingleses chamam imbalance, termo chique para desequilíbrio.

Como vermuteria o San Jaime deixa um bocadinho a desejar - tem pouca escolha - mas como razão para descer do autocarro uma paragem antes tem argumentos sólidos: a música (cançonetas pop inconsequentes), o serviço (miúdas novas, giras, simpáticas, sorridentes e competentes), a localização (a caminho do clube), o conforto e sei lá que mais. Sei que desci uma paragem antes, bebi um Caravajales e um Padrón e a caminho de bordo ainda parei na Cantina porque tinha de esperar pela bicicleta, que está fechada num local e para o abrir é preciso chamar um marinheiro e por conseguinte beber um copo de tinto e brincar com a empregada e pensar «porra, isto está a acabar?» Tudo indica que sim.

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Chego a bordo e começo a arrumar as minhas coisas. É preciso fazer a cama. Os lençóis estão húmidos - tudo está húmido. Tenho coisas demais, eu sei. Paciência. Quem não tem jeito para a frugalidade tem braços, pernas e sacos de supermercado. E um aquecimento no máximo, ver se esta humidade desaparece.

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Reencontro a minha burra. Palma desliza sob mim. Suspeito que a ideia do tapete voador veio de um ciclista.

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O trajecto para jantar foi no mínimo ziguezagueante. Como de costume não sabia aonde ir mas desta vez à indecisão habitual juntava-se outra, a do início deste post. Estou de saída e a questão resume-se rapidamente ao Antiquari e ao Bar Rita - aquele porque foi a minha primeira casa em Palma, este porque foi aonde Palma - ou Mallorca, para os preciosistas - me abriu a porta. De caminho bebo um vinho quente e como um cachorro idem na Rambla, que está linda como sempre. Acabo por escolher o Antiquari, motivado mais pela comezinha necessidade de escrever do que por esotéricas ideias de chegadas e partidas, casas e portas.

Um gajo sabe que está no café de um francês quando diz à empregada «preciso de uma mesa para comer e para escrever» e ela aponta para a sala de trás e diz: «ali está mais tranquilo para escrever.» Ainda oscilo um bocadinho mas acabo efectivamente na sala de trás, porque tenho mais luz do que na da frente.

Esta sala parece um décor de cinema. Não é por acaso que uma das minhas fotografias favoritas foi feita aqui.

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E assim saio de Palma: como entrei. Com espanto e amor, como se cada dia fosse o primeiro e o último.

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Primeira nota importante: o La Rosa não tinha fila à porta e consegui entrar sem esperar. Ainda me lembro de quando se podia entrar ali como noutro sítio qualquer. Bebi um Noilly Prat tinto porque estava a precisar de um vermute seco. O Noilly Part branco é o vermute do dry martini e o tinto é o vermute de quem precisa de um copo de Descartes. Descartes em copo, por assim dizer.

Segunda nota importante: se as clientes do Antiquari abrissem uma agência de matrimónios ter-me-iam como aspirante a todas e cada uma delas. (E se fossem mais velhinhas, coitadas, que assim novas são um imbalance). Para restabelecer o equilíbrio peço mais um copo de vinho, outra vantagem de se frequentar o café de um francês. O vinho é bom. Palma é uma cidade cheia de equilíbrios. Ou melhor: fácil de equlibrar.

Terceira nota importante: Luisinho...

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Contesto vigorosamente o nome Palma de Mallorca. Prefiro-lhe Palma de Mim.

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ADENDA: A caminho de bordo salta-me o Jaume, mais conhecido por Bodega Can Rigo, ao caminho, que Deus me perdoe a repetição da palavra caminho. É inverno, tenho lugar, o Jaume está disponível e dá-me um abraço sorridente, a Picki lembra-se do meu nome, o outro Jaume quase esboça um sorriso. Há algo na reserva deste povo que me atrai, me seduz, me encanta e me faz suportar passar uma hora ao balcão sem trocar uma palavra pela razão simples de que não é preciso.

Sou um homem de palavras e vivo bem sem elas. Nós, os marinheiros, somos tudo e o seu contrário.

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Encontro o V. (e a H., acho que nunca os vi um sem o outro) e lembro-me de que queria fazer uma festa com ele quando o P. ficasse pronto. Nunca ficará e nunca haverá festa. Com um pouco de sorte pedir-lhe-ei para tocar meia hora no bar Rita. É um sax e um flauta extraordinário. Com sorte.

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Já estava a bordo. Cama feita, olhar olhado sobre o desolo de ter tudo (enfm, um largo quase tudo) em sacos de supermercado e a imperiosa necessidade de um taco no 7 Machos arrancou-me a essa doce (ou amarga) contemplação. A mistura é sempre a mesma: Modelo, Mezcal, Pastora. Não sei que ordem dar a isto, de maneira fica assim. Isto para não mencionar as clientes. Se o fizesse, as do Antiquari ficariam zangadas, aposto.

Ou seja: Palma acolhe-me e eu esparramo-me por ela abaixo, goelas e braços abertos, pernas para pedalar e sentidos alerta, antenas no ar que a vida não perdoa a quem não lhe presta atenção. 

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O mezcal do 7 Machos é da marca Banhez, se por acaso. 

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Agora sim, posso ir deitar-me. A escada para a cama tem um monte de degraus e já subi metade deles.

Semi-paráfrase

Je suis contre le verbiage.