28.11.07
Retratos possíveis
A senhora que está à minha frente parece-se com a Marlene Dietrich. Uma Marlene Dietrich de mercado de peixe.
26.11.07
Definição
Um baiano ("soteropolitano" para os íntimos) é, dizia-me um deles recentemente, um tipo que se o mundo acabasse hoje só morreria daqui a três dias.
25.11.07
Clubite
Não percebo nada de futebol, e não quero perceber. Mas quando estou com pessoas que se interessam por essa actividade, por uma simples questão de empatia, finjo que me interesso, e faço perguntas e tudo.
Hoje tive a melhor resposta a essas perguntas de conveniência: perguntei a um fanático do Bahia com quem jogava o seu clube hoje. "Contra ninguém", foi a resposta.
Isto sim, isto é clubite.
Hoje tive a melhor resposta a essas perguntas de conveniência: perguntei a um fanático do Bahia com quem jogava o seu clube hoje. "Contra ninguém", foi a resposta.
Isto sim, isto é clubite.
23.11.07
22.11.07
Diálogos possíveis
- Devia ser possível comprar paciência nos supermercados. "Dê-me um quilo de paciência, se faz favor". Em barra, em pó, em líquido...
- Líquida já se vende. Chama-se "whisky".
- Líquida já se vende. Chama-se "whisky".
21.11.07
Salvador da Bahia - VII
Por onde começar, por que tragédia? Se Fellini quisesse, um dia, abandonar o grotesco, começaria por aqui, provavelmente: um bar - melhor, um espaço - para reggae com miúdos de 9 e 10 anos (já dando margem para a aparência enganadora, etc.) a fumar charros sob o olhar admirativo de miúdas da mesma idade, que preferem cigarros - salvo uma ligeira excepção ou duas, que condescende no charro. Os seios das miúdas já se vêem claramente sob as T-shirts quase transparentes de tão usadas. Para acrescentar à desorganização caótica habitual, hoje é dia da Consciência Negra.
Não há uma única pessoa bonita - seja ela mulher ou homem -, uma única pessoa atraente. Só se vêem miúdas de onze anos, mulheres gordas ou muito gordas, velhas; um verdadeiro jardim zoológico humano.
Não há uma única pessoa bonita - seja ela mulher ou homem -, uma única pessoa atraente. Só se vêem miúdas de onze anos, mulheres gordas ou muito gordas, velhas; um verdadeiro jardim zoológico humano.
18.11.07
Salvador - VI
Precisamos de uma banda, e ontem fui ao Bairro Alto de Salvador à procura de uma. "Bairro Alto" é uma hipérbole: tudo se passa numa rua. Mas que rua! Pessoas a pé, sentadas, a dançar, a beber, a comer nas barracas, carros em sentidos contrários (só pode passar um de cada vez, as discussões são inimagináveis), com sistemas de som de fazer inveja a muitas discotecas, mais pessoas, motas e motas e mais motas, os sistemas de som parados em segunda fila, uma cacofonia indescritível, o cheiro da comida, das bancadas de caipirinha e caipiroska e frutas e espetos, estímulos para todos os sentidos. No porta-bagagens aberto de um automóvel um Coleman e um bocado de cartão com, escrito à mão, "Promoção: Latão R$2,00". Um carro da polícia avança e ficamos, ele e o nosso táxi, entalados porque um grupo de três miúdas estava a beber cerveja encostado a um carro estacionado e não achou necessário deslocar-se: as garrafas estavam pousadas na rua, não fosse a pintura do carro estragar-se, provavelmente, e o chauffeur do táxi não queria entornar-lhe a cerveja. Só ao fim de um largo momento decidiram mexer-se.
O nosso destino era a Associação Ilé Aiyé, uma associação cultural para a difusão da cultura negra, um enorme hall de dança que me fez pensar em África (tudo me fazia pensar em África - só hoje vi que aquilo é o maior bairro negro de Salvador, com 600,000 habitantes), ou numa versão gigante do Ritz Club; depois da nossa conversa com o director do centro, ficámos um bocado mais, a ouvir um dos grupos da noite, Araketu & Convidados, uma banda cuja cantora tem uma energia que cansa só de a ver, mas que faz abortar em segundos qualquer tentativa de ficar parado "a ver".
O site do Ilé Aiyé merece uma visita. O local muitas.
O nosso destino era a Associação Ilé Aiyé, uma associação cultural para a difusão da cultura negra, um enorme hall de dança que me fez pensar em África (tudo me fazia pensar em África - só hoje vi que aquilo é o maior bairro negro de Salvador, com 600,000 habitantes), ou numa versão gigante do Ritz Club; depois da nossa conversa com o director do centro, ficámos um bocado mais, a ouvir um dos grupos da noite, Araketu & Convidados, uma banda cuja cantora tem uma energia que cansa só de a ver, mas que faz abortar em segundos qualquer tentativa de ficar parado "a ver".
O site do Ilé Aiyé merece uma visita. O local muitas.
Centro Cultural Senzala do Barro Preto
Rua do Curuzu 228
Liberdade
Salvador
Até que enfim
Uma reacção normal, sã, direita, à história da jovem saudita violada e condenada. Aqui.
17.11.07
Brasil
Uma vez conheci um tipo cuja alcunha era "Brasil": tinha um quotidiano de merda, mas não parava de sonhar com futuros brilhantes - foi assim enquanto nos conhecemos, e sempre foram uns 50 anos.
Uma noite disse "desta vez é que é a boa", e morreu. Estava num hospital, e a enfermeira que o ouviu não percebeu a piada.
Uma noite disse "desta vez é que é a boa", e morreu. Estava num hospital, e a enfermeira que o ouviu não percebeu a piada.
Socorro! ou: Isto é um meta-post.
Não sei, sinceramente, que fazer, e preciso de ajuda: há pessoas que pensam que tudo o que escrevo aqui na primeira pessoa é escrito no primeiro grau. Pensam, por exemplo, que só tomo banho uma vez por semana porque mais seria um desperdício de água, ou que os retratos ficcionados que aqui deixo são auto-retratos, e dizem - isto é verdade, acreditem ou não - que os males de Portugal vêm de haver muitos indíviduos como eu à solta. Devem acreditar também que ando à caça de caixeiras nos supermercados, e sei lá que mais. Confesso que acho o equívoco delicioso, e a primeira reacção foi não dizer nada.
Deus meu... que era um mau escritor, eu sabia (também não pretendo ser um escritor de todo - ou já não pretendo, obrigado Don Vivo); agora ser tomado por um Orson Welles da blogosfera enche-me de espanto, seja Deus louvado. Há muito tempo que me delicio com a expressão "Playboy da Reboleira", ou "D. Juan das praias" que ouvi a algumas miúdas (não, por favor, não referindo-se a mim. Ou terá sido?). Vou juntar mais uma: "Orson Welles da bloga" (não o faço: tenho-lhe demasiado respeito e admiração, coitado).
Mas primeiro tenho que parar de rir. Eu sabia que um dia cairia num pecado que muito critico: rir-me da parvoíce, ignorância ou falta de cultura alheias - parece-me um pouco como gozar com a pobreza (material ou de espírito). Acho que só se deve troçar das coisas que dependem de alguém, sei lá, de umas calças roxas, por exemplo, ou de camisas às flores, ou de um amor desmedido por animais (animais no sentido literal, just in case). E ninguém escolheu ser parvo: é, pronto, sei lá, nasceu assim, ou foi educado para o ser. Tal como a cultura: acho que se pode gozar com quem exibe uma cultura que não tem, mas não com quem não é culto de todo.
Enfim, não sei que fazer, e todas as sugestões são bem-vindas (menos, claro, escrever no fim de cada texto: “isto é para ser lido no primeiro grau”; “isto é ironia”; “isto é ficção”; "isto é verdade" – a ser assim, teria que juntar, a cada post: “isto é uma merda”, e disso não tenho vontade: os leitores que se apercebam por si próprios).
Se calhar nem é assim tão mau: afinal de contas, há pessoas que acreditam. Obrigado! Salvaram-me um sábado do qual não esperava nada de bom. Rir talvez não seja o melhor remédio, mas é um grande, grande remédio.
Deus meu... que era um mau escritor, eu sabia (também não pretendo ser um escritor de todo - ou já não pretendo, obrigado Don Vivo); agora ser tomado por um Orson Welles da blogosfera enche-me de espanto, seja Deus louvado. Há muito tempo que me delicio com a expressão "Playboy da Reboleira", ou "D. Juan das praias" que ouvi a algumas miúdas (não, por favor, não referindo-se a mim. Ou terá sido?). Vou juntar mais uma: "Orson Welles da bloga" (não o faço: tenho-lhe demasiado respeito e admiração, coitado).
Mas primeiro tenho que parar de rir. Eu sabia que um dia cairia num pecado que muito critico: rir-me da parvoíce, ignorância ou falta de cultura alheias - parece-me um pouco como gozar com a pobreza (material ou de espírito). Acho que só se deve troçar das coisas que dependem de alguém, sei lá, de umas calças roxas, por exemplo, ou de camisas às flores, ou de um amor desmedido por animais (animais no sentido literal, just in case). E ninguém escolheu ser parvo: é, pronto, sei lá, nasceu assim, ou foi educado para o ser. Tal como a cultura: acho que se pode gozar com quem exibe uma cultura que não tem, mas não com quem não é culto de todo.
Enfim, não sei que fazer, e todas as sugestões são bem-vindas (menos, claro, escrever no fim de cada texto: “isto é para ser lido no primeiro grau”; “isto é ironia”; “isto é ficção”; "isto é verdade" – a ser assim, teria que juntar, a cada post: “isto é uma merda”, e disso não tenho vontade: os leitores que se apercebam por si próprios).
Se calhar nem é assim tão mau: afinal de contas, há pessoas que acreditam. Obrigado! Salvaram-me um sábado do qual não esperava nada de bom. Rir talvez não seja o melhor remédio, mas é um grande, grande remédio.
Santé
Hoje encontrei um site interessante (não foi só hoje, manda a verdade). Chama-se Adegga. É um site de vinhos (digo-o porque pelo nome não se advinharia) feito por portugueses, mas com uma vasta escolha de vinhos estrangeiros. Bem estruturado, bem organizado, convivial. Santé.
(Via Breaking Posts)
(Via Breaking Posts)
"Este déspota vem a Lisboa"
Caro Pedro Correia,
Gosto da sua série de posts sobre os ditadores que vêm a Lisboa. Por mim, não aceitaria nenhum, nem o Mugabe nem os outros. Afinal, são eles que nos custam as fortunas que custam e são o contrário de tudo aquilo por que a Europa lutou até hoje.
Na verdade, só perdemos tempo com África porque, se esperarmos o suficiente e deixarmos de lhes dar dinheiro, aquilo cai-nos nas mãos outra vez. E isso seria, reconheça, uma "çatice" muito grande.
Porém, uma coisa me parece verdade: a Europa devia deixar de ser unicamente um mecanismo para dilapidar dinheiro com agricultores franceses e com governos portugueses. E um grande passo nesse sentido seria ouvir aquilo que os ingleses têm para nos dizer, que é muito, e bom.
Gosto da sua série de posts sobre os ditadores que vêm a Lisboa. Por mim, não aceitaria nenhum, nem o Mugabe nem os outros. Afinal, são eles que nos custam as fortunas que custam e são o contrário de tudo aquilo por que a Europa lutou até hoje.
Na verdade, só perdemos tempo com África porque, se esperarmos o suficiente e deixarmos de lhes dar dinheiro, aquilo cai-nos nas mãos outra vez. E isso seria, reconheça, uma "çatice" muito grande.
Porém, uma coisa me parece verdade: a Europa devia deixar de ser unicamente um mecanismo para dilapidar dinheiro com agricultores franceses e com governos portugueses. E um grande passo nesse sentido seria ouvir aquilo que os ingleses têm para nos dizer, que é muito, e bom.
A.
Por duas vezes a A. e eu estivemos quase a passar ao acto; e das duas vezes fui eu que recuei. Estava em casa dela e do marido: acolheram-me quando voltei do Brasil, com uma mão à frente e outra atrás, desfeito, vazio, de rastos. Hospedaram-me em casa deles, deram-me de comer e não me pediram para falar: o suficiente para recuperar, para pôr um pé no estribo, como diz a versão consagrada da coisa. De qualquer forma, não foi a primeira, e não terá sido a última vez, que recomecei.
A. é uma mulher grande, morena e bonita, muito bonita. Tem olhos verdes e cabelos pretos densos, lisos, compridos, que ela usa para os mais variados fins: esconder-se, seduzir, provocar, enfurecer ou – no meu (e noutros casos) – desnortear.
Por duas vezes a desafiei, por duas vezes ela disse que sim – e por duas vezes eu voltei atrás. Foram recuos difíceis, porque na altura eu estava sozinho, sem dinheiro, partido em mil bocados e não conseguiria arranjar uma mulher – nem, pensava por vezes, pagando, quanto mais sendo “pago”. Ainda por cima ela é grande, e eu gosto de mulheres altas, e linda, linda. O marido, um escritor de sucesso e da moda em Paris, engana-a com tudo o que a cidade tem de saias, e são muitas. Ela, que tem a outra metade da cidade a correr-lhe atrás, vinga-se dizendo que não.
Digo “vinga-se”, mas não tenho a certeza que o verbo seja correcto. “Mortifica-se” talvez seja mais exacto - se bem a mortificação não passe de uma das formas da vingança. Enfim, a verdade é que A., que dizia “não” a toda a gente, disse-me “sim” – e fui eu que lhe disse “não, querida, não quero, não seria correcto”, etc. e tal e outras baboseiras do género, duas vezes.
Até que uma vez não voltei atrás, não recuei, não me acobardei. Estava em casa; meteu-se no carro para vir ter comigo - já tinha "uma vida" – e nesse dia fui para a cama com ela, com os cabelos dela, com as lágrimas dela e com toda a raiva que tinha acumulado ao fim destes anos todos.
Há qualquer coisa de bom, de agradável, em ser um objecto sexual. A maioria das mulheres discorda, claro, mas eu gosto: gosto que me usem o corpo para o prazer, nada mais do que o prazer, sem exigências, sem ontens nem amanhãs, sem “já sabes que”, sem verdades nem mentiras nem consequências. Claro que a inteligência, ou a cultura, ou o humor, ou o conhecimento mútuo são os melhores afrodisíacos. ¡Qué vaya!, a relação sexual casual é a única forma de relação em que os dois sexos estão em posição de absoluta igualdade, e naquele caso era mais do que casual: A. veio para a cama comigo não por mim, não pelo marido, não pelas traições dele, mas porque eu era prático, porque estava à mão e não era precisa muita conversa, não eram precisos jogos nem sedução nem nada: bastava tirar a roupa, ir para a cama, vestir a roupa e ir embora.
Só que ela não se foi embora.
A. é uma mulher grande, morena e bonita, muito bonita. Tem olhos verdes e cabelos pretos densos, lisos, compridos, que ela usa para os mais variados fins: esconder-se, seduzir, provocar, enfurecer ou – no meu (e noutros casos) – desnortear.
Por duas vezes a desafiei, por duas vezes ela disse que sim – e por duas vezes eu voltei atrás. Foram recuos difíceis, porque na altura eu estava sozinho, sem dinheiro, partido em mil bocados e não conseguiria arranjar uma mulher – nem, pensava por vezes, pagando, quanto mais sendo “pago”. Ainda por cima ela é grande, e eu gosto de mulheres altas, e linda, linda. O marido, um escritor de sucesso e da moda em Paris, engana-a com tudo o que a cidade tem de saias, e são muitas. Ela, que tem a outra metade da cidade a correr-lhe atrás, vinga-se dizendo que não.
Digo “vinga-se”, mas não tenho a certeza que o verbo seja correcto. “Mortifica-se” talvez seja mais exacto - se bem a mortificação não passe de uma das formas da vingança. Enfim, a verdade é que A., que dizia “não” a toda a gente, disse-me “sim” – e fui eu que lhe disse “não, querida, não quero, não seria correcto”, etc. e tal e outras baboseiras do género, duas vezes.
Até que uma vez não voltei atrás, não recuei, não me acobardei. Estava em casa; meteu-se no carro para vir ter comigo - já tinha "uma vida" – e nesse dia fui para a cama com ela, com os cabelos dela, com as lágrimas dela e com toda a raiva que tinha acumulado ao fim destes anos todos.
Há qualquer coisa de bom, de agradável, em ser um objecto sexual. A maioria das mulheres discorda, claro, mas eu gosto: gosto que me usem o corpo para o prazer, nada mais do que o prazer, sem exigências, sem ontens nem amanhãs, sem “já sabes que”, sem verdades nem mentiras nem consequências. Claro que a inteligência, ou a cultura, ou o humor, ou o conhecimento mútuo são os melhores afrodisíacos. ¡Qué vaya!, a relação sexual casual é a única forma de relação em que os dois sexos estão em posição de absoluta igualdade, e naquele caso era mais do que casual: A. veio para a cama comigo não por mim, não pelo marido, não pelas traições dele, mas porque eu era prático, porque estava à mão e não era precisa muita conversa, não eram precisos jogos nem sedução nem nada: bastava tirar a roupa, ir para a cama, vestir a roupa e ir embora.
Só que ela não se foi embora.
15.11.07
O Carrasco Infeliz
Durante anos desprezei as pessoas, trocei delas, gozei-as, escalpelizei-lhes os defeitos. Fazia-o em silêncio: era feliz, e podia dar-me a esse luxo. Gostava do meu emprego, dos meus amigos, da minha mulher, do dinheiro que ganhava, do reconhecimento e admiração que todos tinham por mim, das promoções anuais, dos automóveis e das férias e do meu futuro; não havia nada na minha vida de que eu não gostasse.
Um dia tudo mudou. Não importa porquê - na realidade, não foi num dia, foi num ano, ou dois. Descobri os limites da prisão que tão eficazmente fui construindo ao longo dos anos; pior ainda, descobri que não sou capaz de sair dela, não sou capaz de a deixar, não sou capaz de recomeçar. As qualidades que me deram a vitória nesta vida são as mesmas que me impedem de fazer outra. Tornei-me medroso; já não desprezo toda a gente mas não me calo com os outros, com aqueles que me são repugnantes, ou fracos, e não me podem fazer mal.
Refugiei-me no medo. A maldade, sua irmã siamesa, veio por acréscimo, por bónus; agora sou mau. Dá-me um prazer simples, puro, claro magoar alguém que eu julgue particularmente merecedor dos meus devastadores comentários. Uso e abuso da má-fé, aplicando minuciosamente aquele procedimento literário que consiste em tomar uma minúscula parte de qualquer coisa e ampliá-la, distorcê-la, até que ela se torne o todo, e faça dele uma coisa horrível; faço das pessoas figuras vivas de um quadro de Bacon. Aos poucos, todos os que me rodeavam e que eu desprezava ficaram a saber o que realmente pensava - e penso - deles. Foram-se embora, e agora vivo rodeado das poucas pessoas que admiro, pessoas do meu nível, vencedores como eu, pessoas iguais a mim. Ainda não sou feliz.
Um dia tudo mudou. Não importa porquê - na realidade, não foi num dia, foi num ano, ou dois. Descobri os limites da prisão que tão eficazmente fui construindo ao longo dos anos; pior ainda, descobri que não sou capaz de sair dela, não sou capaz de a deixar, não sou capaz de recomeçar. As qualidades que me deram a vitória nesta vida são as mesmas que me impedem de fazer outra. Tornei-me medroso; já não desprezo toda a gente mas não me calo com os outros, com aqueles que me são repugnantes, ou fracos, e não me podem fazer mal.
Refugiei-me no medo. A maldade, sua irmã siamesa, veio por acréscimo, por bónus; agora sou mau. Dá-me um prazer simples, puro, claro magoar alguém que eu julgue particularmente merecedor dos meus devastadores comentários. Uso e abuso da má-fé, aplicando minuciosamente aquele procedimento literário que consiste em tomar uma minúscula parte de qualquer coisa e ampliá-la, distorcê-la, até que ela se torne o todo, e faça dele uma coisa horrível; faço das pessoas figuras vivas de um quadro de Bacon. Aos poucos, todos os que me rodeavam e que eu desprezava ficaram a saber o que realmente pensava - e penso - deles. Foram-se embora, e agora vivo rodeado das poucas pessoas que admiro, pessoas do meu nível, vencedores como eu, pessoas iguais a mim. Ainda não sou feliz.
Provocação
"Arábia Saudita: vítima de violação condenada a seis meses de prisão e 200 chicotadas".
E não se pode sequer dizer que ela estava vestida de uma forma provocadora?
Daqui.
E não se pode sequer dizer que ela estava vestida de uma forma provocadora?
Daqui.
"O Capinar é Sozinho"
Mais um excerto ou dois desta maravilha:
"Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: - "Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho..."
"Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença para coisa nenhuma! Porque existe dor....
...
Mas o demônio não precisa de existir para haver: a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo."
"Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: - "Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho..."
"Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença para coisa nenhuma! Porque existe dor....
...
Mas o demônio não precisa de existir para haver: a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo."
Progresso
É do Brasil que melhor se vê o longo, longo caminho que Portugal ainda tem por fazer. Os métodos de trabalho são iguaizinhos: a lentidão nas respostas, o "as coisas são assim, que quer?", a burocracia, a prepotência e indiferença dos funcionários públicos. É verdade que com mais sorrisos e simpatia, mas os resultados são os mesmos. "Em todo o lado é preciso conhecer as pessoas certas. Aqui, mais do que em qualquer outra parte" - quantas vezes não ouvi isto em Portugal?
Portugal está condenado a continuar no fundo da tabela europeia - se bem que progredindo, porque a maré está a subir, e quando sobe todos os barcos sobem com ela - como o Brasil está condenado a ser o país do futuro: em ambos, quem tem a ganhar com a mudança tem medo dela, e quem tem a perder não a promoverá, naturalmente.
As mudanças de Sócrates são óptimas para nos manter no nosso lugar, mas insuficientes para nos aproximar dos países da frente - mas a verdade é que a maioria dos portugueses rejeitaria as reformas necessárias para mudar o nosso lugar na tabela.
Portugal está condenado a continuar no fundo da tabela europeia - se bem que progredindo, porque a maré está a subir, e quando sobe todos os barcos sobem com ela - como o Brasil está condenado a ser o país do futuro: em ambos, quem tem a ganhar com a mudança tem medo dela, e quem tem a perder não a promoverá, naturalmente.
As mudanças de Sócrates são óptimas para nos manter no nosso lugar, mas insuficientes para nos aproximar dos países da frente - mas a verdade é que a maioria dos portugueses rejeitaria as reformas necessárias para mudar o nosso lugar na tabela.
Assimetrias
"A esmagadora maioria dos eurodeputados aplaudiu hoje o anúncio formal da dissolução do grupo de extrema-direita Identidade, Tradição e Soberania (IDS), que tinha sido criado há menos de um ano".
Se o grupo fosse de extrema-esquerda também teriam aplaudido?
Se o grupo fosse de extrema-esquerda também teriam aplaudido?
14.11.07
Está provado
"Mais de três mil automóveis foram controlados pelos radares. Vinte e seis circulavam em excesso de velocidade.
...
Na EN 242, a operação foi levada a cabo por 15 agentes da PSP. Os radares controlaram 2420 veículos. Apenas dois circulavam em excesso de velocidade."
É a velocidade que provoca os acidentes rodoviários em Portugal.
PS - Já agora, falemos de "jornalismo". O título da notícia é: «GNR "apanha" mais de três mil carros em três horas».
...
Na EN 242, a operação foi levada a cabo por 15 agentes da PSP. Os radares controlaram 2420 veículos. Apenas dois circulavam em excesso de velocidade."
É a velocidade que provoca os acidentes rodoviários em Portugal.
PS - Já agora, falemos de "jornalismo". O título da notícia é: «GNR "apanha" mais de três mil carros em três horas».
11.11.07
Diabo
"Explico ao senhor: o diabo vige [sic] dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum".
João Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas", ed. Nova Fronteira.
João Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas", ed. Nova Fronteira.
Há aqui qualquer coisa que me escapa
«Disse 'sr. Presidente, a comunidade portuguesa pode estar descansada'», revelou Cavaco Silva, acrescentando que a situação está a ser acompanhada «dia-a-dia».
Se a comunidade portuguesa "pode estar descansada", as outras não podem. Mas não é o senhor Chávez suposto fazer o bem para todas as comunidades? O que ele está fazer vai privar a comunidade portuguesa desse bem e ela "pode estar descansada"? Ou o que ele está a fazer não é assim tão bem?
Se a comunidade portuguesa "pode estar descansada", as outras não podem. Mas não é o senhor Chávez suposto fazer o bem para todas as comunidades? O que ele está fazer vai privar a comunidade portuguesa desse bem e ela "pode estar descansada"? Ou o que ele está a fazer não é assim tão bem?
Monarquia
E ainda há quem não veja nada de bom nas monarquias. Ora, basta um grande rei: "Juan Carlos manda calar Hugo Chávez".
Factos da vida
"A verdade, meu caro, é que com o teu dinheiro e a minha imaginação vamos muito mais longe do que iríamos com o meu dinheiro e a tua imaginação".
Página 161
Puseram-me numa lista; a companhia é boa demais para recusar o convite.
Sigo o conselho, escolho o livro. De qualquer forma, tê-lo-ia feito - a escolha é reduzida: 4 livros, dos quais um não tem página 161. Dos outros três, só um tem uma quinta frase que não desmerece o livro todo. Chama-se "Grande Sertão: Veredas", e é de um autor brasileiro chamado João Guimarães Rosa.
"Assim, por exemplo, no circundar da confusão, o senhor sabe: quando bala raciocina".
Reencontro Guimarães Rosa trinta anos depois da primeira leitura, e é muito melhor, agora. Já aqui falei disto, há pouco tempo: cada vez gosto mais do que já conheço. E cada vez gosto mais da liberdade, do prazer, da alegria, "Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular - cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme".
Sigo o conselho, escolho o livro. De qualquer forma, tê-lo-ia feito - a escolha é reduzida: 4 livros, dos quais um não tem página 161. Dos outros três, só um tem uma quinta frase que não desmerece o livro todo. Chama-se "Grande Sertão: Veredas", e é de um autor brasileiro chamado João Guimarães Rosa.
"Assim, por exemplo, no circundar da confusão, o senhor sabe: quando bala raciocina".
Reencontro Guimarães Rosa trinta anos depois da primeira leitura, e é muito melhor, agora. Já aqui falei disto, há pouco tempo: cada vez gosto mais do que já conheço. E cada vez gosto mais da liberdade, do prazer, da alegria, "Porque, nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular - cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme".
8.11.07
Fragmento
"...La vie doit être ça - la mienne, en tout cas: un mélange de bien-être vague, bonheur hésitant et mélancolie amène".
Noite
O cenário é o terraço de um restaurante. A vista é soberba, para a Baía. É pequeno, sete mesas próximas umas das outras, um cheiro enjoativo a cozinha, um patrão pequeno ele também, careca, italiano.
Peço meia garrafa de um vinho brasileiro, uma mistura a priori pouco apetecível de Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir. O vinho vem a ferver para a mesa. Num canto da varanda um músico jovem canta e toca mal velhos clássicos da música brasileira. Na mesa à frente dele um homem gordo deixa-se acariciar freneticamente por uma senhora gorda. O cheiro da cozinha invade tudo, apesar do vento, da vista linda, do momento simpático que acabei de passar na entrega de prémios da Transat 6,50. Todas as mesas estão cheias; a varanda é opressiva.
O vinho é uma merda - talvez arrefecendo melhore. A gorda roça o gordo e o inconveniente, mas compreende-se: deve sentir-se grata, infinitamente grata. A tal ponto que consegue fazê-lo reagir, e agora é ele que a abraça e beija e lhe lambuza o pescoço todo. Só a chegada da salada interrompe a cena, desgostante.
O vinho não melhora: adstringente, taninado, sem corpo, com um final de boca a saber a nada - o rótulo descreve-o bem: "Vinho Tinto Seco Fino". Fino, sobretudo fino.
O músico faz uma pausa e depois recomeça, muito melhor; um rebocador chega ao porto - deve ser o que vi há bocado da Barra; o cheiro diminui de intensidade. Começo a ter sono - em breve regressarei ao hotel. A melancolia chega, pouco a pouco, como uma maré morta. Deixo de ver a gorda, porque mudei de mesa e agora ela está tapada pelo homem.
Não há más noites. Sem ti o sono é amargo, é verdade. Como este vinho, esta música ou o quarto que me espera. Mas não é má, é só um bocadinho triste.
Peço meia garrafa de um vinho brasileiro, uma mistura a priori pouco apetecível de Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir. O vinho vem a ferver para a mesa. Num canto da varanda um músico jovem canta e toca mal velhos clássicos da música brasileira. Na mesa à frente dele um homem gordo deixa-se acariciar freneticamente por uma senhora gorda. O cheiro da cozinha invade tudo, apesar do vento, da vista linda, do momento simpático que acabei de passar na entrega de prémios da Transat 6,50. Todas as mesas estão cheias; a varanda é opressiva.
O vinho é uma merda - talvez arrefecendo melhore. A gorda roça o gordo e o inconveniente, mas compreende-se: deve sentir-se grata, infinitamente grata. A tal ponto que consegue fazê-lo reagir, e agora é ele que a abraça e beija e lhe lambuza o pescoço todo. Só a chegada da salada interrompe a cena, desgostante.
O vinho não melhora: adstringente, taninado, sem corpo, com um final de boca a saber a nada - o rótulo descreve-o bem: "Vinho Tinto Seco Fino". Fino, sobretudo fino.
O músico faz uma pausa e depois recomeça, muito melhor; um rebocador chega ao porto - deve ser o que vi há bocado da Barra; o cheiro diminui de intensidade. Começo a ter sono - em breve regressarei ao hotel. A melancolia chega, pouco a pouco, como uma maré morta. Deixo de ver a gorda, porque mudei de mesa e agora ela está tapada pelo homem.
Não há más noites. Sem ti o sono é amargo, é verdade. Como este vinho, esta música ou o quarto que me espera. Mas não é má, é só um bocadinho triste.
7.11.07
Salvador da Bahia - V
Aos poucos a cidade começa a descobrir-se. É uma velha gaiteira, que foi muito bonita na juventude. De vez em quando vejo-lhe nos olhos o que viveu, sorridente e gulosa. Mas ainda não se apercebeu do tempo que passou. Tenho uma breve impressão daquilo que foi, da sua vitalidade, do seu bom humor - e apanho-me a acreditar na reencarnação, a desejá-la mesmo.
Não há uma única linha direita; a cidade cresce como uma mancha de óleo num mar de tempestade: em todas as direcções, ao sabor das vagas, das colinas, dos lagos, dos ribeiros que a atravessam. É enorme. Quando penso que estou no limite, ainda tenho mais um quarto de hora de táxi para chegar onde quero - e não é o fim. Começo a ter uma ideia de onde estou, quando me desloco, mas muito incerta.
As pessoas são de uma simpatia e de uma gentileza inexcedíveis. A vista do hotel - um 22º andar com vista para a Bahia de Todos os Santos, Itaparica, navios fundeados e mais ilhas - é de uma beleza que, de manhã, ao nascer do sol, me comove.
Aos poucos, a cidade descobre-se, e aprendo a gostar dela.
Não há uma única linha direita; a cidade cresce como uma mancha de óleo num mar de tempestade: em todas as direcções, ao sabor das vagas, das colinas, dos lagos, dos ribeiros que a atravessam. É enorme. Quando penso que estou no limite, ainda tenho mais um quarto de hora de táxi para chegar onde quero - e não é o fim. Começo a ter uma ideia de onde estou, quando me desloco, mas muito incerta.
As pessoas são de uma simpatia e de uma gentileza inexcedíveis. A vista do hotel - um 22º andar com vista para a Bahia de Todos os Santos, Itaparica, navios fundeados e mais ilhas - é de uma beleza que, de manhã, ao nascer do sol, me comove.
Aos poucos, a cidade descobre-se, e aprendo a gostar dela.
6.11.07
Das Cidades e do Amor, ou: Salvador, Take 3
Passa-se com as cidades o que se passa no amor: a terceira vez é melhor do que a primeira, e a quinta melhor ainda.
Pela mesma razão: o conhecimento é muito mais enriquecedor do que a descoberta.
Pela mesma razão: o conhecimento é muito mais enriquecedor do que a descoberta.
5.11.07
Dead Drunk
Gosto da expressão "Dead Drunk": é um resumo dos dois únicos estados em que um homem decente pode estar.
Uivar
Uivar é bom. Aprendi com um imediato (foi o melhor imediato com quem jamais naveguei) que ia para a asa da ponte uivar, de manhã cedo - fazíamos o quarto das quatro às oito.
No mar é difícil avaliar a qualidade do nosso uivo - é uma avaliação interna, por assim dizer: basta sentir-nos aliviados para saber se foi bom, ou não.
Já em terra é mais fácil: basta contar quantos cães ladram, depois.
No mar é difícil avaliar a qualidade do nosso uivo - é uma avaliação interna, por assim dizer: basta sentir-nos aliviados para saber se foi bom, ou não.
Já em terra é mais fácil: basta contar quantos cães ladram, depois.
4.11.07
Patti, Baileys e Johnny Walker
Patti Smith canta a plenos pulmões. Num pub perto de mim, um balão de Baileys chama, aflito, e pede uma gota de Johnny Walker. Vou acudir.
Um almoço improvisado (chouriço frito com pimento)
Comecei por pôr um pimento encarnado a grelhar.
Numa panela entre o grelhador e a frigideira cozi quinoa humanitária, uma aldrabice como outra qualquer (o humanitário. Da quinoa gosto).
Assim que o conteúdo da frigideira começou a secar juntei-lhe vinho tinto, e - generosamente - coentros secos em pó, cominhos moídos, pimenta, paprika e sementes de papoila; mexi bem e acrescentei os bocados de chouriço, que esperavam, sagement, num pires ao lado do fogão. Posteriormente viria a acrescentar o pimento, mas disso não tinha ainda a certeza.
No mesmo grelhador assei uma febra de porco ou duas. Pus tudo na mesa, separadamente, com o piri-piri habitual, e uma botelha de Quinta de Saes 2006 (suponho).
Ao lado, numa frigideira, fritei chouriço. Quando frito retirei-o e na mesma gordura pus meia cebola, em lume brando, muito brando, devagarinho. Depois de a cebola estar mais do que loura, e menos do que castanha juntei-lhe um alho picado, e posteriormente tomate. Enquanto estas coisas todas fremiam juntas, tratei do pimento, e cortei-o aos bocadinhos pequeninos.
Numa panela entre o grelhador e a frigideira cozi quinoa humanitária, uma aldrabice como outra qualquer (o humanitário. Da quinoa gosto).
Assim que o conteúdo da frigideira começou a secar juntei-lhe vinho tinto, e - generosamente - coentros secos em pó, cominhos moídos, pimenta, paprika e sementes de papoila; mexi bem e acrescentei os bocados de chouriço, que esperavam, sagement, num pires ao lado do fogão. Posteriormente viria a acrescentar o pimento, mas disso não tinha ainda a certeza.
No mesmo grelhador assei uma febra de porco ou duas. Pus tudo na mesa, separadamente, com o piri-piri habitual, e uma botelha de Quinta de Saes 2006 (suponho).
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Receitas
Excessos
Há uma mistura de whisky em excesso com Jimi Hendrix excessivamente alto que me persegue, desde jovem.
E de Patti Smith com qualquer outra substância.
E de Patti Smith com qualquer outra substância.
Trutas de Escabeche
"Trutas palmeiras, escamadas e amanhadas; colocam-se num tacho, cobrem-se com duas partes de azeite e três de um bom vinagre de vinho, alho esmagado, folha de louro, salsa, uns grãos de pimenta preta e sal. Cozem em lume brando, e deixam-se arrefecer no molho. Servem-se com batatas cozidas com a pele e um tinto jovem e andarilho".
Receita do Público.
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Receitas
Presente
Deve haver qualquer coisa de errado com o presente: só é bom para as gerações passadas (às vezes) e as futuras (quase sempre).
Arrogância
Há qualquer coisa de fascinante na arrogância: por vezes atrai-me, por vezes repugna-me. Gosto da arrogância interior, mas detesto a que despreza, ou troça, ou insulta, os outros.
Fragmento
"...aujourd'hui je suis allé naviguer, et la vie change, presque - suffisament, en tout cas, pour penser à toi, et avoir envie de t'envoyer ce baiser, silencieux et sans retour".
Para a frente
Uma vez ofereceram-me um kit completo de casa de banho: um sabonete, uma pasta de dentes, um toalhete, uma escova de dentes.
Como eu lavo os dentes e tomo duche, impreterivelmente, uma vez por semana (mesmo quando não é realmente preciso) não interpretei esse presente como uma indicação qualquer de que devia lavar-me com mais frequência (conheço muita gente que toma banho duas ou mesmo três vezes por semana. Quanto a mim é um desperdício de água).
Uma vez, devo reconhecê-lo, ofereci uma pasta de dentes – mas só a pasta, note-se – a uma jovem senhora que conheci na Rússia. Ela era linda, linda, linda de se morrer e pedir mais, mas não devia lavar os dentes havia muito tempo, porque os tinha verdes, um verde-escuro como as algas que, em miúdo, tanto me impressionavam na Praia das Avencas. Sentiu-se ofendida, mas eu expliquei-lhe, sem agressividade nem desprezo, que sendo ela bonita como era, os dentes esverdeados estragavam tudo. Amuou, mas enfim, lá aceitou, e ao fim de três ou quatro dias tinha os dentes reluzentes.
Foi uma das minhas maiores paixões, apesar de não me ser muito fiel. Aliás, não era nada fiel, e ainda menos o foi a partir do dia em que os dentes lhe ficaram brancos. Mas eu não me importava: na realidade, estava ali só de passagem, e nunca, nunca, deixei as paixões toldar-me o raciocínio. Claro que é sempre motivo de orgulho, para um homem, apresentar-se frente aos seus amigos (ou colegas, naquele caso) com uma mulher bonita – e de vergonha se essa mulher o trair. Mas eu não me importava: tomara eles, serem enganados por uma mulher tão perfeita como era a minha Viktoria. As deles também os enganavam, de certeza, mas eram muito mais feias.
Acabámos por ficar naquele porto quase cinco meses, e a minha paixão pela Viktoria nunca desfaleceu. Amava-a muito, muito – mas não loucamente: quando me pediu para casar com ela, porque queria sair da Rússia, falei-lhe no Dostoievski, no Pushkin (ela costumava declamar-me poemas dele, em Russo. Não percebia nada, mas achava muito bonito, muito comovente), no Maïakovski, no Gogol (não gostava, nunca gostei, mas foi o que me ocorreu), no Tolstoi, na história grandiosa do país dela, e disse-lhe que não. Claro que quando me vim embora lhe ofereci uma máquina fotográfica, uma Zenith.
E às minhas outras “namoradas” também ofereci qualquer coisa de valioso - na verdade, as “tropelias” da Viktoria a certa altura começaram a incomodar-me, mas não conseguia separar-me dela: era bonita demais, e era actriz, representava muito bem, lia os poemas do Pushkin com uma emoção fora do comum – imaginem, para eu não perceber nada e mesmo assim ficar comovido... Por isso resolvi arranjar outra companheira, para que os meus colegas deixassem de se rir de mim.
A primeira que me ocorreu foi a mulher do padeiro, uma senhora um bocadinho gorda e muito “dada”, mas depois pensei que não ficava bem, namoriscar com a mulher de um colega de bordo, mesmo que todos o fizessem. Acabei por optar por uma senhora da Seaman’s House, muito grande e com um nariz um bocadinho cavalar, mas enfim, boa companhia. E essa nunca me pediu em casamento, reparem – aliás, nem queria aceitar o meu presente de despedida, mas eu lá insisti e ela acabou por escolher um gravador de fitas, não sei quantas pistas, uma coisa moderna e sofisticada para a altura, considerando que estávamos na Rússia soviética.
A verdade é que gosto de lavar os dentes, quando acordo, todos os sábados de manhã, logo a seguir ao duche. Escolho muito bem a pasta dentífrica – um tubo dura quase um ano, mais vale perder um bocadinho de tempo e escolher uma boa a passar um ano inteiro com uma coisa qualquer horrível. Claro que me podem perguntar: “porque não compras uma de que tenhas gostado?”. “Simples”, responderia: “porque gosto de variar”.
É por isso que, a seguir ao duche, vou dar um passeio de bicicleta - mas raramente repito um itinerário inteiro: mudo sempre qualquer coisa, mesmo se o trajecto geral (sair de casa, ir até ao Guincho e voltar) é o mesmo todas as semanas, quer chova quer faça sol.
Não gosto de monotonia, na minha vida, e por isso não sou, por exemplo, casado – aliás não me importei nada, quando a senhora que me ofereceu o kit de banho se foi embora, ao fim de quase um ano de vida comum: por muito que eu gostasse dela, e gostava, a ideia de acordar todos os dias com a mesma pessoa ao lado fazia-me calafrios.
Agora frequento uma prostituta: é verdade que é a mesma todas as quartas-feiras – mas, reconhecerão, uma vez por semana não é a mesma coisa que todos os dias. E eu gosto de variar, mas dentro de certos limites, claro. Não é a mesma coisa, reconheço: a vida de família falta-me, e chego mesmo, por vezes, a sofrer um bocadinho com a solidão. Mas faço os possíveis para que passem depressa, esses momentos de dor e lágrimas. Tento não me lembrar do passado, não pensar na Viktoria, nem na senhora da pasta de dentes – cozinhava tão bem, não imaginam, e era culta, tinha um sentido de humor magnífico – não pensar nas conversas sobre literatura com as quais aprendia tantas coisas tão bonitas, e olho para a frente, só para a frente. “Para a frente é que é o caminho”, dizia o meu pai, quando qualquer coisa lhe corria mal (o que era frequente, infelizmente).
E eu sigo os conselhos dele: olhar para a frente, não para trás, nem para os lados, nem para dentro; e avançar, avançar sempre, “contra os canhões, marchar, marchar”, não é isso que diz o nosso hino nacional?
Como eu lavo os dentes e tomo duche, impreterivelmente, uma vez por semana (mesmo quando não é realmente preciso) não interpretei esse presente como uma indicação qualquer de que devia lavar-me com mais frequência (conheço muita gente que toma banho duas ou mesmo três vezes por semana. Quanto a mim é um desperdício de água).
Uma vez, devo reconhecê-lo, ofereci uma pasta de dentes – mas só a pasta, note-se – a uma jovem senhora que conheci na Rússia. Ela era linda, linda, linda de se morrer e pedir mais, mas não devia lavar os dentes havia muito tempo, porque os tinha verdes, um verde-escuro como as algas que, em miúdo, tanto me impressionavam na Praia das Avencas. Sentiu-se ofendida, mas eu expliquei-lhe, sem agressividade nem desprezo, que sendo ela bonita como era, os dentes esverdeados estragavam tudo. Amuou, mas enfim, lá aceitou, e ao fim de três ou quatro dias tinha os dentes reluzentes.
Foi uma das minhas maiores paixões, apesar de não me ser muito fiel. Aliás, não era nada fiel, e ainda menos o foi a partir do dia em que os dentes lhe ficaram brancos. Mas eu não me importava: na realidade, estava ali só de passagem, e nunca, nunca, deixei as paixões toldar-me o raciocínio. Claro que é sempre motivo de orgulho, para um homem, apresentar-se frente aos seus amigos (ou colegas, naquele caso) com uma mulher bonita – e de vergonha se essa mulher o trair. Mas eu não me importava: tomara eles, serem enganados por uma mulher tão perfeita como era a minha Viktoria. As deles também os enganavam, de certeza, mas eram muito mais feias.
Acabámos por ficar naquele porto quase cinco meses, e a minha paixão pela Viktoria nunca desfaleceu. Amava-a muito, muito – mas não loucamente: quando me pediu para casar com ela, porque queria sair da Rússia, falei-lhe no Dostoievski, no Pushkin (ela costumava declamar-me poemas dele, em Russo. Não percebia nada, mas achava muito bonito, muito comovente), no Maïakovski, no Gogol (não gostava, nunca gostei, mas foi o que me ocorreu), no Tolstoi, na história grandiosa do país dela, e disse-lhe que não. Claro que quando me vim embora lhe ofereci uma máquina fotográfica, uma Zenith.
E às minhas outras “namoradas” também ofereci qualquer coisa de valioso - na verdade, as “tropelias” da Viktoria a certa altura começaram a incomodar-me, mas não conseguia separar-me dela: era bonita demais, e era actriz, representava muito bem, lia os poemas do Pushkin com uma emoção fora do comum – imaginem, para eu não perceber nada e mesmo assim ficar comovido... Por isso resolvi arranjar outra companheira, para que os meus colegas deixassem de se rir de mim.
A primeira que me ocorreu foi a mulher do padeiro, uma senhora um bocadinho gorda e muito “dada”, mas depois pensei que não ficava bem, namoriscar com a mulher de um colega de bordo, mesmo que todos o fizessem. Acabei por optar por uma senhora da Seaman’s House, muito grande e com um nariz um bocadinho cavalar, mas enfim, boa companhia. E essa nunca me pediu em casamento, reparem – aliás, nem queria aceitar o meu presente de despedida, mas eu lá insisti e ela acabou por escolher um gravador de fitas, não sei quantas pistas, uma coisa moderna e sofisticada para a altura, considerando que estávamos na Rússia soviética.
A verdade é que gosto de lavar os dentes, quando acordo, todos os sábados de manhã, logo a seguir ao duche. Escolho muito bem a pasta dentífrica – um tubo dura quase um ano, mais vale perder um bocadinho de tempo e escolher uma boa a passar um ano inteiro com uma coisa qualquer horrível. Claro que me podem perguntar: “porque não compras uma de que tenhas gostado?”. “Simples”, responderia: “porque gosto de variar”.
É por isso que, a seguir ao duche, vou dar um passeio de bicicleta - mas raramente repito um itinerário inteiro: mudo sempre qualquer coisa, mesmo se o trajecto geral (sair de casa, ir até ao Guincho e voltar) é o mesmo todas as semanas, quer chova quer faça sol.
Não gosto de monotonia, na minha vida, e por isso não sou, por exemplo, casado – aliás não me importei nada, quando a senhora que me ofereceu o kit de banho se foi embora, ao fim de quase um ano de vida comum: por muito que eu gostasse dela, e gostava, a ideia de acordar todos os dias com a mesma pessoa ao lado fazia-me calafrios.
Agora frequento uma prostituta: é verdade que é a mesma todas as quartas-feiras – mas, reconhecerão, uma vez por semana não é a mesma coisa que todos os dias. E eu gosto de variar, mas dentro de certos limites, claro. Não é a mesma coisa, reconheço: a vida de família falta-me, e chego mesmo, por vezes, a sofrer um bocadinho com a solidão. Mas faço os possíveis para que passem depressa, esses momentos de dor e lágrimas. Tento não me lembrar do passado, não pensar na Viktoria, nem na senhora da pasta de dentes – cozinhava tão bem, não imaginam, e era culta, tinha um sentido de humor magnífico – não pensar nas conversas sobre literatura com as quais aprendia tantas coisas tão bonitas, e olho para a frente, só para a frente. “Para a frente é que é o caminho”, dizia o meu pai, quando qualquer coisa lhe corria mal (o que era frequente, infelizmente).
E eu sigo os conselhos dele: olhar para a frente, não para trás, nem para os lados, nem para dentro; e avançar, avançar sempre, “contra os canhões, marchar, marchar”, não é isso que diz o nosso hino nacional?
3.11.07
Centro Comercial
Bem vistas as coisas, vir jantar a um restaurante brasileiro quando na segunda-feira volto para Salvador é um pouco estúpido. Tanto mais que o restaurante é medíocre. Mas as coisas nem sempre são bem vistas - perguntem aos outros clientes do restaurante, empregadas de escritório em busca de exótico no centro comercial, velhos solitários que dividem a quantidade de carne que aqui podem comer pelo preço que vão pagar, e acham boa a relação, e brasileiros à procura de um cheirinho de casa, ersatz mas barato.
A empregada não é brasileira, é panamiana, e é muito bonita. Fez-me lembrar uma prostituta que conheci, um dia, em Balboa, mesmo antes de passar o Canal. Àquela mandei-a embora, à procura de melhores clientes; a esta, falei-lhe do lago Gatún, que é lindo, e dela, que também é. Há muitos anos tive uma namorada que me mandou passear por excesso de amor. Excesso de amor no sentido dela para mim: ela amava-me, afirmava, demasiado, e isso não era “saudável”. Eu dizia-lhe para não se preocupar: à medida que me fosse conhecendo, amar-me-ia menos, muito menos. Mas ela não foi em histórias: “o amor não deve ser uma prisão”, explicou-me gravemente, antes de me dizer: “por favor não volte a telefonar-me”. Não voltei. Hoje, anos passados, envio-lhe por vezes um SMS, que ignoro se ela recebe. Nunca me respondeu. Nunca nos chegámos a tratar por tu, apesar de nos termos amado furiosa, profundamente.
É por isso que agora só me dedico a seduzir empregadas do centro comercial: a essas, tratamo-las por tu à segunda cerveja, e ao café sabemos se é sim ou não. Como elas não querem amor – e, de resto, nem acreditariam, se eu lhes dissesse que as amava – as fontes de conflito são outras: mandam-me passear quando descobrem que não sou o velho gordo e rico que elas imaginavam: sou velho e gordo, sim (isso elas vêem logo), mas sem um chavo.
Não me importo muito: em geral, quando elas descobrem já me fartei delas, pelo que a “separação” não me custa muito. Mas esta panamiana é diferente, vejo-lhe no olhar, e no corpo: é um bocadinho gorda demais para o meu gosto – num casal, um de cada coisa chega: um homem, uma mulher, um velho, um gordo, um teso, um feio, etc. – e mais inteligente do que a maioria das outras. Pelo menos é o que me parece.
Gosto muito dela. Na realidade já vim várias vezes a este restaurante só para a ver, para ver os seus irónicos olhos verdes, e imaginar-lhe os seios, volumosos. Hoje falei-lhe, pela primeira vez, e até a convidei para vir passear de barco, o meu truque de último recurso, a minha arma atómica, a que reservo para casos muito especiais. Ela disse que não.
A empregada não é brasileira, é panamiana, e é muito bonita. Fez-me lembrar uma prostituta que conheci, um dia, em Balboa, mesmo antes de passar o Canal. Àquela mandei-a embora, à procura de melhores clientes; a esta, falei-lhe do lago Gatún, que é lindo, e dela, que também é. Há muitos anos tive uma namorada que me mandou passear por excesso de amor. Excesso de amor no sentido dela para mim: ela amava-me, afirmava, demasiado, e isso não era “saudável”. Eu dizia-lhe para não se preocupar: à medida que me fosse conhecendo, amar-me-ia menos, muito menos. Mas ela não foi em histórias: “o amor não deve ser uma prisão”, explicou-me gravemente, antes de me dizer: “por favor não volte a telefonar-me”. Não voltei. Hoje, anos passados, envio-lhe por vezes um SMS, que ignoro se ela recebe. Nunca me respondeu. Nunca nos chegámos a tratar por tu, apesar de nos termos amado furiosa, profundamente.
É por isso que agora só me dedico a seduzir empregadas do centro comercial: a essas, tratamo-las por tu à segunda cerveja, e ao café sabemos se é sim ou não. Como elas não querem amor – e, de resto, nem acreditariam, se eu lhes dissesse que as amava – as fontes de conflito são outras: mandam-me passear quando descobrem que não sou o velho gordo e rico que elas imaginavam: sou velho e gordo, sim (isso elas vêem logo), mas sem um chavo.
Não me importo muito: em geral, quando elas descobrem já me fartei delas, pelo que a “separação” não me custa muito. Mas esta panamiana é diferente, vejo-lhe no olhar, e no corpo: é um bocadinho gorda demais para o meu gosto – num casal, um de cada coisa chega: um homem, uma mulher, um velho, um gordo, um teso, um feio, etc. – e mais inteligente do que a maioria das outras. Pelo menos é o que me parece.
Gosto muito dela. Na realidade já vim várias vezes a este restaurante só para a ver, para ver os seus irónicos olhos verdes, e imaginar-lhe os seios, volumosos. Hoje falei-lhe, pela primeira vez, e até a convidei para vir passear de barco, o meu truque de último recurso, a minha arma atómica, a que reservo para casos muito especiais. Ela disse que não.
2.11.07
Se eu quisesse
Hoje fui engraxar os sapatos. É um acto de civilidade, engraxar os sapatos. Eu, cá por mim, penso que os sapatos devem ser engraxados uma vez por semana - semana de uso, note-se, que é, naturalmente, diferente da semana de calendário. Se considerarmos que um senhor deve ter, pelo menos, dois pares de sapatos (refiro-me, escusado é perguntarem, a sapatos pretos de atacador. Sou contra o uso, na cidade, durante as horas de trabalho, de outro tipo de sapatos, sejam eles sapatilhas, sapatos de vela, ou até mocassins, mesmo que pretos) dois pares de sapatos, dizia eu, usados alternadamente, cada um desses pares deve ser engraxado uma vez de quinze em quinze dias.
Pessoalmente, aconselho o senhor que engraxa sapatos no British Bar, ao Cais do Sodré. Receio muito o que vai acontecer, quando ele, que já não é novo, longe disso, morrer, coitado. Devo dizer que não é só ele que me leva ao British Bar: o beer shandy, os croquetes e ter sabido, já lá vão uns anos, que era o bar favorito do José Cardoso Pires são outras das razões. O British Bar é um sitío muito selecto, tem uns empregados correctíssimos, e o beer shandy, feito com verdadeira ginger beer, é único, na nossa cidade. Ainda por cima, fica ao lado de uma loja de jornais onde posso comprar, quotidianamente, o Financial Times; e uma vez por semana o Shipping News.
Hoje reparei que tinha levado os meus mocassins pretos. Compreende-se: é um dia quase feriado, e eu sabia que estaria sozinho no escritório. Os mocassins não devem ser usados no trabalho, já o disse, creio. Reservo-os para as compras de sábado de manhã, para a Missa de domingo e para os jantares em casa do meu cunhado, de quem não gosto muito (uma vez até levei mocassins castanhos, para um jantar em casa dele... Castanhos! Mas depois reparei que muito mais do que ele, era eu que estava pouco à vontade, e não voltei a repetir a graça).
No meu escritório temos pessoas que se vestem de todos os modos e feitios – alguns até vão de sapatilhas para o trabalho. Não lhes digo nada, claro, mas faço-lhes ver que desaprovo inteira, frontalmente. Felizmente não há mulheres – enfim, há só uma, mas é uma senhora de idade, secretária do patrão (já o era do pai dele), e não comete faltas de gosto. Também, verdade seja dita, raramente a vemos, nós, os que trabalhamos no rés-do-chão. É uma empresa de shipping: tratamos de tudo o que se relacione com o transporte marítimo de cargas secas – desde o fretamento de um navio até ao transbordo de um contentor, fazemos tudo.
Sou o responsável pelos cálculos de demurrage: são os fees que debitamos aos nossos clientes pelas estadias nos portos mais prolongadas do que o acordado. É um lugar importante: o demurrage pode contribuir com uma fatia significativa do lucro de uma operação; muitas vezes, será mesmo a única fonte de proveitos, quando, por exemplo, se acorda um preço e entretanto os preços do frete subiram, por causa de uma guerra, ou um tremor de terra (a mim nunca aconteceu, felizmente, mas é do conhecimento de todos os que trabalham em shipping). Não é de admirar que o patrão – enfim, o filho do patrão, para mim ele será sempre o filho do patrão – me tenha confiado este lugar no dia em que o pai morreu. Antes disso, estava no frete, mas é um lugar muito aborrecido, porque as regras nunca são muito claras, e estamos constantemente a ser enganados.
No escritório, um dos grandes temas de conversa, para além do futebol e dos carros, são as férias. Há os que preferem ir de carro, porque assim, dizem, “fazem as férias que querem: de Lisboa a Florença e volta em dez dias, com passagem por Paris (“Não vejo nada? Mas eu já saí daqui com a intenção de não parar. Em Florença, por exemplo, vi os monumentos todos. Mas não entrei em nenhum.”) e os que preferem o avião: “o carro já não compensa. Vais a Paris 3 noites 4 dias, ida e volta, por 70 contos” (este ainda fala em contos, coitado). Eu não: todos os anos vou a Benidorme, duas semanas em Agosto. Sem falhar, há vinte anos. Aquilo já não está a mesma coisa, claro – mas para quê mudar? Os outros sítios também já não são o que eram há vinte anos. E é barato, além disso: camioneta, meia-pensão, uma cerveja de vez em quando e não gasto mais de 450 euros. Isso sim, são férias, mesmo se por vezes a praia está demasiado cheia. E tive que mudar de pensão: a que usei durante dez anos estava perto da praia e ficou muito cara.
Cá em Portugal, uma vez por semana, vou andar a pé: apanho o comboio da linha de Cascais e vou andar no Paredão. É muito bonito (e aí sim, levo as minhas sapatilhas brancas). Parece que estamos em férias, aquele mar todo, tão azul e as velas dos barcos à vela. Muitas vezes vejo navios fundeados, à espera de piloto. Não quiseram entrar para não pagar as taxas de fim-de-semana. Cada vez que os vejo pergunto-me quem terá feito os contratos de fretamento. Será que o demurrage inclui os fins-de-semana?
Ao contrário do que dizem os meus colegas, não sou avaro: tenho cuidado com o dinheiro, é tudo. Tenho as minhas poupanças no banco, que vou deixar a uma instituição de caridade se me acontecer alguma coisa antes de tempo, longe vá o agoiro. E não desperdiço. Odeio o desperdício. Até no emprego, recuso o computador novo que o filho do patrão me quer oferecer há não sei quanto tempo – para quê? Uma calculadora, uma folha de papel e um lápis chegam perfeitamente para fazer o meu trabalho (“oferecer” é uma maneira de dizer, claro: o computador é dele). Os meus colegas riem-se de mim, claro que sei, pela calada.
Mas não me importo: se eu quisesse, era feliz. Sei o suficiente de demurrage para abrir uma universidade; conheço as regras do bom gosto e da boa educação, sou culto, tenho um pé-de-meia no banco e uma vez por ano vou de férias. Sou conhecido de todos e todos me respeitam. Bastava eu querer, e seria o homem mais feliz da terra.
Pessoalmente, aconselho o senhor que engraxa sapatos no British Bar, ao Cais do Sodré. Receio muito o que vai acontecer, quando ele, que já não é novo, longe disso, morrer, coitado. Devo dizer que não é só ele que me leva ao British Bar: o beer shandy, os croquetes e ter sabido, já lá vão uns anos, que era o bar favorito do José Cardoso Pires são outras das razões. O British Bar é um sitío muito selecto, tem uns empregados correctíssimos, e o beer shandy, feito com verdadeira ginger beer, é único, na nossa cidade. Ainda por cima, fica ao lado de uma loja de jornais onde posso comprar, quotidianamente, o Financial Times; e uma vez por semana o Shipping News.
Hoje reparei que tinha levado os meus mocassins pretos. Compreende-se: é um dia quase feriado, e eu sabia que estaria sozinho no escritório. Os mocassins não devem ser usados no trabalho, já o disse, creio. Reservo-os para as compras de sábado de manhã, para a Missa de domingo e para os jantares em casa do meu cunhado, de quem não gosto muito (uma vez até levei mocassins castanhos, para um jantar em casa dele... Castanhos! Mas depois reparei que muito mais do que ele, era eu que estava pouco à vontade, e não voltei a repetir a graça).
No meu escritório temos pessoas que se vestem de todos os modos e feitios – alguns até vão de sapatilhas para o trabalho. Não lhes digo nada, claro, mas faço-lhes ver que desaprovo inteira, frontalmente. Felizmente não há mulheres – enfim, há só uma, mas é uma senhora de idade, secretária do patrão (já o era do pai dele), e não comete faltas de gosto. Também, verdade seja dita, raramente a vemos, nós, os que trabalhamos no rés-do-chão. É uma empresa de shipping: tratamos de tudo o que se relacione com o transporte marítimo de cargas secas – desde o fretamento de um navio até ao transbordo de um contentor, fazemos tudo.
Sou o responsável pelos cálculos de demurrage: são os fees que debitamos aos nossos clientes pelas estadias nos portos mais prolongadas do que o acordado. É um lugar importante: o demurrage pode contribuir com uma fatia significativa do lucro de uma operação; muitas vezes, será mesmo a única fonte de proveitos, quando, por exemplo, se acorda um preço e entretanto os preços do frete subiram, por causa de uma guerra, ou um tremor de terra (a mim nunca aconteceu, felizmente, mas é do conhecimento de todos os que trabalham em shipping). Não é de admirar que o patrão – enfim, o filho do patrão, para mim ele será sempre o filho do patrão – me tenha confiado este lugar no dia em que o pai morreu. Antes disso, estava no frete, mas é um lugar muito aborrecido, porque as regras nunca são muito claras, e estamos constantemente a ser enganados.
No escritório, um dos grandes temas de conversa, para além do futebol e dos carros, são as férias. Há os que preferem ir de carro, porque assim, dizem, “fazem as férias que querem: de Lisboa a Florença e volta em dez dias, com passagem por Paris (“Não vejo nada? Mas eu já saí daqui com a intenção de não parar. Em Florença, por exemplo, vi os monumentos todos. Mas não entrei em nenhum.”) e os que preferem o avião: “o carro já não compensa. Vais a Paris 3 noites 4 dias, ida e volta, por 70 contos” (este ainda fala em contos, coitado). Eu não: todos os anos vou a Benidorme, duas semanas em Agosto. Sem falhar, há vinte anos. Aquilo já não está a mesma coisa, claro – mas para quê mudar? Os outros sítios também já não são o que eram há vinte anos. E é barato, além disso: camioneta, meia-pensão, uma cerveja de vez em quando e não gasto mais de 450 euros. Isso sim, são férias, mesmo se por vezes a praia está demasiado cheia. E tive que mudar de pensão: a que usei durante dez anos estava perto da praia e ficou muito cara.
Cá em Portugal, uma vez por semana, vou andar a pé: apanho o comboio da linha de Cascais e vou andar no Paredão. É muito bonito (e aí sim, levo as minhas sapatilhas brancas). Parece que estamos em férias, aquele mar todo, tão azul e as velas dos barcos à vela. Muitas vezes vejo navios fundeados, à espera de piloto. Não quiseram entrar para não pagar as taxas de fim-de-semana. Cada vez que os vejo pergunto-me quem terá feito os contratos de fretamento. Será que o demurrage inclui os fins-de-semana?
Ao contrário do que dizem os meus colegas, não sou avaro: tenho cuidado com o dinheiro, é tudo. Tenho as minhas poupanças no banco, que vou deixar a uma instituição de caridade se me acontecer alguma coisa antes de tempo, longe vá o agoiro. E não desperdiço. Odeio o desperdício. Até no emprego, recuso o computador novo que o filho do patrão me quer oferecer há não sei quanto tempo – para quê? Uma calculadora, uma folha de papel e um lápis chegam perfeitamente para fazer o meu trabalho (“oferecer” é uma maneira de dizer, claro: o computador é dele). Os meus colegas riem-se de mim, claro que sei, pela calada.
Mas não me importo: se eu quisesse, era feliz. Sei o suficiente de demurrage para abrir uma universidade; conheço as regras do bom gosto e da boa educação, sou culto, tenho um pé-de-meia no banco e uma vez por ano vou de férias. Sou conhecido de todos e todos me respeitam. Bastava eu querer, e seria o homem mais feliz da terra.
1.11.07
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