No fundo, trata-se apenas de exprimir a complexidade e a beleza da vida com um mínimo de pentassílabos.
Não é fácil: quanto menos sílabas mais trabalho.
No fundo, trata-se apenas de exprimir a complexidade e a beleza da vida com um mínimo de pentassílabos.
Não é fácil: quanto menos sílabas mais trabalho.
Uma palavra que não me larga o espírito: vastidão. Da gratidão: sou capaz de passar por baixo de escadas; da sorte: tenho amigos que me ajudam nas passagens; de tudo: o meu mapa-mundo dos afectos é vasto e profundo e tudo o que ele contém é meu, está vivo e tangível. Pode a maré estar baixa, vazia quanto quiser que a carta não mostra nunca o fundo. Pode por vezes ver-se um baixio ou outro, um escolho não assinalado, uma corrente adversa, um dia sem vento. Mas é tão pouco, comparado com a vastidão de tudo o que ela contém.
O Porto, por exemplo. Tenho andado a tentar perceber porque tanto gosto desta cidade, que dantes tanto detestava. Tem um efeito apaziguante em mim. A juventude das pessoas - não sei qual a diferença entre as pirâmides etárias do Porto e de Lisboa, mas estaria tentado a apostar que aqui há muito mais jovens do que em Lisboa. A limpeza - esta cidade é limpa, pelo menos nas áreas por onde a percorro. As pessoas: parecem-me menos façanhudas, os semblantes menos cerrados, há mais risos.
Não sei. Pode ser uma falsa impressão, sou-lhes propenso. O que não tem nada de falso, isso posso afiançar, é o gosto que tenho cada vez que aqui estou.
Verdade seja dita não faço muito. Dou descanso à anca e deixo entrar a calma que vejo em tudo o que me rodeia. Vasto programa, juro, apesar de não parecer. A calma, a alegria que vejo nas pessoas, a beleza têm de desalojar a merda toda que se tem acumulado estes dias todos. Vasta sorte: esta coabita bem com a gratidão. Quando um dia morrer espero que a minha última palavra seja «Obrigado». Ou «Amo-te vida, apesar de todas as merdas que me fizeste.» Percebo finalmente de que ri a hiena da história: da vida.
Esperam-me dois ou três dias de férias, que serão passados entre o hotel, o Aduela, um bar cujo nome não recordo e fica nas redondezas, o Papagaio - descoberta recente, abençoada - o Piolho e pouco mais. Tentarei não ir à feira: não há pior tortura do que ter livros à frente e não os poder comprar. Talvez chova a tempo de ainda lá dar um salto. Que se lixe: estou de férias, estou de purga, estou feliz. O resto é basicamente ruído de fundo, como o barulho de um rato que corre debaixo do palco durante a prestação da orquestra sinfónica.
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Há momentos nestas ruas que me transportam para um quarto de criança que fizesse construções com Legos, Mecanos e todas as outras marcas de jogos de cosntrução infantis. É uma mistura alegre de estilos, harmoniosa, leve. Como em Espanha, de resto.
O que o tempo muda: alegria, leveza, harmonia são as últimas coisas que pensaria um dia associar ao Porto.
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Quanto mais penso na morte mais grato me sinto.
(Para a M. B., amiga de muitas escadas, pontes e cartas.)
O Don Vivo é o diário de alguém cujos dias são vastos, altos, baixos, curtos, reais, sonhados, imaginados, projectados, descritos, inventados, planeados, improvisados e por aí fora.
Quando me perguntam sobre o que é, respondo: "disparates", mas o que na verdade quero dizer é "vida".
Venho ao Aduela depois de uma sessão catastrófica na feira do livro. Entre as duas ficou uma soberba conversa com uma amiga que vejo ocasionalmente, com quem discuto no FB frequentemente e de quem gostarei sempre. Uma conversa frente a frente enche os tanques de amizade muito mais e melhor do que mil diálogos num monitor. Ou, dito de outra forma: numa conversa, mais vale ter de permeio dois copos do que dois monitores. Vimos a pé, ela para o metro eu para o hotel que aqui no Porto me faz de casa. Depois venho ao Aduela.
A maré já nem baixa está: está vazia, maré baixa de Equinócio; a anca lixa-me o juízo e o andar; sinto uma conjuntivite a chocar - hoje percebi que me vêm da máscara - e apesar de tudo regozijo-me. Tenho sorte, posso andar debaixo de escadas, como cantava uma senhora gira há muitos anos.
A música no bar está alta, mas hoje gosto dela - é blues eléctrico, Chicago. Ao contrário de ontem, que era uma porcaria sem nome. A música só está demasiado alta quando não se gosta dela. Ah, e o almoço não foi grande coisa.
Que chatice, nada consegue irritar-me! Verdade seja dita: o vinho da casa é óptimo, as pequenas (infelizmente de outras casas) são lindas, não tarda chove e a maré enche, a conjuntivite trata-se em menos de nada, a dor na anca não tardará mais de uns meses a desvanecer-se, a merda da Covid idem.
É em dias assim que percebo os católicos. Com uma diferença: não preciso de esperar pelo outro mundo. Basta-me esperar por outros dias.
Há uma discrepância enorme, abissal, entre a percepção que a maioria das pessoas faz do vírus e o que os números dizem. Isto em si não é particularmente grave, todos sabemos que o homem é um animal de percepções. Um animal pode fazer e faz muitas coisas que o prejudicam, mas não vê desertos onde há pastos verdes e frescos. O homem gosta de imaginar tragédias onde não as há. Para o animal, o medo é um simples mecanismo de defesa. Para o homem, é uma necessidade ontológica. Há alguma religião que não se baseie no medo? Até o budismo ameaça de downgrading na próxima reencarnação quem não se portar bem nesta. O medo, na humanidade, deixou de ser apenas uma estratégia de defesa, um aviso ao corpo para este produzir adrenalina em doses suplementares. A adrenalina é uma droga barata e o homem viciou-se nela, uns de uma forma outros doutra.
(Enfim, barata é uma maneira de dizer. É barato a cada pessoa produzi-la, mas os custos colectivos podem ser muito elevados, como se vê.)
O problema é que a humanidade tem tendência a impor as suas percepções aos outros como se fossem verdades absolutas e não são. São verdades relativas. É óbvio que acredito na boa-fé de quem me diz na rua para pôr a máscara. Essa pessoa está intimamente persuadida de que aquele bocado de pano (ou outra matéria qualquer, aquilo não é pano) lhe vai salvar a vida. Infelizmente para mim, ela foi buscar essa convicção algures e a impressão de que ma pode impor ao governo.
É pena não podermos mudar o "algures" - a liberdade da imprensa é fundamental - e termos tão pouco controle sobre o governo.
Hoje ouvi uma palermice de um empregado de mesa que deixa a do título a léguas:
- Posso sentar-me naquela mesa?
- Na cadeira pode.
Habito esta carcaça que pouco a pouco se desfaz. É como viver dentro de um terramoto ao retardador. Aquela semana em Atenas depois do sismo foi uma antevisão do que me espera: tudo colapsa à minha volta menos o M. e respectiva, o dono da pensão (nessa altura não havia hostels), eu. Éramos poucos. A cidade desfeita, demolida, habitada por meia dúzia de resistentes (no meu círculo. Outros haveria). Não por heroísmo ou estoicismo. Nada disso.
Questão de gozo, de revolta, de vida.
Lembro-me do café com brandy nas tascas da Plaka... Lembro-me de mais coisas do que agora quero aqui contar.
Hoje vejo este corpo que se desfaz e o vinho que lhe falta, coitado e penso na Plaka. Estúpido de mim!
Na verdade, o problema é relativamente simples: consiste em digerir o facto ineluctável de que o mundo em que um gajo cresceu está a ruir. Todos os mundos em que todos os gajos cresceram ruíram e ficaram melhores (salvo raríssimas excepções). E isto desde que a humanidade existe.
Só não percebo o que pode ficar melhor a partir desta merda, mas suspeito que de todas as formas não estarei cá para ver.
Diga-se o que se disser, é no Antiquari que a boémia ainda tem sentido. Pouco mas tem. Aqui fica uma homenagem, um agradecimento e uma dor: tenho de acordar aqui a bocadinho.
Grosso modo, um homem sabe que não está a fazer tudo mal quando um senhor, verosimilmente maiorquino, de certa idade (ou seja, de uma idade igual ou superior à de um homem) lhe diz que o chapéu é elegante.
Um gajo sabe, obviamente, que o chapéu é elegante. Por isso o comprou, na Sombrereria Casa Juliá, que está para Maiorca como a Casa Ruas está para Lisboa.
Mas vê-lo aprovado por alguém que estereotipadamente não diz nada se puder estar calado... É reconfortante, reconhecei.
Esta "pandemia" mata zero vírgula setenta e duas pessoas em cada milhão de quê...?
Se respondeu formigas está enganado.
Se respondeu asneiras na imprensa também.
Se respondeu pessoas está certo. V. precisa de juntar um milhão e trezentas mil pessoas (contas de cabeça. Espero que os meus amigos matemáticos me corrijam) para ter um morto - normalmente com mais de oitenta anos, obeso, diabético e cardiopata.
Pairar, derivar, ir à ròla... Palavras diferentes para designar basicamente a mesma coisa: não tenho nada em comum com esta gente, não quero ter, não saberia mesmo que quisesse.
É impossível que os políticos não tenham acesso à informação que por aí circula. Se lhe ligam peva não é por serem idiotas, não são. Nem por quererem salvar o Soros / Gates / S. Francisco de Loyola / [introduzir nome de teoria da conspiração preferida].
É para adquirirem um capital político que lhes permita dizer "fizemos tudo o que pudémos", "não houve mais mortes porque tomámos medidas", etc. Quando houver provas irrefutáveis (ou pelo menos fortes, irrefutável não existe em ciência) já estarão na reforma ou no conselho de administração das grandes empresas.
Quem paga esse capital à cabeça somos nós, acreditemos ou não em patranhas. E depois andam aí feitos gado ovino, máscara na cara e "é a lei" na boca. Ou asinino, vá lá saber-se.
"Conheço-os. Não sou um deles." Antes ir à ròla do mar.
Cheira a pataniscas de bacalhau, está um calor infernal, a música alterna entre o bom e o medíocre, os Bailey's esvaziam-se depressa de mais; se alguém consegue escrever nestas condições que ponha o braço no ar. Ou no teclado, ou na caneta, ou na ideia, que às vezes se escrevem coisas bonitas com ela. A porra é passá-las ao papel depois, mas isso é outra história. O papel reduz as ideias que temos quando escrevemos com elas e transforma-as noutras coisas, piores. Por mim, estou-me nas tintas: só ligo ao que fica escrito. O resto leva-o o vento, de quem sou grande amigo - e assim demonstra ele sê-lo meu. Verdade seja dita, tenho a barragem de palavras cheia, não tarda isto começa a entornar. Esta merda deste vírus foi-me para o cérebro, invadiu-o de alto a baixo. Não sei de que cor é, mas se alguém me abrir a mona não encontrará massa cinzenta de certeza. Espero vivamente que alguém descubra a cor desta merda, para saber como chamar à coisa esponjosa que tenho entre as orelhas e por trás dos olhos. Parece-me negra como a estupidez.
Se calhar é.
Ouvir Cecil Taylor num bar é como ouvir uma tempestade ao longe: está lá, quaisquer que sejam as barreiras de som que tenha de atravessar.
As minhas pequenas qualidades bóiam num mar de defeitos e incapacidades como farófias no molho de baunilha. O pouco que sei fazer faço-o bem, não por especial dom mas por ser incapaz de o fazer mal. Sou honesto por falta de imaginação, directo e frontal por não saber mentir como deve ser.
Aprendi com o tempo a conviver com os meus defeitos. Aceito-me apaziguado. Os anos de revolta ou de crença injustificada em super-poderes passaram.
Só há uma coisa em mim contra a qual me revolto, que todos os dias lamento ter de suportar: a incapacidade total de conviver com a estupidez. É um problema grave - pejorado pelo facto de até agora ter vivido num mundo encantado, onde a maioria dos habitantes era inteligente e sabia melhor do que ninguém o que é melhor para si-própria. A coisa que mais me faz sentir a falta do meu Pai é esta. Ele tinha um jeito para lidar com estúpidos... Não é bem verdade. Ele tinha jeito para lidar com toda a gente, incluindo mentecaptos. Eu não. Dou-me bem com a maioria das pessoas que cruzo, mas com a estupidez não há maneira.
Digo isto com pena, tanto mais que vislumbro aqui um sinal de estupidez. Se fosse inteligente isto não aconteceria e teria a confederação de tolos toda atrás de mim.
Vem, querida. Vamos embora. Não deixes que esta sensação de leveza te arraste para o fundo. Não deixes que o peso te impeça de voar.
Oscilamos entre o fundo e o voo, entre o ar e o granito, o silêncio e o tumulto.
Humildemente estendo-me à porta da noite e espero que ela me deixe entrar.
Tantas vezes fico de fora, feito capacho.
Começa a chegar o frio à noite, como dantes no cinema aproximávamos a perna à das pequenas.
Um grande amigo meu diz que só ouve cantoras femininas se forem bonitas. O critério parece-me válido, mas tento estendê-lo à poesia e não sei se funciona: só ler poetas com caras de porteiro de bordel?
São poucos, não dá. Tenho de alargar a malha.
- Querido diário... Ou será antes Querido Don Vivo? Don Diário? Diário Vivo?
- Não me chateies com tanta vida. Estou cansado, homem. Não podes parar de viver? (Em surdina: mas continuando vivo, claro)?
- Queres dizer: viver nas margens de um grande e largo rio tranquilo? Na planície que depois da chuva fica verde? Olhar à janela o Sol beijar a calçada?
- Está calado e cala-te. Não me chateies. Vive onde e como quiseres.
- Vou beber uma cerveja e depois conto-te o meu dia, queres?
- A cerveja quero. O resto dispenso.
Ser capaz de fazer contas de cabeça é provavelmente a competência mais importante para um pobre no supermercado.
Eu tenho orgulho nisso: é o equivalente mental do bilhar às três tabelas.
Dias de aspiração cósmica, liposucção da alma, vida nas bordas de um buraco negro. Dou à costa, encalho em mim, bato na parede e como os desenhos animados se põem a escorrer por ela abaixo, eu escorro por mim. Uma palavra é uma palavra, um mundo um mundo, cada um de nós um universo. Bolas de bilhar. Esta imagem, que me irrompeu aos quinze anos nunca mais me abandonou. Continuo sem saber quem maneja o taco, mas tenho uma sorte: a mesa é grande e é azul. O resto é irrelevante.
Estudei um pouco, superficialmente, o fenómeno das histerias colectivas do passado, desde a Idade Média ate aos nossos dias. Um dos estudos que li dizia que a adesão das pessoas à histeria era provocada pela esperança num ganho qualquer. Esses ganhos variavam com o contexto, mas estavam sempre lá.
O que me sidera na histeria que agora vivemos é que as pessoas aderem sem a perspectiva de um ganho concreto, palpável. Não morrer? Mas já se sabe quem morre; quem não está nesse grupo não beneficia. Não transmitir? Na rua? No café? Em casa ainda vá que não vá, mas na rua?
Percebo que quem contacta com pessoas de mais de oitenta anos e múltiplas patologias tome precauções; mas os outros?
A primeira ilação é que quem adere a estas fantasias não perde muito (ou não se apercebeu do que vai perder, o que indica umas pistas interessantes). A segunda é que para eles a liberdade não vale muito.
Duas ou três coisas que eu sei dele;
a) É o que é e isso é tudo o que é;
b) É surdo e infértil. Não emprenha pelos ouvidos, por muito que por vezes gostasse;
c) Não alinha em rebanhos, sejam eles de que tipo forem (inscreveu-se uma vez num partido e saiu ao fim de dois meses);
d) Diz e escreve o que pensa e às vezes - nem sempre -pensa o que diz e escreve;
e) Prefere ser como é e ser fodido a foder e não ser quem é;
f) É livre. Sempre foi e sempre o será, por curto que este último «sempre» se revele.
Quem não gosta não come.
Deito-me embrulhado em calor, abraçado à almofada, na esperança de que o sono seja compreensivo e me leve até amanhã.
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Escrever consiste basicamente em eliminar de um texto todas as palavras que podem ser lá postas pelos leitores. Daí a importãncia de um bom rascunho: tem que ter matéria a eliminar.
Hoje fiz as primeiras fotografias desde Caminha. Foram de telefone, não tenho saído com a máquina. Fartei-me de não a usar.
Será que recomecei finalmente a olhar para fora?
Falavam imenso, conversas sem fim. Mas ao contrário do que parecia visto de fora, não dialogavam. As conversas deles eram dois monólogos que juntos não perfaziam um diálogo. Um falava, o outro escutava atentamente. Depois alternavam: o que antes ouvia falava - mas não respondia, falava de outra coisa qualquer - e o outro escutava.
Entendiam-se muito bem. Dois lobos solitários, demasiado velhos para caçar cada um por seu lado.
Para combater a insónia não contem carneiros. Contem palavras, sonhos ou os dias que estatisticamente ainda têm por viver.
Verão que adormecem num instante.
Estas noites que entram por nós dentro como um Caterpillar num monte de terra... Empurram-nos para baixo e para trás, porque não sabemos bem o nosso lugar na noite, na cama, na vida, em tudo quanto é sítio que nos pudesse receber. Não sabemos, essa é que é essa. Abrimos portas atrás de portas na esperança de que não se fechem depressa de mais. Por vezes, algumas acolhem-nos um bocadinho mais de tempo e é com isso que vamos construindo uma casa, uma vida: tempo e portas que se abrem e fecham.
Eu sei. Esta diferença entre a cama e a vida tem sido muito mal abordada. "Quero-te na minha vida, não na minha cama" talvez sirva para engatar miúdas feias da faculdade de Filosofia, Química ou Literatura Céltica. Para engatar mulheres normais acima dos quarenta e cinco anos não funciona, pela razão simples que de vida estão elas fartas.
É preciso encontrar um argumento a meio caminho. "Se vieres para a minha cama esta noite convido-te para a vida". Hummm... Não me cheira. "Se prometeres que te marimbas para a minha vida abro-te a porta da minha cama. Mas só esta noite." ... Não me parece que resulte. É preciso dissociar as duas entidades: cama é cama e vida vida. O resto é conversa de iraoku, como se diz no marinha japonesa. "Ó quida, olhe, vamos a isso? O dia está tão bonito, não acha?'
Como é que se diz "quida" em japonês?
E "quer um lugar na minha vida?"
E depois, de qualquer foma. que dizer-te? Estou em Palma, refaço os meus caminhos - são carreiros que precisam de ser caminhados regularmente - penso em tudo o que caminhei para chegar aqui e em tudo o que terei de caminhar para sair daqui, se um dia quiser.
Este «se» é uma figura de estilo.
A vacina «apareceu» a tempo de salvar os governos: agora, basta-lhes prolongar as «medidas» e esperar. A minha hipótese é que o cisma nunca será resolvido, como o outro cisma, o antigo: as igrejas vão dividir-se entre as pró e as anti-histeria e não haverá números nem dados que convençam os crentes. Tenho um filho «católico» e uma filha «protestante» e sei que a convivência é possível (aspas porque as respectivas religiões se ficaram pelo baptismo, graças a Deus). A minha opinião da humanidade sofrerá um rombo - já sofreu - mas pensando bem é um rombo pequeno: nunca acreditei muito nela. Só fingia que acreditava.
Fica-nos o aviso, esse sim importante: o fascismo está ao virar da esquina. Ao virar do vírus, se preferirem uma aliteração bonita. Ao virar do vírus as pessoas estão prontas a trocar liberdade por «segurança», ciência por crenças, números por adjectivos. Prometeu sobreviverá. Prometeu para sempre. Viva Prometeu.
Pouco a pouco, mergulho na cidade triste. Jantei (jantámos, a armadora e eu) no Gustar e bebi um rum no Antiquari. Mergulho - ou melhor, pedalo - no calor. A transpiração parece-me uma saída em massa dos demónios todos, como se estivesse a expulsar o pior de mim, sabendo claro que nunca o expulsarei todo: esta coligação de calor e glândulas sudoríparas em boa forma é imparável. Não há mal que lhe faça frente.
Estou cansado. Enquanto transpirar demónios está tudo bem.
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A anca lá vai levando gelo. Por agora é o que tenho para lhe dar. Sossego, só de raspão - como sempre foi, de resto: sesta prolongada, cama mais cedo... Nada de mudanças radicais. A ver como é que aquilo responde. Só me apetece cortar a perna e substituí-la por uma nova, igual à que tinha antes de saber contar até sessenta e dois.
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Agora que posso finalmente ver o futuro, parece-me muito longo. Meia dose do que me espera chega e sobra para acabar o que falta.
Só espero é que ninguém se lembre de me ir carregando o alforje.
Pergunto-me se não deveria acrescentar-se a categoria "Pensamento demoníaco" às diferentes categorias de raciocínio que existem.
Consiste em acolher o demónio como uma fatalidade, uma necessidade irrefutável, sem qualquer espécie de estudo, base científica, análise racional.
O diabo diz que... e o que o diabo diz erige-se - é erigido - em verdade irrefragável, impermeável à dúvida e ao questionamento.
Não é a primeira vez na história. Aliás, é tão frequente que na minha leiga opinião faz parte do catálogo da razão humana, ao lado do pensamento mágico e antes do lógico-formal.
Consiste, sobretudo, em aceitar a existência de um demónio todo-poderoso, ubíquo, combatível com mezinhas, máscaras, vacinas, orações, etc. Ou seja, é um pensamento ambivalente. O diabo é todo-poderoso mas com genuflexões, sinais-da-cruz, dietas, obediência e pozinhos vamos dominá-lo. Só falta o óbolo, mas esse não tardará.
A maré está baixa, é certo. Igualmente certo é o desnorte, por muito atenuado que esteja. Ou desoriente, se a palavra existisse. Não existe, mas existe a coisa que ela designaria. Desorientação não é o mesmo, tem demasiadas sílabas. As palavras devem ser concisas e não ter mais letras do que as estrictamente necessárias. Nem as palavras nem nada, com a possível excepção da loucura, que por natureza e definição não pode ser concisa.
Olha a política, que boa seria se não fizesse mais do que o absolutamente necessário. Como está hoje, parece leite a transbordar da chávena demasiado cheia. E esse argumento de que é o que as pessoas querem não serve, cada vez me convenço mais. Querem ter medo, viver aterrorizadas e fazer figuras de parvas? É um direito absoluto e inalienável. Não podem é impingi-lo a todos, dizimar a economia, provocar mortes escusadas e para isso é precisa a intermediação do Estado. Isto é, da política. De chefias. De comando.
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Esta crise tem a fase emocional, onde agora estamos. E a seguir terá sem dúvida uma racional. Rezemos todos para que esta venha depressa. Nunca suportei a estupidez mas a verdade é que até agora só lidei com ela personalizada, individualizada. A estultícia generalizada, erigida em razão - algum louco entra no manicómio pedindo desculpa pelo funil na cabeça? - é pior do que tudo o que jamais pensei. Já vivi em ambientes de loucura colectiva, mas nada nunca que se parecesse com isto. Nem em intensidade nem em longevidade. Quando isto começou pensei que ia durar dois ou três meses. Já lá vão cinco e não se lhe vê o fim.
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Deixemos as tristezas à cidade triste e alegremo-nos com as alegrias que ela nos dá. As mulheres continuam lindas - se bem haja menos delas - o Abrakadabra, o Makaria, a Taskita continuam como dantes eram, o Verão está aí, de peito cheio e noites doces.
O resto que se lixe e torça de inveja.
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Hoje ouvi de todas a mais delirante teoria conspirativa. O vírus vem "do Vaticano. Mas não dos cristãos, não dos católicos. Dos Jesuítas. São eles que estão a orquestrar tudo isto."
A inveja que eu tenho da malta que acredita nestas coisas, simplesmente para não acreditar no humano, demasiado humano...
Verdade seja dita: está triste a cidade, estou eu e estamos todos os que nela vivemos. Uma cidade é feita de pessoas livres e felizes. Não de autómatos mascarados e aterrorizados.
A cidade está triste, coisa que nunca foi. Parece uma criança a quem tiraram as velas no bolo de aniversário: tudo está lá, menos o principal. O homem é um animal de símbolos e não de factos. Tiraram-lhe as velas porque o avô mandou. Ninguém se vai lembrar de questionar as razões: o avô sabe.
Hermann Melville fala de um tipo cujo lugar favorito na Terra era a mil milhas náuticas da terra mais próxima. Je suis Melville, de plus en plus. Cada vez mais.
Chego à Chinchilla demasiado tarde, ao mesmo tempo do que duas raparigas jovens. Era a Isabel quem estava cá fora. Mandou embora as duas moças e disse-me para ir lá para dentro, com arte e jeito. As raparigas nem se aperceberam. Quem quer transformar os países latinos numa Alemanha ou numa Suécia está redondamente enganado.
Como todos os velhos antes de mim, descubro com horror que deixo um mundo pior do que o que me recebeu. Dupla desilusão: nem sequer sou diferente dos velhos todos que me precederam.
O totalitarismo - antes confinado ao bloco de Leste e a meia dúzia de países sul-americanos - voltou impante, abrigado sob a capa do "bem", da "correcção política", das "minorias" e da defesa desse pontífice do indefeso que é o "ambiente".
"O desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta" (Eugénio de Andrade, cito de memória) mas tenho pelo menos a sorte de ainda ter objectivos: publicar o resto do blogue, navegar na Patagónia e em Chiloé, ser feliz. Ou melhor: morrer feliz.
Estou cansado de mais coisas do que pensei um dia viria a estar. Suporto mal a desilusão que este vírus me trouxe numa bandeja: a de que a minha confiança na humanidade foi um equívoco. O pessimismo antropológico que eu insistia em remeter para um canto da ideologia volta à ontologia de onde nunca devia ter saído. Metade de Nietzsche está certa, a outra metade enganou-se redondamente. Deus morreu, sim. Mas não para todos. Agora é fácil de ver porquê: o Diabo não morreu e sem Um o Outro não existe. Enquanto houver Diabo (e diabos) há Deus e deuses.
A humanidade não sabe ser livre. Precisa de correntes e de gajos que regularmente as quebrem. Não sabe viver sem elas e não pode sobreviver sem eles. A liberdade não é o estado natural do homem.
Vou passar o que me resta de vida a destrinçar isto do conceito de vanguardas iluminadas, que sempre abominei e abominarei até ao fim dos dias. Não tem nada a ver com iluminações. Talvez seja antes uma fatalidade: sou livre porque não sei não o ser. Por incapacidade, por inabilidade (fatal, como dizia o outro). A liberdade é uma escuridão, mete medo, assusta os inseguros.
Mas quem diz que ser livre é ser seguro? Eu não. Tive mais do que a minha justa quota de misérias. Se alguma alegria me trouxe a liberdade, é tautológica: a liberdade é um fim em si-mesmo. É uma imposição dessa mistura de genes e acasos de que somos feitos. "Ser livre é poder escolher as suas prisões". Não sei quem disse isto, mas pode parafrasear-se: ser livre é ser escolhido pela maior das prisões.
Chego aos últimos anos da minha vida a lutar pelo que lutava no princípio. Tenho sorte: posso pelo menos confirmar agora que - ao contrário de muitos outros - não estava enganado.
Viaja-se por amor, por trabalho, para mercanciar, descobrir, explorar, para viver ou sonhar, fugir, encontrar. Viaja-se por gosto, por lazer, desgosto, viaja-se com o tempo ou contra ele, por desespero ou na esperança de. Viaja-se para regressar em breve ou nunca mais; sabendo para onde se vai, como se irá, quanto tempo se ficará no destino – ou desconhecendo tudo isso. Viaja-se para fazer a revolução, ou para dela fugir. Viaja-se até com destino, ou sem ele. Viaja-se por viajar, para não ficar quieto ou na expectativa de um dia se poder, finalmente, ficar quieto. Viaja-se por mil e uma razões, muitas mais do que as que nos fazem ficar onde estamos. Essas são poucas. Viaja-se leve ou pesado, alegre ou triste, com raiva ou sem ela, de olhos abertos ou fechados. Viajamos para nos encontrar, para nos desencontrar, para encontrar. Viaja-se porque se vai para a Terra Prometida ou quando se descobre – geralmente com um custo elevado – que tal coisa não existe. O objectivo de uma viagem não é forçosamente a beleza, porque entre a curiosidade e a estética os laços não são tão estreitos como tantas vezes se pensa. Viajamos para descobrir o outro – ser mítico que só existe nos livros de psicologia barata; para nos descobrirmos – esforço inglório: como disse James Baldwin, «o viajante é sempre maior do que o mundo no qual viaja». Viaja-se no tempo, seja para regressar às origens, seja para delas fugir. Como se existissem, como se as origens fossem a nascente de um rio e não os seus afluentes, como são. Da viagem traz-se mais do que se leva, por muito que se leve, se tenha esquecido o que se sabia à partida, por muito que a viagem tenha durado, ou pouco: a viagem é uma operação aritmética que desconhece a subtracção. Uma viagem tem princípio mas não tem fim: todas as viagens que fizemos prosseguem nas que se lhe sucedem e continuam no que somos hoje, acumulam-se em nós como camadas de sedimentos no fundo de um rio. Viajar partilha com viver muito mais do que a primeira sílaba.
II
De uma cidade da Sibéria chamada Nakhodka onde passei quatro meses (no Inverno) trouxe uma paixão que dura até hoje; do Rio de Janeiro (no Verão) outra, que também dura até hoje. De Cape Town – uma das cidades mais bonitas que já visitei – uma paixão transformou-se em amizade e esta em nada. Há viagens assim: o que delas trazemos esfuma-se e fica só o resto: as bebedeiras, a beleza, a frequência regular de um bar sórdido, as entradas no porto, sempre tão bonitas, todas e cada uma delas com as mulheres do porto a gritar em uníssono o nome do navio, felizes por nos verem chegar. - Em breve os inspectores de redes virão inspeccionar-nos – avisara-me o capitão durante uma das suas raras e breves estadias a bordo. – Faz o que quiseres, mas não os tomes por estúpidos. Os inspectores vieram. Convidei-os para uns whiskies no meu camarote, com o pretexto – verdadeiro – de que precisava de ajuda para ganhar uma aposta (beber uma garrafa de cinco litros antes de uma determinada hora). Eles ajudaram, de boa vontade. Depois levei-os a ver a rede com a qual «pescávamos». Era nova, ainda estava na embalagem. Cortaram o plástico que a envolvia – várias camadas dele, aquilo tinha acabado de chegar da fábrica – mediram a malha e muito sérios disseram-me que estava em ordem. Para não se tomar os outros por estúpidos os outros não podem ser estúpidos, passe o truísmo. Viaja-se porque sim, porque não e porque não sabemos porquê. Um dia saí de uma discoteca em Cascais, eram três da manhã, talvez quatro. Apanhei um táxi para casa, perto de Carcavelos. A meio caminho pensei que a minha vida era estúpida, não fazia sentido: deitar-me todos os dias de madrugada, acordar ao meio-dia (estava de férias), ir passear, acabar nos copos. Fui a casa, disse ao chauffeur para me esperar, fiz um saco com roupa e «vamos para o aeroporto, se faz favor». Chegado à Portela, havia um balcão da TAP aberto. - A que horas sai o primeiro avião, minha senhora? - Sai daqui a uma hora. - E para onde vai? - Para Milão. - Dê-me um bilhete, se faz favor. Cheguei a Milão eram oito da manhã, lembrei-me de que a jovem que amara no Rio vivia provavelmente lá, não tinha a certeza, indaguei, vivia, fui tomar o pequeno-almoço a casa dela, passámos quase um mês em Milão e acabámos em Veneza, uma semana. Há viagens circulares. Nunca mais a vi, mas ainda hoje a amo e tenho pena de não poder refazer uma viagem assim, impromptu, sem querer, sem planos. «Há que ter um plano, se queres poder não o respeitar», dizem os logísticos ingleses. É verdade. Mas se algumas viagens requerem um plano, outras fazem-no elas, um plano à medida; e ao viajante só cabe adaptar-se ao que a viagem lhe preparou.
III
De Veneza fui para Caracas, onde passei seis meses. Detestei o país, na altura ainda próspero. Trabalhei na Marinha Mercante venezuelana – fui o primeiro oficial estrangeiro com licença para embarcar em navios da Venezuela –, dormia num iate cujo interior consistia basicamente numa rede (de dormir, não de pescar) e comecei a fazer fotografia. Cape Town veio a seguir, depois um ano em Lisboa, depois as vindimas em França, vinte anos, dois filhos e um casamento feliz na Suíça – com um intervalo no Burundi, outro no então Zaire, outro ainda em Aveiro, nas dragagens do porto, outro nos Açores, três épocas. (A desordem do relato é total e propositada: não há, nunca houve ordem nestas viagens.) De Aveiro fui a Moçambique num velho cargueiro – foi a sua última viagem –, voltei à Suíça, fui para os Açores, atravessei o Atlântico pela primeira vez e sobrevivi a um ciclone no mar... Se traçasse num mapa-mundo as viagens todas que fiz, ele ficaria a parecer os rabiscos de uma criança hiperactiva na parede da sala.
IV
Pode viajar-se de comboio, de carro, de bicicleta, de barco, de avião, de burro ou de camelo, a pé, sozinho ou acompanhado, à boleia, sem sair de sua casa ou da sua cidade, pode viajar-se de todas as formas e feitios pela razão simples e irrefutável de que viajar é viver e viver é viajar. O planeta inspira e expira a cada passo que se dá, cada dia em que se vê o sol nascer num sítio e pôr-se noutro, cada montanha – real ou metafórica – que subimos e descemos, cada oceano que atravessamos, cada cidade de que descobrimos uma estação ferroviária ou se descobre para nós, como uma mulher apaixonada se despe para o homem que a seduziu.
V
Agustina dizia que por detrás de cada viagem esconde-se uma intenção erótica. E se tivesse razão?
Os dois principais meios de contágio deste vírus são: a) as redes sociais e b) a comunicação social. Se os governos quisessem realmente parar as infecções, proibiriam o acesso a facebooks, jornais e telejornais.
Felizmente não podem, por isso temos de viver com estes e com aquele.
Mal os cobardolas portugueses se apanham atrás de um volante, transformam-se em heróis valentes e imortais.
Heróis valentes e imortais? Talvez antes idiotas irresponsáveis e assassinos, não?
É como ter à frente uma escada cujos degraus partem em todas as direcções. Um gajo olha e não sabe qual delas escolher. Não percebe para onde vão, aonde chegam.
De repente escolhe uma das escadas, põe o pé no primeiro degrau e poouuufff: todas as outras desaparecem, encaixam uma nas outras como um leque ou uma boneca russa.
Nada lhe resta a fazer se não continuar a subir, esquecido da farândola de opções que antes tinha.
Alguém me sabe dizer se estar desorientado é o mesmo que estar desnorteado? O Oriente e o Norte equivalem-se, semanticamente?
Não gosto de dias assim, passam por mim e não param, passo por eles sem os ver. Hoje quase literalmente: tive o insigne prazer de conhecer as urgências oftálmicas do S. José, acordei parecia que tinha andado à pancada com o Cassius Clay. Hospital, farmácia, casa, jantar num restaurante suíço que tem rösti e mirabelle, duas coisas pelas quais vendo dez dias de Sol e vinte de Lua. A mirabelle é boa; o outro assim assim. Chego a casa e o computador não funciona. Não são dias, isto, são horas em forma de vírgula, pausas no tempo, placas de vidro entre mim e a vida.
A carcaça e respectiva manutenção irritam-me. Qualquer dia a ordem dos farmacêuticos erige-me uma estátua: "ao homem que mais detestava medicamentos e mais os comprou."
Enfim, exagero, claro. Há pior do que eu. Agora pelo menos dei um passo em frente: compro remédios e às vezes até os uso. Estes de hoje ficam para amanhã. Com os da diabetes sou religioso: não quero tão depressa perder o uso do periscópio de almas. Com os da anca também: quero levar o dito instrumento aonde ele for preciso. Estes dos olhos podem esperar, amanhã verei, sem jogo de palavras. Dias assim, dou-os a qualquer um que mos peça. Maré baixa, dores na anca, computador avariado, diabetes a lançar foguetes, conjuntivites... Vá lá que ontem conheci uma miúda gira. Trinta anos, italiana, culta e gira (mistura irrefragável). Ainda há disto?, pensei. Ainda. Tu é que vais tarde, respondi. Uma janela para a vraie vie, qui est ailleurs, tout le monde le sait: la vraie vie est ailleurs, là où tes journées ne sont point. Já não estão? Estás enganado, velho: onde tu estás a vida está. Desengana-te. Isto são vírgulas, não são pontos finais parágrafos. Vai ler: quem lê seus males não vê.
Já aqui falei uma vez da diferença entre pairar e derivar: pairar é voluntário, derivar involuntário; este não se sabe quando acaba, aquele tem um fim marcado: quando acabar a situação que o originou. Pairar por vezes é bom, derivar nunca o é.
Isto que vivemos é uma deriva. Uma deriva viral, que nos está a levar para as costas perigosas do totalitarismo, arrastados pelas correntes perigosas da modernidade.
Há várias versões possíveis:
- Quem não sabe morrer não sabe viver;
- Quem não sabe morrer não merece viver;
- Quem não sabe que vai morrer não sabe que não viveu;
- Viver é um jogo de azar com o destino. Todos vamos perder. O único vencedor é a morte. Não o admitir é uma imperdoável falta de dignidade.
- Viver dignamente é incompatível com morrer cobardemente.
- A histeria é uma forma demasiadamente barulhenta de viver e de morrer, duas actividades que exigem a dignidade do silêncio.
«A humildade em si mesma nada mais é do que a verdadeira consciência de nós mesmos tal como somos. Não há dúvida: qem fosse capaz de se ver e sentir a si próprio tal como é, seria verdadeiramente humilde.»
In A nuvem do não-saber, Anónimo inglês do séc. XIV, Ed. Sistema Solar, Lisboa 2018.
Pequena nota à parte: devia fazer-se bicha à porta das livrarias para adquirir este livro. É uma espécie de versão católica do Tao. Não sendo historiador, nem muito menos teólogo comparativo, penso que a religião católica foi a maior e mais fecunda fábrica de conhecimento do mundo. Há uma linha recta que vai de Belém (a do Médio Oriente) a Houston, a Massachussets, a Oxford e Cambridge, à Sorbonne.
Aposto que não há diarista no mundo que um dia não tenha escrito «há tanto tempo que não escrevo neste diário...» Não é a primeira vez que isto me acontece e talvez não seja sequer a primeira que o digo: «há tanto tempo arredado deste Diário...»
É preciso dizer a verdade: não é do diário que ando longe. É dos dias. Dias teflon, passam por mim e não ficam; ou eu por eles e não páro. Nem reparo, não vejo, não os vejo. Sei que passo, que mudo de casas, sacos ao ombro e dores pelo corpo todo feito personagem beckettiana (isto é mentira: as dores são apenas na anca direita. São é violentas e inutilizam o resto da carcaça). Percorro as ruas de Lisboa montado na bicicleta - uma das duas formas de não sentir as dores - sonho com Mértola, com uma exposição de fotografia, com o livro a vender-se, com uma caça-fantasmas alemã que na Bavária sonha comigo, com o fim desta interminável fantochada, com o «meu» P. pronto, sonho com dias de paz saudável, bonita, não esta paz podre, como se estivesse separado do tempo por uma placa de vidro: vejo tudo o que se passa mas não lhe posso aceder.
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O meu projecto de conhecer Portugal avançou mais um passo, quilómetro a quilómetro, multa a multa (foi só uma, até ver). Caminha, Viseu - de onde regressei pelas estradas mais pequenas que encontrei, levei quase dez horas a chegar a Lisboa, viagem por um país deserto, as únicas pessoas jovens que vi tinham «Emigrante» escrito na testa em letras garrafais. Ao menos isso, talvez seja por aí que se possa começar a repensar o interior de Portugal, turismo activo, agricultura biológica, retiros espirituais, vá lá saber-se.
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Sacana da carcaça. Só me apetece pontapeá-la com a perna que funciona e de caminho pontapear-me a mim próprio. Um dia um médico disse-me:
- V. deve ter uma grande resistência à dor.
- Não sei - respondi.
- Tem tem.
Continuo agora a conversa, com uma diacronia de vinte ou trinta anos:
- Pois quem me dera não ter! A nenhuma dor, venha ela do casco ou do porão de voláteis, intangíveis, espirituosos, sonhos e similares.
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Continua a experiência em tamanho real com o medo e respectivo aproveitamento pelos poderes que são e que vão desde o ajudante de contínuo ao Primeiro-Ministro. O rebanho deixa-se rebanhear, é encostadinhos uns aos outros que se sentem bem, máscaras nas ventas e «responsabilidade social» arvorada em caminho para o céu (o da modernidade, ça va de soi).
Entre aspas: até nos carros vejo gajos sozinhos de máscara. Duvido muito que a responsabilidade social seja a principal motivação dessa idiotice.
Duvido muito de tudo, verdade seja dita. A começar por mim.