26.11.23
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Queimada Galega
Por causa de uma troca no Facebook entre dois Eduardos lembrei-me disto.
A Queimada era a bebida de cerimónia do ALTAIR, o arrastão a bordo do qual andei à pescada e ao peixe-espada na Namíbia. Raramente dizíamos o esconjuro todo, mas sempre o achei bastante bonito.
(O post vem da Vida Borealis.)
Queimada Galega, sabe como se prepara?
O pote
O recipiente é importante, quanto mais não seja para contribuir para a teatralidade do momento. Escolha um recipiente de barro ou de metal que resista à queima do bagaço no seu interior… quanto mais tosco melhor!
O bagaço
O bagaço é fundamental, é a sua queima que vai originar o licor final da Queimada Galega. Escolha um bagaço de qualidade, feito a partir de mosto das uvas e sobretudo… forte.
O açúcar
Deve ser amarelo, em quantidades generosas, adiciona-se ao bagaço. 200 gramas por cada litro.
Os citrinos
Podem ser limões ou laranjas, devem ser frescos, partidos em quatro partes e adicionados à mistura de bagaço e açúcar.
Os grãos de café
Quando todos os ingredientes estiverem juntos no pote, basta adicionar alguns grãos de café não moídos.
Depois de todos os ingredientes no pote, chegou o momento de incendiar o bagaço, a mistura deverá arder durante vários minutos por forma a queimar o álcool, caramelizar e misturar os sabores. Mexer a poção com frequência é fundamental… bem como recitar o esconjuro com toda a convicção.
Na Borealis apenas sabemos que funciona para reunir os amigos, viajantes e exploradores, que nos inspira para continuar a aprender sobre as tradições e a origem da nossa cultura.
Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demónios, trasgos e diabos,
espíritos das enevoadas veigas.
Corvos, píntigas e meigas:
feitiços das mezinheiras.
Podres canhotas furadas,
lar dos vermes e alimárias.
Fogo das Santas Companhas,
mau-olhado, negros feitiços,
cheiro dos mortos, trovões e raios.
Uivar do cão, pregão da morte;
focinho do sátiro e pé do coelho.
Pecadora língua da má mulher
casada com um homem velho.
Averno de Satã e Belzebu,
fogo dos cadáveres ardentes,
corpos mutilados dos indecentes,
peidos dos infernais cus,
mugido do mar embravecido.
Barriga inútil da mulher solteira,
falar dos gatos que andam à janeira,
guedelha porca da cabra mal parida.
Com este fole levantarei
as chamas deste fogo
que assemelha o do Inferno,
e fugirão as bruxas
a cavalo das suas vassoiras,
indo se banhar na praia
das areias gordas.
Ouvi, ouvi! os rugidos
que dão as que não podem
deixar de se queimar na aguardente
ficando assim purificadas.
E quando esta beberagem
baixe pelas nossas goelas,
ficaremos livres dos males
da nossa alma e de feitiço todo.
Forças do ar, terra, mar e fogo,
a vós faço esta chamada:
se é verdade que tendes mais poder
que as humanas pessoas,
aqui e agora, fazei que os espíritos
dos amigos que estão fora
participem connosco desta
Queimada.
Em galego:
Conxuro tradicional da queimada galega
Mouchos, coruxas, sapos e bruxas;
demos, trasnos e diaños;
espíritos das neboadas veigas,
corvos, píntegas e meigas;
rabo ergueito de gato negro
e todos os feitizos das menciñeiras…
Podres cañotas furadas,
fogar de vermes e alimañas,
lume da Santa Compaña,
mal de ollo, negros meigallos;
cheiro dos mortos, tronos e raios;
fuciño de sátiro e pé de coello;
ladrar de raposo, rabiño de martuxa,
oubeo de can, pregoeiro da morte…
Pecadora língua de mala muller
casada cun home vello;
Averno de Satán e Belcebú,
lume de cadáveres ardentes,
lumes fatuos da noite de San Silvestre,
corpos mutilados dos indecentes,
e peidos dos infernais cus…
Bruar da mar embravecida,
agoiro de naufraxios,
barriga machorra de muller ceibe,
miañar de gatos que andan á xaneira,
guedella porca de cabra mal parida
e cornos retortos de castrón…
Con este cazo
levantarei as chamas deste lume
que se asemella ao do inferno
e as meigas ficarán purificadas
de tódalas súas maldades.
Algunhas fuxirán
a cabalo das súas escobas
para iren se asulagar
no mar de Fisterra.
Ouvide! Escoitade estos ruxidos…!
Son as bruxas que están a purificarse
nestas chamas espiritosas…
E cando este gorentoso brebaxe
baixe polas nosas gorxas,
tamen todos nós quedaremos libres
dos males da nosa alma
e de todo embruxamento.
Forzas do ar, terra, mar e lume!
a vós fago esta chamada:
se é verdade que tendes máis poder
ca humana xente,
limpade de maldades a nosa terra
e facede que aquí e agora
os espiritos dos amigos ausentes
compartan con nós esta queimada.
25.11.23
Apego, desapego e desmemória
Com a idade aprende-se o apego e o desapego, a dar importância àquilo que a tem e a esquecer o que não.
Infelizmente, esta é muito maior do que aquela. A quantidade de coisas que não merecem ser lembradas é quase igual à das que lamentamos ter vivido. Ou melhor: lamentaríamos, se as recordássemos.
22.11.23
Pântano
Reflicto-me nas águas escuras de um pântano e pergunto-me: o que te faz feio - o pântano ou o reflexo?
21.11.23
No meu tempo
No meu tempo não havia miúdas giras que gostassem de jazz.
Hoje, o Távola está cheio delas (das giras). E ainda há quem se queixe da modernidade.
20.11.23
Poema de um herói palestiniano
Hoje fui ao Bota ouvir poesia. Como sempre foi muito bom. Declamaram muitos poemas de autores palestinianos. Eu tinha preparado um, mas infelizmente tive de vir-me embora mais cedo e não houve tempo de o ler.
É de um poeta palestiniano chamado Al-Issa Al-Serba Al-Amar Ben Hamas, cruel e cobardemente assassinado na flor da idade pelas forças genocidárias israelitas quando ia ao hospital al-Shifa buscar munições. É apenas um fragmento encontrado no seu bolso por um camarada de armas que heroicamente conseguiu completar a missão.
"Hoje vou degolar um bebé israelita
Filho de hititas
Hoje vou violar uma mulher israelita
Puta de hititas
Hoje vou lançar granadas sobre uma cidade israelita
Coio de hititas
Hoje vou matar jovens israelitas
Futuros hititas.
..."
O resto perdeu-se nos escombros do hospital, bombardeado pelos assassinos nazis judeus.
19.11.23
Desconstrução de um almoço dirigida às novas gerações
17.11.23
Vagabundo do espaço-tempo
Maria Rapaz e outras reflexões
O quiosque de S. Paulo tinha um óptimo vinho a copo. Custava dois euros e chamava-se Maria Rapaz. Andei à procura desse vinho e não encontrei em lado nenhum.
Agora, tem Casal da Azenha a quatro euros. Os ovos verdes continuam excelentes (se bem na minha opinião podiam ter um bocadinho mais de salsa), os pastéis de massa tenra idem (mas não precisam de mais nada, estão óptimos como estão). A questão que se me apresenta é: prefiro o Maria Rapaz a dois euros ou o Casal da Azenha a quatro? Resposta: o Maria, sem sombra de dúvida. O Casal é melhor? É. Não sei. Talvez. O outro jogava num campeonato muito reduzido: era o Maria e o Rapaz. O campeonato do Azenha está muito povoado.
Pergunta subsidiária: aonde vou encontrar vinho tinto Maria Rapaz? (Só o nome vale o preço.)
Mediterrâneo, Calvino e outros vícios
Hoje comprei um livro - há vícios piores, relembro. Chama-se El Sueño de Ulisses e é de um senhor chamado José Enrique Ruiz-Domènec. Foi publicado pela Taurus, que pertence ao grupo Penguin. O subtítulo é: El Mediterráneo, de la guerra de Troya a las pateras.
Logo nas primeiras páginas encontro: "La volontad humana se concreta como la única vía de entender la vida: lo ilustra el famoso gesto de Alejandro ante el nudo gordiano;..."
Sem o Mediterrâneo Calvino teria existido?
Ciclistas e a vida na alface
Dois ou três dias a pedalar em Lisboa chegam para confirmar o que já todos sabemos: o grande problema do trânsito nesta cidade são as bicicletas e respectivos ciclistas. Nós:
- Passamos com o sinal encarnado e depois ficamos parados no meio do cruzamento, impedindo assim o normal fluxo de viaturas no sentido perpendicular àquele onde nos encontramos, tentando evitar o mais possível a inevitável cara de parvo;
- Estacionamos em segunda fila porque as ruas da cidade são desmesuradamente largas e de qualquer forma "é só um minuto";
- Confundimos as artérias da cidade com uma pista de corridas e andamos por essas ruas fora a velocidades alucinantes, como se fôssemos salvar o pai da forca;
- Estacionamos em cima de passeios e passagens de peões, contribuindo assim para tornar mais animada a vida das pessoas com mobilidade reduzida ou com carrinhos de bébé;
- E, achando tudo isto insuficiente, buzinamos, gritamos, fazemos manguitos e insultamos os outros ciclistas, dando uma agradável animação à vida urbana.
Se cada ciclista trocasse a sua bicicleta por um automóvel a vida na pequena alface seria - sem sombra de dúvida - muito mais agradável.
15.11.23
Mudar de vida?
A ideia geral é: mudar de vida; a particular é: "Não podes mudar de vida antes de ter a anterior resolvida". Ou seja: vida é parte integrante de resolvida, coisa que basta saber ler para ser imediatamente perceptível ao leitor atento.
Amor, ódio, Lisboa e tiras de choco
A noite cai sobre Lisboa, o sol afunda-se no rio e em mim num destes intermináveis crepúsculos que são os meus dias desde que me conheço: um longo dia ao qual sucede um longo crepúsculo, como se a vida não tivesse mais nada que fazer senão explicar-me o verdadeiro sentido de alternância: o dia e a noite, a maré baixa e a preia-mar, a tira de choco na Ginginha Popular e o copo de vinho branco, o pedal que baixa e o que sobe, o olho esquerdo que não vê e o direito que sim, a Lua que ora cresce ora mingua. Lisboa, no fundo: hoje eu amo-a, amanhã ela detesta-me.
13.11.23
Labirintos, saídas
12.11.23
Montanhas-russas, vida
A razão pela qual gosto tanto de montanhas-russas é fácil de entender, quando se sabe que não passam de reproduções em miniatura da minha vida.
Manuel Gusmão
À velocidade da luz
Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.
Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo e
entretanto é feita para mim; atinge-me
à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que me consome
até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta crosta da terra
Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?
É como se soubesses
que voltará, sim, e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
quem já lá não está. Quando
é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
à possibilidade dessa forma?
.............
Revolução orbital
Revolução orbital: vai-se a rosa transformando
na coisa múltipla, amante e amada, na acção
que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens,
estações dos dias e das noites, dos anos da história.
Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz
desenham. E a rosa é uma hélice que vibra
no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões,
do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos
que se respondem: como um coração que deflagra
a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces
e o chão sobre que danças.
11.11.23
Realidade, retórica
Os debates políticos só fazem sentido e são úteis quando tratam da realidade. Isto é, quando a arena é a realidade. Quando o terreno bascula para a retórica e a capacidade argumentativa perdem o interesse.
Invocação do milagre
Um inglês, com a sua mania da perifrase, diria deste ano que agora acaba que foi desafiante. Não foi. Foi uma merda, um horror, um inferno, um calvário. Teve três bons momentos: o nascimento da minha neta, a viagem da Suécia para Cascais e a próxima publicação do meu livro De Passagem (por ordem cronológica, que é quase igual à outra).
E agora vai acabar da pior maneira possível: na ausência de um milagre, vou deixar o meu P. antes de ele estar acabado. Isto em si já é suficientemente doloroso. Saber que está preso por pintelhices só piora as coisas, não as melhora.
Às vezes é preciso acreditar em milagres.
8.11.23
Dois infinitos
Não sei se sou eu que trabalho no mar, se ele em mim. Prefiro esta última hipótese enquanto oiço Hildegarde von Bingen: dois infinitos que se encontram.
Carta aberta
Não se pode dizer que os dias sejam fáceis, bons ou bonitos. Não são. Pode contudo dizer-se - e deve-se - que há escapatórias, momentos exultantes, jubilatórios. Tenho uma série daquilo a que em inglês se chamaria issues - um termo cuja tradução oscila entre problemas, questões, temas. São doze, aos quais atribuí uma classificação baseada em dois parâmetros: a urgência e a importância. Dos doze, seis - metade - está na classe mais elevada. A outra metade está espalhada pelas categorias «inferiores», que vão até cinco. Alguém se enganou na distribuição. Devia ser ao contrário.
Mas não é e as coisas são como são e não como deviam ser. Nada é como deve ser, aliás. Resta-nos aprender a viver com essas imperfeições. É tudo e é bom. Gosto do pragmatismo da imperfeição, que prefiro ao snobismo do seu contrário. E assim aproveito estes momentos de euforia, por muito passageira e ilusória que seja: um item que desliza da prioridade um para a dois, uma notícia boa e inesperada... Dentadas nas issues, momentos que me permitem - me obrigam - a pensar que sim, há uma saída. Basta querer. Ou esperar, talvez. E essa saída não está só no vitello tonnato do Tomas. Está também naquilo que não controlamos. Detesto a esperança, que faz mais mal do que bem. Mas forçoso é reconhecer que a sua ausência é pior ainda.
E é isto. É bom chegar ao fim do dia com a noção de que ele começou pior.
Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-11-2023
Palma é a cidade perfeita para malabaristas desajeitados, estetas solitários e marinheiros em busca de um porto.
O desfile de mulher bonitas continua ininterrupto, como se Deus fosse sádico e quisesse atazanar-me o pouco juízo que me resta. O vitello tonnato do Gustar - parte integrante da Gustar Terapia que por sua vez é pilar essencial da Palma Terapia - mantém-se sublime; uma das bolas importantes parece apontar para a boa mão. Palma é isto: uma rede gigante que apanha todas as bolas errantes que o artista com distrofia muscular ou paralisia cerebral manda ao ar. Só me resta escolher a maleita de que sofro: o tratamento está ali à frente, na Rambla, na Plaza Mayor, no Paseig del Born, no Gustar, no Antiquari, no Claudio, em todo o lado.
Life's a bitch, dizem os americanos. And then you die, respondem os russos. Verdade. Mas é menos bitch e morres mais tarde em Palma. Sobretudo se fores marinheiro e falares aquela língua que só nós entendemos, a língua "hoje estás aqui, amanhã não sabemos". De passagem, passe a publicidade nada encapotada.
Um snooker e uma paráfrase
Fiz uma lista exaustiva das bolas todas que tenho no ar. Atribuí-lhes prioridades, pesadas por dois parâmetros - a urgência e a importância. São doze bolas, até ver. As prioridades vão de um a cinco. Distribuição:
- Seis com prioridade um;
- Duas com prioridade dois;
- Três com prioridade quatro;
- Uma com prioridade cinco.
Alguém se enganou. Deus, este não é o snooker que eu pedi. Além de que falta o nível três.
Homenagem e confirmação
« ...I rise to the surface, fortified by my own vulnerability,...». Esta frase é de uma das pessoas por quem eu tenho mais admiração e respeito (é muito raro as duas não andarem juntas). A descoberta da nossa vulnerabilidade é o primeiro passo para se ser um marinheiro - em terra, no mar, num canal ou no topo de uma montanha. Marinheiro é uma pessoa que se sabe vulnerável, o mais vulnerável da cadeia na qual respira e se movimenta. É a essa vulnerabilidade que ele vai buscar a sua força. Um marinheiro senta-se simultaneamente em cada uma das extremidades da vara do equilibrista. É tudo e o seu contrário.
Não tenho seguido atentamente a história da Nike. Sei que vai navegar na Europa, creio que em canais, mas não tenho a certeza. Do que estou seguro, isso sim, é do que lhe disse há muitos anos, pouco depois de a ter conhecido: «you're a sailor, Nike».
Uma lição aprendida
As pessoas são uma das quatro coisas que me interessam (as outras sendo a luz, o mar e as palavras. Esse post é uma das epígrafes do De Passagem). Talvez por desde muito cedo ter sido um leitor sôfrego e omnívoro, capaz de saltar de um livro dos Cinco para um do Sven Hassel. Ou por também desde bastante jovem ter convivido com as mais estranhas personagens, tanto directamente como através das histórias do meu Pai. Com a possível excepção da tropa - e mesmo essa é discutível - não há meio mais propício à exposição pública de idiossincrasias do que um navio.
Gostar de pessoas é fácil. Difícil é aprender a não as julgar. Isso sim, levou-me muito tempo, muitos anos, vidas, erros, errâncias, encontros, desencontros, surpresas, ilusões e desilusões. Posso porém dizer - e digo-o com orgulho - que é uma lição aprendida.
Disse «molho de brócolos»?
O molho de brócolos é de tal ordem que quando faço uma lista deles falta sempre um ou outro.
6.11.23
Diário de Bordos - Sevilha, Andaluzia, Espanha, 06-11-2023
O bar Iscariotes em Sevilha tem na lista trinta e quatro runs. Não é uma aproximação. Contei-os. Pedi um Flor de Caña 7 anos, que a sete euros é uma das boas relações qualidade-preço. Não têm. Reverto para o Santa Teresa, um pouco contrariado porque esse custa oito e tenho-o no Jaume a um e meio mais barato.
Se eu fosse casado com Palma, Sevilha seria a minha amante. Como não sou, não hesitaria em levar esta cidade ao altar. Sevilha é o que Lisboa devia ser. O que Lisboa poderia ter sido, se Portugal tivesse mais dinheiro e menos turistas. Se... se... Farto de ses. Sevilha é o que eu gostaria que Lisboa fosse e não é só por ter bares com dezenas de runs (na carta).
Amanhã tenho de me levantar às quatro da manhã. Não posso usufruir da Pensão Lisdos nem destas ruas cheias de gente, com lojas que não são de recuerdos (andei à procura da "minha" papelaria. Felizmente não a encontrei. Já tenho canetas que cheguem). Comi um gelado de merda - é nisso que o Claudio transforma todos os gelados que não são dele - perdi-me no caminho para o hotel - espanta-me sempre o que a falta de vontade faz ao sentido de orientação - e agora bebo um Santa Teresa no Iscariotes enquanto a televisão gigante passa imagens da Semana Santa. Iscariotes, Semana Santa, Santa Teresa. A pergunta é: como não pedir outro rum?
Fiz bem. O segundo é ainda maior do que o primeiro. Parece um copo de água, só que em vez de água tem rum. Retiro o que disse sobre o rum no Jaume, aonde as medidas são muito sobriamente desrespeitadas. Este parece um triplo bem servido. Lá está: quer um homem ir deitar-se e tudo se conjuga contra ele.
Claro que podia estar em Cádiz ou em Málaga, em Almeria ou Cartagena, em Denia ou em Sitges. Mas não estou. Estou em Sevilha e hoje é esta a cidade que amo.
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Penso na quantidade de defeitos que tenho e pergunto-me se mereço tanta sorte. A resposta é imediata: não. Mas já que a tenho, aproveito-a e usufruo dela.
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O sacana do puto trocou a Semana Santa por futebol e marimba-se por completo nos meus pedidos para acabar com isto. Tenho de deixar o balcão e ir lá para fora. Quem proibisse a televisão nos bares teria aqui um eleitor, por muito liberal que fosse (o eleitor).
E sim, juro que vou acabar este rum. Ainda está por nascer o barman que me serve mais rum do que o que posso beber.
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PS - acabei na Cervecería El Patio, outro lugar que sugiro mesmo que reduza drasticamente o tempo de sono. Sevilha é uma daquelas cidades em que vale a pena trocar o sono por (neste caso) vinho tinto.
Nas margens da vida
Decidi fazer uns passadiços nas margens da minha vida mas tive de parar quando cheguei ao presente. Ainda tentei projectá-los um pouco no futuro, mas fui progressivamente obrigado a reduzir a duração dessa projecção. Passou de um ano a seis meses, daí a três, depois a um e agora meço em minutos. Sei que daqui a pouco pousarei o telefone e tentarei adormecer de novo. Não sei sequer se conseguirei.
Os passadiços são inúteis. A vida não se faz a olhar para ela.
5.11.23
Diário de Bordos - Loulé, Algarve, Portugal, 05-11-2023
Retrato silencioso
Tinha os silêncios admiravelmente arrumados, num grande armário que ocupava a maior parte de uma das paredes do corredor de casa dela. Nunca consegui foi perceber se os tinha catalogados por destinatário se por temas.
4.11.23
Morte e ressurreição
Claro que regressei cheio de boas intenções, facilitadas pela certeza de que não tardaria nada estaria de novo à frente do portão. A partir de agora pensaria mais em mim, a partir de agora pensaria mais, tout court, a partir de agora reconheceria que as circunstâncias nos podem forçar a mudar o que dissemos. Ou pelo menos a incluir em todos os compromissos a expressão «se tudo estiver como agora». A vida tornou-se-me bastante agradável, a avaria no portão nunca mais era reparada e comecei a pensar que o velho barbudo se tinha esquecido de mim.
2.11.23
A beleza das perguntas não-retóricas
As palermices dos media são consequência do zeitgeist, ou será este uma consequência daquelas? Antes da Covid a pergunta seria retórica. Depois não é.
Dez em doze
Don Vivo - Edições financeiras, Lda
1.11.23
Amar o mar sai caro; ou: o apelo da sedentarização
Só percebo plenamente quanto o mar me rouba quando tiro os meus livros das caixas em que passaram meses (ou anos, às vezes).