30.9.25

Diário de Bordos - Favignana, Isole Egadi, Sicília, Itália, 30-09-2025

Comecemos pelo fim (ou quase): a cerveja Kebbaberia di Tonno. Foi-me proposta como sendo «a cerveja da casa», conceito esse que me incendiou imediatamente a curiosidade, que tenho facilmente inflamável. Quando a garrafa chegou, vi que é cerveja artesanal, coisa que me põe logo de pé atrás. Ao primeiro gole o pé voltou à sua posição habitual. Depois chegou o tonno ammuttonato e apercebi-me de que o raio da cerveja o acompanhava bastante bem (aquilo estava tão bom que possivelmente até com água iria). Li o rótulo todo. «Sugerido para acompanhar... pratos de atum...» Não fazia ideia de que uma cerveja pode acompanhar pratos de atum e muito menos quando estes estão uma delícia sem fim. Além de que o conceito «cerveja da casa» me parece bastante interessante e se um dia eu tiver uma casa de comidas vou adoptá-lo. Cerveja da casa, vinho da casa, vermute da casa, Marsala da casa, tudo da casa

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Continuemos a desenrolar o filme: Favignana é a maior ilha das Egadine e a cidade homónima a sua (delas, ilhas) capital. É basicamente um buraco de turistas mas as ilhas devem ser bonitas. Vistas do mar são-no, sem dúvida. Até ao século XIX - ou meados do XX, mais provavelmente - eram o principal ponto da tradicional mattanza mas a escassez de atum fez dessa tradição um assunto de museu. Hoje ficam o museu - aonde ainda não fui -, os pratos típicos e as ruas com poucos turistas, felizmente. Para alguma coisa servirá estarmos no fim de Setembro.

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O que me leva ao almoço, de novo: o meu método favorito de visitar um lugar qualquer é sentar-me num café e esperar que ele passe por mim, perdoem-me a múltipla repetição. Andar pelas ruas a olhar para prédios não me parece a melhor forma de conhecer seja o que for. Hoje, esse método revelou-se ou um redondo falhanço ou um redondo êxito: o restaurante aonde fui almoçar estava numa rua aonde não passava vivalma. No Inverno esta ilha deve ter «menos vida do que o cemitério de Chicago» (aspas porque cito).

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Volvendo atrás: Marsala. Restaurante Antica Trattoria da Pina. A melhor sopa de lagosta de sempre. Não tenho a certeza de que o comparativo seja adequado porque não é coisa que coma frequentemente mas que estava uma simples maravilha estava. Aperitivo na Enoteca La Strada di vino di Marsala (?). O quadro é lindo e a caponata excelente.

Preferi Marsala a Trapani: menos turistas, o centro mais limpo.

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Trapani: aperitivo num café qualquer do centro e dali fomos a Erice, ali ao lado, aonde jantámos. Uma espécie de Óbidos a setecentos metros de altitude, sem muito interesse (para mim. A parte da tripulação que lá voltou na manhã seguinte gostou bastante da catedral). O jantar foi uma desilusão para alguns e óptimo para outros. Vantagens da diversidade, sem dúvida.

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De qualquer forma, o que me fica destes sítios todos é a inultrapassável - e para mim inesperada - simpatia desta gente. As marinas de Maiorca deviam enviar o seu pessoal fazer estágios aqui. E a beleza das costas. E, sim, Marsala. E esta noção, comum a todo o Mediterrâneo e que não nos larga, de estar a pisar o chão que é pisado desde os Fenícios (desde muito antes, claro. Refiro-me a povos com história). Em 241 a. C. desenrolou-se nestas águas uma batalha naval entre Romanos e Cartagineses e foi com esta batalha, diz-me a Wikipedia, que Roma adquiriu o controle do Mediterrâneo. Tenho o mesmo sentimento cada vez que passo em Trafalgar. Estava na Flórida quando descobri que a minha casa é na Europa e que o Mare Nostrum é o seu jardim, porque faço parte desse nostrum.

26.9.25

Diário de Bordos - Palermo, Sicília, Itália, 26-09-2025

Palermo tem seiscentos mil habitantes. A grande Palermo um milhão e duzentos mil. Isto faz da cidade que seja simultaneamente maior e mais pequena do que Lisboa. Até agora ainda só andei pelo centro: barulheira, caos, movimento, sujidade, buzinadelas dementes, bicicletas, trotinetas, peões, scooters, motas, carrinhas, tudo ao molhe e fé em Deus. Comi um arancino no mercado, grandes e bons, o arancino e o mercado, bebo cerveja Messina ou parecida, vinho tinto siciliano, faço fotografias desinteressantes e confirmo que como turista não sou grande coisa. A superfície das coisas interessa-me pouco (como a das pessoas, de resto). Nunca é demais insistir: as cidades são feitas de pessoas, não de ruas ou monumentos. Talvez por isso gosto tanto dos mercados: juntamente com os cafés e bares constituem janelas privilegiadas para se observar a gente em acção. Uma espécie de buracos na capa de ignorância que nos separa dos lugares.

Isto dito, é preciso ser honesto: se tivesse de escolher entre viver aqui e em Genebra, escolheria esta última sem hesitar um segundo. Acredito que isto seja muito mais "a vida" do que a helvécia. Mas "a vida" é muito cansativa, a partir de uma certa idade. Chata, por assim dizer.

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Ódios de estimação: a) pessoas que "fizeram" a Índia, o Peru, o Everest, o Marquês de Pombal às horas de ponta, Alfama e atravessaram o Tejo em dia de tempestade; b) pessoas que dizem "top"; c) pessoas que quando vão jantar em grupo a um restaurante insistem em pagar individualmente.

Que eu continue  gostar dessas pessoas só demonstra a minha vastíssima abertura de espírito.

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Ódios que não são de estimação: pessoas que não sabem beber. "Quem não sabe beber vinho bebe mijo", ouvi muitas vezes durante a adolescência e a jovem idade adulta. É uma das muitas verdades que não se gasta com o tempo.

25.9.25

Diário de Bordos - Palermo, Sicília, Itália, 25-09-2025

Se as cidades falassem teriam um sotaque. Palermo tem um, é impossível não nos apercebermos dele mal se deixa a autoestrada que nos traz do aeroporto. Uma vez no centro esse sotaque torna-se claramente perceptível. É feito de confusão, de prédios primeiro horríveis (na "cidade nova", aspas porque cito) e depois lindos, de ruas sujas e de pessoas acolhedoras.

A primeira vez que aqui estive foi de passagem. Esta também será, mas menos meteórica. 

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O almoço tendo sido frugal (menos no preço, claro, o aeroporto de Genebra não é conhecido por ser barato), mal cheguei ao hotel deixei o saco, o tablet a sincronizar fotografias (não perguntem, não me dou bem com o ridículo) e vim beber uma cerveja ao café Spinnato, por sugestão da senhora do hotel.

O café é uma espécie de pastelaria Suíça dos velhos tempos; ou de pastelaria Colombo, de ainda mais antigamente. Apesar disso e contrariamente ao habitual venho para a esplanada, que não tem automóveis a passar à frente e tem senhoras velhinhas, bem vestidas e a fumar mesmo a meu barlavento. Levo com o fumo todo mas não me importo. Quem é que gosta de lugares assépticos? Eu não. 

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O fim da pastelaria Colombo foi o meu primeiro terramoto metafórico e lisboeta. Tudo muda, tudo se transforma e não necessariamente para melhor.

Penso todavia que a maioria das mudanças melhoram o que está. Se não fosse assim, hoje não estaríamos melhor do que estávamos há cem anos. 

Enfim, tem que se olhar para estas mudanças ponto a ponto. A pastelaria Colombo foi substituída por um terrível vazio, que até hoje me asfixia. As duas senhoras burguesas e o senhor da mesa ao lado serão substituídas por quê, por quem?

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Em Genebra, a Easyjet substituíu as senhoras (raramente eram senhores) por máquinas. Agora são os passageiros que despacham as suas bagagens. É daquelas mudanças que acho irritantes, mas pouco mais do que isso. O que me arrelia é que com uma máquina não se pode pedir um quilo ou dois a mais.

Está na altura de começar a exigir das companhias aéreas que nos reembolsem quando pagamos mais quilos do que os que levamos.

23.9.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-09-2025

S. resolveu arrumar a casa. Se a ONU servisse para alguma coisa, seria para comentar - e aplaudir -  acontecimentos desta magnitude. Ainda por cima com a quantidade de agências que tem nesta cidade. (Infelizmente nem para isto serve, mas isso é outra história.) No processo encontrou um moinho e um pacote de café que a nossa filha me ofereceu, nenhum de nós se lembra quando. O café é um arábica da Nicarágua, bastante bom por sinal. Foi comprado no «comércio justo», uma dessas tretas que o Ocidente inventou para se flagelar e que - tal como a ONU - é completamente inútil. Mas sendo o Homem um animal simbólico e não, como na escola nos ensinam, racional, a coisa lá vai tendo alguma existência. Curiosamente, há uma relação directa e eu diria causal entre o nível económico de uma sociedade e a importância que atribui a determinados símbolos, o que só prova que nem estes conseguem escapar à influência do «vil metal». Mas isso também é outra história. 

O moinho é mais neutro: bonito, feito na China, comprado não sei aonde e manual, sobretudo. É a parte que eu mais aprecio: moer o café antes de o fazer prolonga o prazer; dá-lhe, por assim dizer, um sentido. Não se trata apenas de premir um botão ou de esvaziar um pouco de café numa panela e pô-la ao lume com água (fria de preferência). Agora tenho uma etapa antes dessa, manual. Acrescentou-se um degrau à escada. Talvez o mecanismo que me leva a apreciar isto seja o mesmo que me leva a gostar tanto de navegar, se possível à vela. Ou talvez seja simplesmente o facto de o meu trogloditismo se estar a depurar com a idade.

Talvez.

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O Outono instalou-se em Genebra e vai chover todos os dias que ainda tenho por aqui. Por sorte as minhas memórias desta cidade não se resumem aos intermináveis dias de chuva. Houve também dias gloriosos: de vela no lago, por exemplo. De trabalho no Marchand de Sable ou na Intermaritime Bank, a fazer a logística da construção de dois petroleiros na Rússia. Tudo era comprado no Ocidente e devia ser enviado para S. Petersburgo. Foi um ano exaltante. 

Penso muitas vezes num livro do Baricco no qual ele diz que vai escrever um romance como se fosse uma cidade. Talvez seja o City, não me lembro. [É]. Sei que o livro é bastante bom, como tudo o que o homem escreveu (ou eu li, que não foi tudo). Cruzamentos, sinais de trânsito que ora estão verdes ora encarnados, estacionamentos pagos ou gratuitos, limitados ou não... Será a memória o sinaleiro?

21.9.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-09-2025

Chego a Genebra mais morto que vivo (ou mais adormecido do que acordado, para quem não gosta de hipérboles, sobretudo se forem lugares-comuns) e vou dormir. À tarde vamos a uma festa para as criancinhas da comuna de Vernier. A música está a cargo de um grupo brasileiro, devidamente vestido de amarelo e verde. É só percussões e lembro-me das steel bands de Antigua, dez vezes maiores do que esta e vinte vezes melhores. Mas é sobretudo esta capacidade que a Suíça tem de acolher emigrantes e de lhes agradecer que me vem à mente. Nunca esquecerei o Primeiro de Agosto (é o dia da festa nacional suíça) de 2000 ou 2001 em que o então presidente da Câmara de Genebra dedicou o seu discurso aos estrangeiros que vivem na Suíça e ajudaram a fazer do país aquilo que ele é. Claro que não entrou em pormenores nem isso seria para ali chamado. Lembro-me apenas da comoção que senti. Até esqueci o facto de o homem ser socialista. A Suíça é, de todos os países que conheço, aquele em que é melhor ser-se estrangeiro. Já houve várias iniciativas xenófobas e não é por acaso que falham todas. O problema de Portugal não são os estrangeiros, André Ventura. São os portugueses e aquilo que nós fizemos do país.

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Chego a Genebra no que os jornais anunciam como «o último dia de Verão. Amanhã começa o Outono», explicam. Desta vez acertaram. Verdade seja dita: com a Meteo Suisse como fonte seria difícil não acertarem. Precisariam de não saber ler, coisa que evidentemente sabem fazer. O que não sabem é escolher as fontes, mas isso é outra história.

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(Cont. ?)

Iluminações

Cada modernidade produz os seus iluminados. A nossa não escapa à regra. Alguns sinais da Iluminação hodierna:
- A Terra é plana;
- O homem nunca foi à Lua;
- Os rastos de condensação feitos pelos aviões não são vapor de água, são produtos químicos;
- O que Israel está a fazer em Gaza é um genocídio. É por isso que avisa as populações civis dos próximos ataques: pode matá-las por atacado, se me permitem o jogo de palavras;
- Os veículos eléctricos combatem as mudanças no clima, tal como deixar de comer carne e dar dinheiro à Greta e aos impostos;
- Se eu usar a palavra preto para me referir a uma pessoa de cor negra sou racista. Se não usar, não sou. (O mesmo com maricas e a homofobia.)
- Não devemos defender-nos das orcas porque elas estão só a brincar, coitadinhas.

Mentes iluminadas é outra coisa. Fazem do mundo um local agradável. Um jardim edénico, por assim dizer.

20.9.25

Modernidade?

Fila para o check in, ou baggage drop ou seja o que for que chamam a isto. Easyjet.

A modernidade é feia mas aposto que todas o foram, desde que modernidade existe. Porque seria esta diferente?

19.9.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-09-2025

Se começássemos pelo fim, diríamos que a comparação com Coimbra ("tem mais encanto na hora da despedida") é mentira. Palma tem mais encanto na hora do reencontro. Hora essa que hoje é, também e para grande pena minha, a da despedida. Ou seja: a minha romaria pelas capelinhas tem uma dupla função: olá e adeus, como se eu fosse um marinheiro bêbedo em busca de mar. Não sou. Amanhã vou ver os meus netos, que vivem tão longe do mar quanto é possível (passe o exagero). Ou seja: bar Rita, Claudio, Gustar, bodega Bellver, bodega Can Rigo, 7 Machos. Daqui não sei. Espero que o bom senso sobreviva a esta tentativa de diluição e me leve para bordo e não para o bar Napoli, aqui tão perto. Afinal, daqui a cinco horas tenho de acordar e a Margarita ("com mezcal, Alex" "Ah, quieres una mezcalita") ainda nem sequer chegou.

O Jaime deu-me um Santíssima Trinidad de três ("ou quatro") anos a provar. Aquela casa não sabe fazer maus runs. No Cliff ficou prometida uma prova de Mezclat (não perguntem agora, por favor). No Rita e no Gustar, promessas de amor eterno, vermute e rum. No Claudio, o melhor gelado de sempre (são todos. Hoje foi Sabayon, porque "me chegaram duas garrafas de Marsala. Até lhe pus gema de ovo".)

Meus caros, Palma não tem nunca "mais encanto" porque o encanto de Palma é inultrapassável, qualquer que seja a ocasião.

Escrevo no 7 Machos, enquanto espero pela Margarita. A culpa sendo, claro, do mezcal Calenda, que o Alex me prometeu ser especial.

Queridos leitores: acreditem na mistura Alex / mezcal. Acreditem em mim. Acreditem em Palma. 

Na vida: é a mesma coisa. 

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Hoje há mariacchi no 7 Machos. Há uma conspiração, é o que é.

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O bom senso leva-me a optar por outra mezcalita. Prefiro um diabo na mão a meio diabo daqui a quinze minutos.

PS - Diabo e meio. O Alex percebe destas vidas. Ou seja: destas noites.

(Cont., se Deus quiser )

18.9.25

Instruções para uso de curiosos e charter skippers, sejam eles de novas ou velhas gerações, de passagem por Ibiza e ou Formentera

a) O restaurante Vogamari fica na Ctra. La Mola, Km 9,5, Platja de Migjorn. 68º 40' 34".8 N  001º 29' 23".00 E;

b) O Rita's bar em Port Sant Antoni de Portamany não tem hambúrgueres. Tem pratos mais ou menos indonésios e filipinos e o que provei não era grande coisa (filipino);

c) O restaurante Es Nàutic, no mesmo porto, tem rum Barceló Imperial a oito euros e parece-me digno de toda a confiança. A próxima vez que aqui vier é lá que vou comer. Apesar de o preço não me parecer adequado a um pobre skipper longe de casa;

d)  Amanhã voltamos, a cozinheira e eu, sozinhos para Palma, desfecho este que me parece bastante adequado ao fim de uma semana de charter que, todas as contas feitas e todos os aspectos bem medidos foi bastante positiva;

e) O porto de Sant Antoni de Portmany é - aparentemente, dito por quem sabe - a Magaluf de Ibiza;

f) É tarde para aprender a cantar mas não para cantar laudas a quem arquitectou esta vida. Não me refiro apenas à minha. Refiro-me à vida em geral (com a possível excepção da das orcas ibéricas, mas isso é outra história);

g) Sábado estarei com os meus netos. Houellebeck fala da extensão do domínio da luta. Eu, da extensão do domínio da vida. Com um bocadinho de sorte, daqui a vinte anos o restaurante Vogamari ainda existirá e eles poderão y aller comer um arroz negro como o que eu comi ontem. É para isso que se vive: para que os nossos netos beneficiem do que nós aprendemos;

h) O chiringuito de Cala Saona em Formentera é uma merda;

i) Os charter skippers de passagem por Formentera devem evitar sugerir aos seus clientes o restaurante Joan y Andrea em Ses Illetes.

14.9.25

Diário de Bordos - Santa Eulalia, Ibiza, Baleares, Espanha, 14-09-2025

Suporto pior a minha hipocrisia do que a alheia. É um erro semelhante ao de ser mais exigente comigo do que com os outros e deste já me corrigi. Excesso de aniversários, sem dúvida. Ao contrário do que frequentemente se pensa, é um excesso com consequências bastante positivas. Só me falta resolver isto das hipocrisias, a  própria e a alheia. É uma discriminação que - como de resto a das exigências - tende para o pedante. Coisa que não sou de todo. 

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Santa Eulália, Ibiza. Embarcação em boas condições se bem pequena (Lagoon 40, a quem possa interessar), clientes porreiros, stew a melhorar a cada minuto que passa. Ontem esperava o pior, hoje estou certo do melhor. Este curso de psicologia que tirei é bastante bom. Só é pena ser tão longo: mais de cinquenta anos e ainda não tenho o diploma de mestrado. Só tenho o bacharelato.

Não sou grande adepto deste porto mas como daqui vou para Formentera algo me diz que vou ter saudades.

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Minto, claro. Não me importaria nada de voltar a Migjorn e jantar no Vogamari. 

Quem é que precisa de uma vida quando tem a memória carregada? E toda misturada, como se fosse uma vida?

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Fugi do restaurante aonde fomos «jantar» (aspas porque uma tapa a dividir por dois é um lanche, apesar de ter sido mais do que suficiente) por causa de um jogo de futebol aos gritos e caí num que tem um músico que se imagina humorista. O homem não canta mal e estamos suficientemente longe para que a música não seja demasiado invasiva. Mas porra, a) podia limitar-se a cantar; e b) se não cantasse nem contasse piadas não se perdia nada.

Que saudades tenho do músico dos pubs de Kinsale. Conseguia fazer toda a gente esquecer-se das virtudes do silêncio, qualidade rara nos músicos de café de hoje.

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A Pila Conada (esta tem direitos de autora. É de uma senhora chamada Tânia) do bar Mirage, à marina de Santa Eulalia é bastante apreciável. Tenho pena de não poder beber uma segunda mas não tarda chegam os clientes e esperam-me duas viagens de dinghy. É isto a glamorosa vida de um charter skipper, para quem tenha dúvidas: não pode sequer beber uma segunda Piña Colada, coitado, por não haver lugar na marina e ter ficado fundeado.

12.9.25

Diário de Bordos - Aeroporto de Madrid, Espanha, 12-09-2025

Não se pode nem tirar Palma de um homem nem um homem de Palma. Por isso aqui estou neste maldito aeroporto de Madrid, o pior do mundo, à espera do voo para Palma. Verdade seja dita que singularizar este aeroporto na categoria «o pior do mundo» é um pouco injusto. Todos os aeroportos que conheço são os piores do mundo, salvo duas ou três excepções que só não o são porque existem os outros.

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Acabo de comer os nachos mais escandalosamente caros da minha já longa vida. Claro que a ideia de perguntar o preço das coisas antes de as encomendar é para maricas, tontos ou tesos, categorias nas quais não me incluo, de todo. Em nenhuma delas.

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Perguntam-me com uma certa frequência como é que aguento esta vida e a minha resposta - seja dita ou pensada - é sempre a mesma: que outra vida aguentar, se não esta?

Neologismos e correspondências

As palavras não são ilhas. São arquipélagos, alcateias para quem prefere analogias terrestres. Pense-se por exemplo no conjunto mãos-mamas, na sua perfeita adequação, como se as duas palavras tivessem sido feitas uma para a outra. Foram, claro. Essa conformidade não é só lexical. É física também. É tão perfeita que poder-se-ia inclusivamente discutir a ordem dos factores: qual das simetrias começou primeiro: a das palavras ou a dos corpos? Vá lá saber-se.

Enfim, tudo isto porque hoje me ocorreu um neologismo: mãomas. Agora, só preciso de encontrar os verbos, adjectivos e substantivos que o vão por assim dizer vestir. Reger, diria um gramático. Ou eu, que sei muito bem quem rege as minhas mãomas.

8.9.25

Jantar, temporalmente

Há dois tipos de problemas: um é saber aonde vou jantar hoje. O outro é aonde vou jantar. Prefiro o primeiro. Gosto de coisas balizadas.

Cinema e clara de ovos

Hoje vou dormir a minha casa. A confusão que estes dois conceitos me causam é indescritível. Dormir em minha casa é como misturar claras de ovos e uma rede ferroviária: ambos existem, mas juntos nem no cinema. 

Diário de Bordos - Comboio Lisboa-Porto, 08-09-2025

Passo dois terços da minha vida no mar, um terço nos aviões e o resto nos comboios. Uma vida movimentada, por assim dizer. Isto sem esquecer as bicicletas, os táxis e os carros alugados. Durmo em hotéis, pensões, Airbnb, espeluncas, barcos e hoje vou até - imagine-se - dormir no meu quarto, em minha casa. Bebo vinho, cerveja e rum, prática essa que tem proporcionado ao meu fígado uma saudável ginástica. O fígado é um músculo, toda a gente sabe e precisa de exercício. 

Menos os médicos, claro. Mas desses não me queixo. Ainda hoje conheci a minha nova médica de família, uma jovem simpática, bonita (não estraga nada) e espero competente. A ver vamos.

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Agora escrevo no comboio. Saímos da estação de Coimbra-B, que para mim será sempre e para sempre Coimbra - Céu, Coimbra - Paraíso, Coimbra- Deus existe e é uma mulher (toda a gente sabe, mesmo as mulheres). Bebo vinho tinto e espero que o tempo passe ao mesmo ritmo do que a paisagem. Não tenho a certeza. Passou depressa demais. Estes  últimos vinte anos passaram depressa demais, aliás, coisa que o rabo da senhora sentada à minha frente ou a senhora toda que até há pouco ocupava a outra mesa demonstram abundantemente. 

A dona do supra mencionado rabo está a engatar e a ser engatada por um gajo sem ponta de interesse, na minha modesta mas esclarecida opinião. Alguém devia tecer loas aos rabos das senhoras sentadas à nossa frente no bar de um comboio, mesmo que tenham escolhido um engate errado. E cantar laudas aos rabos de algumas senhoras. Procurando bem deve haver algumas na música sacra desde o século XII, altura em que se começou a perceber o carácter sagrado do corpo feminino.

(Ainda por cima é portuguesa. Não sei de onde vem o engatatão mas deve vir de um daqueles infernos aonde falam inglês.)

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Os aviões não têm nem bar nem paisagem e  só ocasionalmente têm rabos femininos tão bonitos como o desta senhora de quem agora vejo a cara e o sorriso (levantei-me para isso). Correpondem. Esta mulher é um hino ao equilíbrio. Não é espampanantemente bonita. É só bonita, como a médica de hoje.

Como a vida.

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É quase agoniante esta apetência pela vida, não é?

É. Mas uma ocasional náusea nunca me impediu de viver. Nada nunca me impediu de viver, por mais que eu tenha tentado.

5.9.25

Diário de Bordos - Paço d'Arcos, Portugal, 05-09-2025

Uma boa cara feminina, feliz, nos quarentas deve ser a coisa mais linda da evolução. O seu zénite, por assim dizer. Apogeu. Não precisa de ser muito bonita. Basta que reflita uma personalidade atraente. As caras mimam os carácteres, toda a gente sabe. E se forem de uma senhora feliz, ainda mais.

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Se eu pudesse recomendar ainda mais o restaurante Marítima, em Paço d'Arcos, fá-lo-ia sem hesitar. Mas não posso. Estou no nível máximo de recomendação. Um restaurante português clássico, com uma lista portuguesa, preços portugueses e clientes portugueses. Eu devo ser a coisinha mais perto de um estrangeiro em toda a sala.

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Amanhã largo para a última perna deste transporte. Seguem-se uma ida ao médico para inspecção e uns dias de férias. Tanto um como as outras são merecidos. A carcaça portou-se bem.

4.9.25

O fim da tristeza e outros contos

As pessoas sensatas sabem que os episódios graves de herpes labial se tratam com Zovirax. Já os de pieguice aguda requerem uma mistura de música, rum e calma, muita calma. É preciso deixar a melice escorrer-nos pelos dedos como se fosse plâncton fosforecente apanhado numa noite dos trópicos, numa praia de água cálida a que só o brilho do plâncton dá vida, enquanto se saboreia o rum e se ouve Salif Keita: devagar, como se fizéssemos amor à tristeza.

O rum está quase a acabar e a inevitável competição instala-se: o que acabará primeiro? A pieguice, decido. É preciso guardar um copo de rum para amanhã e lá diz a canção: "Tristeza não tem fim, o rum Flor de Caña sim."

3.9.25

Sentidos, anos e outras dúvidas

Passei sozinho a maior parte dos meus anos de vida e acompanhado a grande maioria dos meus anos bons. Não sei o que fazer disto mas algum sentido há-de ter.

Pelo menos sentidos teve, seja Deus louvado.

Diário de Bordos - Oeiras, Portugal, 03-09-2025

O S. tem um nome bonito. Traduzido mais ou menos étimo-à letra dá Santo Sol. Ou Santa Sol, se respeitarmos o género. O Google discorda. Diz que a origem é outra. pode ser, mas eu prefiro a minha interpretação e não vou deixar a beleza - a minha beleza, entenda-se - estragar-se por causa de um étimo.

Seja qual for o significado do nome, merece-o. É um santo sol, um santo barco, um barco com nome de Deus - deuses. para ser correcto: Sparkman e Stephen, Swan... Todos juntos. As velas estão gastas, o casco sujo e com um sopro estamos a oitos nós.

Os problemas até aqui foram a) termos esse sopro e b) na boa direcção. Foram poucos, o que explica que tenha levado duas semanas e meia, quase três, para vir de Andratx a Oeiras. Sábado começo a última perna e se tudo correr bem domingo estará entregue e eu no comboio para Cascais. Não consigo parar de me imaginar em casa dos meus livros.

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O Verão está quase a ir-se e começo a preparar o Inverno. Se tiver muita sorte fico em Portugal e se em vez de sorte tiver muito azar também. Prefiro a sorte. 

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Estou em Oeiras, uma marina de que sempre gostei bastante e sinto-me tão em casa como me senti em Motril, Santa Pola ou La Linea. «De Passagem» é mais do que um título. O próximo também. Vai chamar-se «Não Sei». Pergunto-me quando chegará a vez de dar a um livro desta série o título que deviam ter todos: Don Vivo. Não sei.

1.9.25

Serviço Público - Restaurantes em Lagos

 Lista de restaurantes em Faro que me foi fornecida por uma senhora do meio:

- Casinha do Petisco;
- Cantinho Algarvio;
- Ferradura;
- A Forja;
- Taninos;
- O Camilo;
- O Chico Zé;

- O Lourenço (Salema);
- A Charrete (Monchique).