31.12.11

Ano novo...

...vida nova. Nunca esta expressão foi tão verdadeira, e tão boa.

Correspondência epistolar - I

Minha querida D.,

Chove, de novo. Estou no hotel da cidade onde aterrei ontem pela primeira vez, "para ficar". Entre aspas porque sabes, como eu, o que ficar significa: qualquer coisa entre um dia e alguns anos. O primeiro contacto com o país é agradável - um chauffeur de táxi que não diz uma palavra a viagem toda, muita vegetação, casas  de madeira um pouco por toda a parte.

O bar parece um quadro do Hopper, com estas cores pastel e uma ausência de movimento como não vi em muitos cemitérios. É agradável, repara: um primeiro andar com vista para a baía, música "do nosso tempo" (o que é o nosso tempo?) e tapas que se estivéssemos em Espanha seriam risíveis, mas aqui roçam o bom, quase.

No bar está uma loira com um grande nariz. É bonita. Da mesa onde estou vejo-a por vezes de perfil, um nariz bronzeado saliente da cascata de cabelos, viçosos e vigorosos. Jantei ao lado dela, no balcão, mas agora afastei-me e vim para uma mesa. Ela dizia-me "faz um esforço, tenta levar-me para a cama" e eu respondia-lhe "desculpa, não faço. Não estou no mercado, e se estivesse e fizesse o esforço que me pedes o resultado seria o mesmo: chegarias rapidamente à conclusão - acertada - de que sou um velho idiota e não perderias muito mais tempo comigo".

Pouco me interessa, na verdade. As coisas entre nós funcionaram porque o contrato era claro: foder-te é bom; não nos vamos apaixonar um pelo outro; de vez em quando podemos ceder à tentação de um bocadinho de ternura, mas só de vez em quando. Contrato mais simples e linear não existe.

Mas a simplicidade é uma longa e árdua conquista; não se encontra sentada num banco de bar com vista para a marina e ventilado pelos alíseos, por muito bonito que seja o nariz.

Prefiro pensar em ti, nos teus longos cabelos morenos, nas mamas que acariciavas enquanto fodíamos como se fossem de outra mulher, no ritmo lento, atlântico dos teus movimentos, na sensualidade palpável, tangível, sólida que de ti emanava. Às vezes olhava para ti sentada em mim e percebia quão ligeiro é o universo, no fundo: basta não confundirmos certas coisas.

A loira desistiu e começou a falar com a dona do bar; eu não desisti de pensar em ti. Não há nada mais erótico do que um contrato simples, claro, livremente aceite pelas duas partes: tu fodes-me e eu fodo-te; tu não me amas e eu não te amo.

Esta carta foi escrita numa das mesas do bar, por causa de um nariz loiro e de uma vista que me trouxe à memória a varanda de tua casa, cheia de flores. Esta carta foi escrita porque a clareza é o mais poderoso dos afrodísiacos, tanto quanto a inteligência. Nunca mais nos vimos, é bom saber que nunca mais nos veremos e melhor ainda que nunca nos esqueceremos, porque só o que é pesado e fez mal se esquece; a leveza não.

Um dia escrever-te-ei uma carta sem palavras, como eram os nossos encontros:  legível com o tacto, com o cheiro, com o ouvido ou os olhos mas sem uma única palavra, como quando fazíamos amor na cozinha, enquanto tu preparavas o jantar e eu servia o vinho; ou no hall, mal eu tinha tirado o chapéu e a gabardine (conhecemo-nos no inverno, não foi?)

Foder-te era como foder um universo do qual o ruído tivesse sido banido. O que nos uniu foi a ausência de barulho. Nada há mais duradouro do que o silêncio. Nunca conseguirei explicar isto a ninguém se não a ti, porque não preciso de to explicar. Nada é mais poderoso do que dois corpos e dois silêncios. Percebi-o contigo aos trinta anos; escrevo-o hoje aos sessenta. Há amores que não duram tanto como a nossa ausência de amor.

Pode ser que encontre a tua morada. Pode ser que leias esta carta ou até que nos encontremos um dia numa esquina de Lisboa, ou na consulta de geriatria.

Talvez a única palavra que interessa te chegue aos ouvidos: obrigado.

30.12.11

Complicações simples

Verdade seja dita que não é complicado.

Nada é complicado, aliás: o mundo, todos o sabemos, é um lugar simples em que as pessoas se amam, os animais são bons e o futuro melhor do que o presente, este já de si melhor do que o passado. É simples. Tudo é simples: o desejo, por exemplo; o amor, que não tem princípio nem fim, é eterno como a chuva (ou o vento, para os mais optimistas); o sorriso da mulher que se ama (ou do homem, para as mulheres e os alegres); as noites cálidas de uma ilha das Caraíbas.

Tudo é tão surpreendentemente simples que me pergunto de onde vem a palavra complicação.

Idades

É estranho viver numa idade em que, quando se quer chocar alguém, se diz "gosto da América".

Conselho, em inglês

Love thy roses.

Diálogos possíveis

- O dinheiro não me faz correr.
- Não, excepto para o bar mais próximo.

Taxas de câmbio

O problema, claro, é encontrar uma taxa de câmbio favorável. Nas Caraíbas a taxa trabalho - rum é excelente; já a trabalho - vinho tinto é francamente desfavorável. Quando preciso de gastar dinheiro - o dinheiro cheira mal, pesa e faz buracos nos bolsos; é preciso gastá-lo o mais depressa possível - hesito muito entre taxas de câmbio, e às vezes acabo por escolher as duas  - a do rum e a do vinho. Quando vou comer ao Rum Baba, por exemplo, de longe o melhor restaurante de Falmouth Harbour.

Também me acontece testar outras taxas, claro. Ou melhor, outras agências: o Skullduggery, que não é bem uma agência de câmbio, mas uma segunda casa, um escritório, um abrigo; o Coconut and Lime; o Mad Moongose.

Não vale a pena: a melhor taxa de câmbio são todas. E mais vale gastar tudo agora do que deixar tudo gastar-se amanhã, sozinho, sem a nossa intervenção.

Aniversário

O Don Vivo faz hoje oito anos, e agradeço a quem mo lembrou. Muito.

29.12.11

Diário de bordos - Falmouth Harbour, Antigua, 28-12-2011

A Ondeck não tem barcos que cheguem para os clientes que tem; por isso trabalho tanto. É bonito, o excesso de trabalho - é como estar pendurado num mastro e ver uma senhora bem articulada passar numa SUP, abençoadas sejam certas vistas, e certas tardes. 

Enfim, excesso de trabalho é um oxímoro. Tudo o que não seja demasiado trabalho é trabalho a menos.

Durmo no fundo do sono, como se o sono fosse um poço.

28.12.11

The Reagan thing

Não se pode fazer com estes o que Reagan fez com os controladores aéreos?

26.12.11

Espiral

Há espirais ascendentes e descendentes. Gosto de todas (mas prefiro aquelas, claro). A espiral é a figura geométrica quase perfeita, uma sucessão de círculos que não são bem círculos, uma figura a três dimensões fácil de representar a duas, uma figura com um fim, um objectivo.

Desenho muitas vezes espirais nos teus seios - uma em cada um. São ambas ascendentes - começo na base e vou subindo devagarinho, em círculos apertados, até ao topo. Depois não desço: recomeço.

Há quem diga que um seio é a base perfeita para uma espiral. Não sei. Não conheço nem espirais nem seios imperfeitos. Sei de algumas, e alguns que são melhores do que todos os outros - os teus e as que neles desenho, em curvas apertadas.

A espiral é uma figura tão nocturna como diurna, alegre em qualquer situação - mesmo as espirais descendentes são alegres, paradoxo incompreensível para as mentes demasiado rigorosas, cartesianas (verdade seja dita que as espirais ascendentes são mais do que alegres, são exaltantes).

Não há figura geométrica mais estimulante do que a espiral.

Diário de bordos - 251211

Ou beta, para os íntimos. Refiro-me ao rum com coca-cola, a que ne Venezuela chamávamos Cuba Libre, ou mentirita, mais apropriadamente. Beta é a versão simples da coisa: rum, gelo e coca-cola. Nada de limão, bitter Angostura ou (na receita do Paolo, de que já por aqui falei) gin. Nada disso tudo. Minimalismo. Menos é melhor.

Também o Natal foi minimalista: uma fondue de queijo no gazebo do Reef Gardens, e hoje um churrasco na Nelson Dockyard. Ligeiramente abaixo de medíocre, o entrecosto. Valeu pela companhia, um casal de israelitas que encontrámos lá. É a única nacionalidade que me faz verdadeiramente ter vontade de ser de um país, o que não deixa de ser paradoxal. Mas enfim on n'est pas à un paradoxe près, como dizia já não sei quem. E pelo ambiente descontraído, bonito, rodeado de barcos lindos.

25.12.11

Amor, verdade

Digo amo-te e pergunto-me o que é a verdade. Não por ter dito amo-te, mas por ter dito. Amo-te é uma construção, uma escalada solitária: não preciso que me ames para amar-te. A verdade é consensual; precisa de outro. Um verdade solitária é uma certeza, uma convicção, uma dúvida até. Mas não é uma verdade. 

Porém, amo-te é uma verdade. Dir-me-ás o amor não tem nada a ver com a verdade: ele gera a sua própria verdade. O amor é um sistema fechado de convicções e dúvidas que se tornam verdades. 

Talvez. Amo-te e é bom amar-te. É uma verdade, não uma dúvida ou uma convicção. Amo-te: é um mundo. Pior: é o mundo, e não há outro.

23.12.11

Mais evidências simples

Aqui.

As coisas, o sal e assim

Então foi assim (não sei se foi assim se foi de outra maneira, mas se foi de outra maneira não poderia começar com então foi assim, e foi assim que a história começou):

Eu vinha na rua, para a pensão onde durmo quando não tenho insónias e não durmo quando as tenho; trabalhei um bocadinho à tarde, mas foi um trabalho leve, agradável como fazer amor no campo à sombra. E o Waterfront, um bar que fica no primeiro andar de um edifício sem qualquer interesse mas é giro (o bar, não o edifício) atravessou-se-me à frente e disse-me "vem beber um copo". "Não vou, tenho esta roupa toda para lavar" e apontei para o fato de oleado, a polar e os sapatos de mar que tinha aos ombros. Ia lavá-los no Reef Gardens, que é o nome da tal pensão. Tem um jardim muito bonito, com vista para a baía e grandes mesas brancas, e um honour bar onde se pode beber o que se quiser (desde que haja o que se quer, o que não costuma ser o caso e nesse caso mais vale querer o que há).

O Waterfront não desistiu e pôs-te à varanda a acenar-me. Não vale dizer que não eras tu, vi-te perfeitamente a acenar-me e a dizer-me "vem beber um copo" e eu disse "não, tenho a roupa de mar para lavar" e vai daí tu desceste e vieste comigo para o Reef Gardens, que tem alguns quartos com ventoinhas e outros com ar condicionado e um jardim enorme com grandes mesas brancas distribuídas um pouco ao acaso.

Depois foi só estender a roupa em cima de uma das mesas, abrir a mangueira e lavar aquele sal todo e ver-te partir com ele, e ver-te chegar como ele me chegou, às vagas e vagas, de dia ou de noite sempre às vagas como te vi quando tu chegares, qualquer dia.

Foi assim, não podia ter sido de outra maneira: tu às vagas e eu submerso em ti, cheio de sal.

És a minha vaga e o meu sal; sem ti as coisas não se passam assim, passam-se de outra maneira. Mas prefiro ver-te alcandorada na varanda do Waterfront a dizer-me "vem beber um copo" do que não te ver; e prefiro ter-te ao meu lado quando lavo a roupa de mar ao fim da tarde no jardim que dá para a baía na qual o dia se escoa como areia infantil numa peneira finíssima, como areia numa ampulheta que mede o tempo que falta até tu chegares, como areia que se mete em tudo o que sou eu, como areia que se me agarra à pele e não me larga, como sal na roupa e na pele e mesmo um bocadinho que passou cá para dentro e agora tenho-te a ti até nos ossos, e ao sal.

Ainda bem que as coisas se passam assim e não de outra maneira.

(Para a T., com muito sal)

Cansaço feliz

Estou cansado, mas não é do excesso de trabalho. É só por ser feliz. Demasiada felicidade cansa tanto como um dia de muito vento e sol; mas é um cansaço bom, um cansaço feliz.

Fortes, meta e fóricas

Havia aquela anedota muito antiga do " Senhor Doutor Juiz, peguei no sinónimo e enfiei-lhe duas metáforas (ou ao contrário, talvez: peguei na metáfora e enfiei-lhe dois sinónimos)". 

Agora não foram metáforas, foram metafóricas; e fortes. 

Aquecimento global

O aquecimento global continua, imparável. Ontem tive de pôr umas calças e uma camisa de mangas compridas para ir jantar.

Glossário

Não é por falta de respeito pelos meus pacientes e tolerantes leitores que este blogue não tem um glossário de termos náuticos. As razões são outras, várias e todas elas igualmente indesculpáveis.

Por exemplo: metodológicas. Não sei se devo fazer um glossário técnico ("brandais são os cabos que sustentam o mastro. Em português clássico, enxárcias") ou explicativo ("brandais são peças essenciais para sustentar o mastro"); ou: vau ("peça perpendicular ao mastro que serve para dar aos brandais o ângulo correcto para sustentar o mastro" ou "peça essencial para sustentar o mastro"?)

Há também uma certa preguiça: dadas as características de um blogue o glossário deveria aparecer em todos os posts, o que seria fastidioso para os leitores e para mim.

Finalmente, uma dose daquela crença em milagres que tão bem (e também) me caracteriza: um dia uma qualquer máquina fotográfica ressuscitará dos dez metros de fundo da marina do Antigua Yacht Club em Falmouth Harbour e os posts serão ilustrados.

Poderia também, claro, não escrever em nautiquês. Mas a simples ideia de escrever qualquer coisa como "caíu a peça que serve para afastar os cabos que sustentam o mastro, essencial para que este se mantenha de pé. Felizmente foi a do lado para o qual sopra o vento (e não aquele de onde vem), se não o mastro teria caído imediatamente" dá-me arrepios.

Uma solução emergirá, estou seguro. Até lá, um bocadinho mais de paciência e tolerância - e, sobretudo, as minhas desculpas.

22.12.11

Feliz Natal






As fotografias são da Lena, os votos meus: Feliz Natal e Ano Novo Próspero a todas e todos os leitores do Don Vivo. 

Diário de bordos - 221211

O AVOCET tem com a bolina e a velocidade a relação que eu tenho com os cem metros barreiras: sabemos que existe, temos imensa admiração e respeito pelos senhores e senhoras que praticam a modalidade, mas não é para nós, obrigado. Verdade seja dita que com o peso e o guarda-roupa que tem já muito faz ele. 

(A maioria dos navegadores que conheço pensa que há um compromisso entre o conforto de uma embarcação e a sua velocidade. Não há: o maior conforto de um barco é ser veloz. Não incluo na equação as máquinas de regata, claro - seria preciso criar uma categoria diferente.)

É um plano Van de Stadt de 1971. É um barco bonito - quase todos os Van de Stadt o são - e poderia ser rápido - idem. Mas tem um mastro "Cape Town" (um metro mais curto do que o normal), as velas são de antes da invenção das velas e - como todos os barcos que servem de casa, sem excepção - tem toneladas de coisas em tudo quanto é sítio. Uma casa acumula tralha ao longo dos anos, é sabido. Um barco acumula dez vezes mais, num espaço dez vezes menor. A diferença é que numa casa esquecemo-nos do que temos, e num barco não: o dono sabe exactamente o que tem, onde e de que caixote do lixo o recuperou. Junte-se a este cocktail um vento fraquíssimo e o resultado é 40' num dia. 

O AQUARELLE tinha três velocidades: 1, 2 e 3 nós; o AVOCET, que é do mesmo clan mas um bocadinho maior, tem 4: 1,2,3 e 4 nós.

............... 
Ainda é muito cedo para contar a história, tanto mais que ainda não acabou. Estamos na marina de Rivière Sense, em Basseterre, Guadaloupe, onde cheguei rebocado por uma vedeta do SNSM (o equivalente francês dos nossos Socorros a Náufragos). Foi a primeira vez na vida - e espero que seja a última - que chamei um reboque para entrar num porto por causa de uma avaria. Mais do que justificá-lo, creio que as condições o exigiam: o vau de bombordo (sotavento) no convés, o de estibordo pronto a seguir-lhe o caminho [estava seguro por um centímetro de aço, numa circunferência de 15]. 

Passámos, a Lena e eu, quatro horas num semi-rígido que mete água mais depressa do que se consegue tirar e perde ar mais depressa do que se consegue encher. Um motor de 15 cavalos, e, num saco de plástico metido dentro de outro, o telefone - o VHF do AVOCET não funciona -, um pacote de bolachas e uma garrafa de água. Quatro horas a rebocar uma embarcação que deve fazer pelo menos 12 toneladas, com um mar felizmente não muito mau mas tão pouco chão. Tirávamos a água com um balde, constantemente; assim que o nível baixava enchíamos os flutuadores (encher é um exagero - púnhamos-lhes ar, o que podíamos); nos intervalos tentávamos manter um rumo mais ou menos direito. Estávamos a vinte e tal milhas da costa e o objectivo era chegar a uma distância com rede para o telefone antes de a gasolina acabar. Conseguimos cerca de meia-hora antes. Falar com o proprietário, acertar os pormenores, chamar a SNSM, descobrir que os serviços são pagos [oh quanto!], pensar nas inúmeras discussões de bistrot em que defendíamos que o deviam ser; e continuar o reboque, até a bateria do telefone se esgotar (já estava fraquinha no princípio) e a gasolina no tanque idem [boa decisão, os serviços da SNSM são pagos à hora e assim poupámos quase uma). 

........
O AVOCET é uma magnífica embarcação, um plano Van de Stadt (já por aqui o devo ter dito) antigo. Não sou grande fã de quilhas corridas, poços centrais, velas grandes minúsculas e genoas a 170%, mas a verdade é que um grande desenho. Infelizmente, sofre com a habitual combinação de falta de massa e viver a bordo - neste caso, em família, o que não ajuda: se numa casa a tralha se acumula sem que saibamos porquê, a bordo sabemos: chama-se o síndroma do "pode-vir-a-ser-útil". É um síndroma que ataca todos os navegadores, sem excepção. Uns mais, outros menos, mas todos o portam. Quanto menos massa se tem mais dele se sofre; se à falta dela se junta o facto de viver a bordo temos a sopa feita e entornada. Assim por alto deve haver uma tonelada de material dispensável acumulado numa total desordem nos diferentes paióis e arrumações. Tudo: ferramentas, utensílios eléctricos (o barco tem um inversor), peças desconchavadas, bombas novas, bombas velhas, dois dinghies - o semi-rígido de que acabo de falar e um coco rígido, sem motor -, uma prancha de windsurf, porcas, parafusos, mosquetões, mais ferramentas, sacos de duche, material para fibrar, material para pintar, ferragens de toda a forma e feitio, cabos das mais diversas bitolas, três ferros - todos eles pesados de mais - jerrycans de gasolina, de água, de gasóleo, mais ferramentas diversas e mais de tudo isto. Tudo a triplicar, quadriplicar - o que não signica que tudo funcione. Há três alicates de pressão, mas todos eles enferrujados; não sei quantas chaves de fendas, mas só uma pequena fracção delas em estado de ser utilizada normalmente; duas caixas com pirotécnicos - mas os de uma delas expiraram em 2009 (e quando perguntei ao Ph. se os podia deitar fora - são perigosíssimos, os pirotécnico fora de data) disse que não. Tudo isto mais velas , molinetes, escotas, "electrónica" (não resisto às aspas, apesar de estar um pouco nas tintas para a dita), mordedores - não há um único a bordo - adriças de outro tempo (por acaso aquele em que comecei a navegar em cruzeiros, pelo que nada disto é uma novidade). Mas imagino o espanto de um miúdo habituado a uma embarcação moderna. O problema é que a manutenção é feita com cordéis, normalmente; e dos mais baratos - se alguma coisa correr mal encontra-se sempre uma solução. Neste caso o que correu mal foram os vaus, que estavam - descobri agora - a partir-se há muito tempo, sendo que a "solução" era ir fazendo marcas para medir a progressão das rachas. O de bombordo foi-se por 15 nós de vento. Às três e meia da manhã estava a Lena de quarto; chamou-me: "o pau de spi despeou-se". Quando saí continuou "não é o pau de spi, é outra coisa qualquer". Era o vau. Pouco havia a fazer: era o vau de sotavento, estávamos a avançar bem, o de barlavento parecia em ordem, de modo fiz pouco: amarrei o brandal para não andar a balançar-se dum lado para o outro, fiz o mesmo ao vau no convés, mas não voltei a deitar-me. 

Às cinco e meia o vento caiu um pouco e fui lá acima, apesar de ainda não ser dia. Dava para ver que o vau não era reparável (ainda tive a esperança de que se tivesse simplesmente desencaixado) e - pior - tacteei o de estibordo e vi que estava a pouco de cá vir parar abaixo. Arreei o pano todo, claro - a vela grande estava toda rasgada - e comecei a pensar no que fazer. Continuar estava fora de questão - pouco mais e teria o mastro no convés; fazer a reparação no mar - no estado de fadiga em que tenho andado parecia-me irresponsável. Uma queda seria mais do que provável, e para além de me magoar a Lena não saberia o que fazer; ir dormir e tomar uma decisão quando estivesse menos canssado - uma excelente solução, mais frequentemente do que se pensa - aborrecia-me porque a deriva nos afastava do caminho [depois vim a saber que derivámos pouquíssimo] e porque não descortinava solução a bordo em tempo útil: ou o vento caía muito, o que a meteorologia não previa, ou teria de passar um bom par de horas, ou vários, pendurado no mastro - perspectiva essa que não me atraía de todo. 

Ou seja: precisava de um reboque. Nunca pedi um, apesar de já ter estado várias vezes em embarcações - e até um navio - que o pediram. É uma coisa que me repugna, tal como regressar ao porto que se acaba de deixar, ou rizar porque "pode vir mau tempo" (riza-se quando o mau tempo chega, não antes). E para pedir um reboque ou esperava que passasse um navio e utilizava os pirotécnicos que estavam o prazo ou utilizava o telefone. Estávamos a 26 milhas da costa. Pouco mais e teríamos rede. Por isso passei quatro horas dentro de um dinghy a cair de podre. A SNSM chegou duas ou três horas depois - o tempo de descansar um bocadinho e pôr ordem no bote. O mestre fez uma manobra de atracção comigo de braço dado que me vai ficar na memória. E cobrou um montante que calo, por vergonha. O senhor que me respondeu ao telefone "não sabia" o custo. Se soubesse talvez não os tivesse chamado e fosse dormir. Não sei. 

Não sei funcionar com se, infelizmente. Talvez os tivesse chamado. Felizmente os franceses são franceses e, por muitos defeitos que tenham têm também algumas qualidades, para além do queijo, do vinho, da Marguerite Duras, le Clézio, Camus, Jacques Brel (que por acaso era belga, mas pouco importa), Serge Gainsbourg, Cognac (prefiro Armagnac, mas não quero dar a impressão de ser pedante), Pineau des Charentes, Yves Montand, Raymond Aron (deixo o melhor para o fim) e muitas outras coisas; e lá consegui chegar a um acordo quanto ao pagamento [hoje enviaram-me um mail a dizer que se "tinham enganado" e afinal a factura era 25% inferior à que me deram inicialmente]. 

......
Saímos de Basseterre dia 20 às 17h30, areboque da mesma lancha do SNSM. Chegámos a Falmouth às 09h30 do dia seguinte - e podíamos ter chagdo ante, se eu não tivesse tido um daqueles esquecimentos em que sou mestre. A média absoluta é de 4,71 nós, mas na realidade viemos em permanência a 6 /7. Parafraseando uma das minhas frases favoritas, "this boat can move, given the right stimulus". O estímulo certo, neste caso, são 25 a 28 nós pelo través (enfim, um bocadinho por ante-a-vante do dito, mas não vamos agora picuinhar).

Os vaus aguentaram, e a vela grande também. esta última não sei por que milagre.

Algumas fotos do iPhone, mais ou menos completamente desordenadas:


Ao fundo, meio escondida pode ver-se a lancha da SNSM.

A marina de Rivière Sens.

A reparação do vau de bombordo começou cá em baixo.

Fica sempre inquietante, um mastro sem um vau.
Peixaria no campo.

Pai em St. George's Town, Grenada

Whisper Cove Marina, Woburn Bay, Grenada

O nosso dinghy após um dia no porto. Antes também estava assim.

Ainda não está tudo. Aguentou quase 30 nós de vento e várias viragens de bordo.
Pai nas alturas.


14.12.11

Diário de bordos - 141211

Parece que está tudo. Nas viagens há um momento assim: um gajo sente que tem de se extrair de onde está. Largamos esta tarde, eu com a esperança de cá voltar em breve, a Lena feliz com a estadia. Grenada é uma ilha magnífica, linda, acolhedora.

.......
Aconteceu há dois dias, na segunda-feira, mas tem ficado por contar porque é daquelas coisas que não se sabe bem por onde pegar. Apesar de ser fácil determinar o princípio da história: comprei um pacote de amendoins no mercado; eram demasiado doces. De maneira dei-os a um senhor que vendia colares. O homem ficou sensibilizado pelo gesto, suponho, e dez ou quinze minutos depois, já noutra secção do recinto, veio ter comigo e disse "tu és o homem que me ofereceu os amendoins". Respondi "sim, sou" e propus-lhe irmos beber um rum, para celebrar (ele estava um bocado grosso, e pensei que não recusaria).

Aceitou imediatamente e levou-me para uma loja numa zona esconsa, labiríntica, apertada. Pedi dois runs e veio uma garrafa pequena, dois decilitros e meio, talvez. Para a pousar e servir os copos só havia uma mesa a poucos metros da "tasca" (entre aspas, porque mesmo tasca é demasiado sofisticado para descrever  o local); e nessa mesa quatro senhores jogavam às cartas.

O resto é fácil de prever: a garrafa de rum foi dividida por todos; e para nos agradecer começaram a cantar de improviso, primeiro à Lena ("you are beautiful, you are beautiful" etc., não percebi a maior parte da letra) depois a Portugal (perguntaram-me de onde era), depois à unidade entre os povos (ou pelo menos pareceu-me).

Foi um momento agradável, apesar de o rum não ser grande coisa: 70º e um sabor a álcool puro - mesmo assim menos pronunciado do que o que comprámos há alguns anos, o Júlio e eu, que fazia 75º e era totalmente intragável. Este só o era parcialmente.

.........
Vamos embora. Os dias em Grenada são bons, como o foram todos os que já aqui passei. E como serão os que passarei.

13.12.11

Diário de bordos - 131211

A coisa começou com "pagas-me o bilhete de avião e eu trago-te o barco, e em troca páro em meia dúzia de sítios no caminho". Chegávamos domingo [chegámos] e largávamos segunda. Não havia nada a fazer no barco, o dono vinha antes e preparava tudo.

Mas houve uma greve dos pilotos da LIAT e o Ph. saíu de Antigua na quinta-feira, como previsto; pousou em St. Lucia e ficou lá o dia todo, mai-la noite; no dia seguinte voltou para Antigua. De modo cheguei no domingo e tive [tenho, ainda não acabou] de preparar o bote para a viagem. E não, não vamos parar em lado nenhum, que tenho trabalho à minha espera em Antigua.

Hoje estava tudo quase pronto: só faltava o gás (encher a garrafa) e a clearance (e as cartas, mas isso é outra história). Porém a companhia de gás recusou-se a encher a garrafa. Diz que tem demasiada ferrugem. Eu olho para ela (garrafa) e vejo inúmeros pontos sem ferrugem, mas eles devem ver as coisas diferentemente de mim.

De forma saímos amanhã, mas já não de manhã cedo. De forma acabo a tarde no Whisper Cove a ouvir Cesária Évora, Joan Armatrading e a beber rum com coca-cola, beta para os íntimos. De forma de novo se confirma a ideia de que é imprescindível ter um plano se se quiser não o respeitar; e mais uma vez se confirma a ideia que a felicidade está ali ao virar da esquina, e que a esquina está em nós.

Ou numa praia do sul de Grenada, que é onde vou levar a minha filha para vermos, ambos, o fim do dia no mar, não vá o fim do dia atrasar-se, ele também.


Um pai a toda a velocidade.


O S/Y "AVOCET", a nossa casa para os próximos dias.








Forçoso é reconhecer que a celeridade era justificada.

Palavras

Se o meu interlocutor fosse a vida, agora só teria duas palavras, ambas em maiúsculas, gritadas, urradas: SIM! e OBRIGADO!

Um vocabulário reduzido, eu sei. É como se houvesse uma relação inversa entre a vida e o vocabulário.

Diário de bordos - 121211

São nove da noite. O Whisper Cove está a fechar, ao som de um pianista que não consigo identificar, mas suponho seja Brad Mehldau [não é. É uma antologia], dos múltiplos guinchos de toda a espécie de insectos, rãs, etc. e de algumas gotas de chuva que se atrasaram.

É pouco provável que consiga sair amanhã, mas não mudo o ETD; continua para amanhã ao fim da tarde.

A felicidade está ao virar da esquina. Basta encontrar a esquina certa. Um dinghy a toda a velocidade nas águas prateadas (é noite de lua cheia) e lisas de uma baía no sul de Grenada; um bar que fecha ao som de uma antologia de jazz; uma filha que se refere à viagem que aí vem como "também, são só cinco dias [de mar, sem escalas]"...

Ou as esquinas. Talvez haja muitas. Não sei. Percebo pouco de felicidade, muito menos do que do seu contrário, ou da sua ausência. Questão de prática: a felicidade é um empirismo. Requer prática.

.....
Yves Montand, vento, sol, verde, azul, calor. Há esquinas francamente simples.

O Gilles e a Marie-France são dois canadianos do Quebec que abriram uma pequena marina em Wobourn Bay, no sul de Grenada. Têm um restaurante, um mini-minimercado, WIFI e a melhor carne que tenho comido por estas paragens. E a melhor música, também. São encantadores.

Algumas nacionalidades têm esta característica: não conseguimos, por mais que tentemos (e apesar de sabermos que os há), encontrar-lhes um gajo antipático, idiota, palerma. Os canadianos do Quebec e os sul-africanos são assim. Ainda não conheci um (em viagem) que não fosse uma pessoa porreira, não há outro termo.

9.12.11

Diário de bordos - 091211

Tinha previsto uma viagem calma, lenta, com várias escalas. Não vai ser assim: tenho que chegar o mais depressa possível. Uma escala rápida em Bequia e será mar, mar, mar. Não é pior: estou a precisar de uns dias de mar.

Factos relevantes:

- Ontem perdi a máquina fotográfica. Caiu à água, por dez metros de fundo. Ficou lá;
- Hoje fui à praia;
- A febre do boat show já passou. É uma feira para profissionais e voltaram para os seus países respectivos. Quando voltar, Falmouth Harbour estará calmo. A maior parte dos mega-iates terá ido para St. Martin. Há menos mulheres, e deixaram de ser todas iguais;
- Já não posso dizer que nunca entrei num ginásio: tenho ido todos os dias, pelo menos duas vezes por dia e às vezes três. O duche da marina é lá.

Vivemos em Antigua, mas conhecemos Falmouth Harbour, Jolly Harbour e a capital, St. John's. É pouco, nada. E não me refiro só às paisagens: a Lena dizia-me recentemente que as pessoas do mar parecem viver noutro planeta. É verdade. O mar é um planeta diferente, quase auto-suficiente: temos os nossos supermercados, os nossos bares, a nossa língua, os nossos códigos. É pena; e a verdade é que me integro tão pouco neste mundo como no outro. As conversas do Skullduggery são as mesmas de qualquer bar de marinheiros em qualquer porto do mundo, e tão chatas.

Ocorrem-me os versos na parede do restaurante em Bequia: "I know them. I am one of them".


Preciso de mar como de respirar. Preciso de mar para respirar.

Aerometro

Alguém me pode dizer a verdade sobre isto? Não acredito que a linha esteja totalmente pronta e o Metro não a ponha a funcionar.

Cinco minutos

Se soubesse escrever escrever-te-ia cartas de amor, longas cartas de amor cheias de encadeamentos brilhantes entre as estrelas e a tua pele, ou entre os teus olhos e as profundezas de uma gruta qualquer na Serra dos Candeeiros (não digo Fossa das Marianas não vás tu pensar que te ando a enganar com uma, ou várias, Marianas. E não digo Canhão da Nazaré porque não gosto de canhões; mas são ambos profundos, repara, e dariam belíssimas analogias com os teus olhos, tão profundos que eles são).

Mas não sei escrever e devo limitar-me a agitar-te palavras à frente como se te dissesse "olá amor acorda está na hora temos de ir trabalhar" e tu estremunhas e esfregas os olhos (primeiro um depois o outro, nunca os dois ao mesmo tempo) e dizes-me "quero dormir mais cinco minutos" e eu respondo "sim", claro, porque já sabia que as minhas palavras não te acordariam tal como as minhas mãos de manhã não te acordam tal como estas palavras que te agito à frente dos olhos são mais um cobertor nestas manhãs frias e tu aconchegas-te nelas e dormes mais cinco minutos e não são dedos que te percorrem como o vento percorre a superfície do mar e nela deixa uns traços que se desvanecem logo a seguir.

Ao menos isso, repara, embrulhas-te nas palavras e dormes; talvez sejam elas que te percorrem a pele e nela deixam traços que não se vêem a menos que tenhamos olhos particularmente treinados - tal como os cinco minutos de sono que todas as manhãs me pedes só se vêem se olharmos muito bem para eles.

São cinco minutos só, repara, passam num instante mas é assim que começamos o dia, tu embrulhada nas palavras e eu em ti, no teu sono, nas tuas coxas tão duras, no arfar simples das palavras "deixa-me dormir mais cinco minutos" "sim" "sim" "sim".

Usque ad finem

Usque ad finem significa até ao fim. Reconhecer que as coisas têm um fim é um progresso; e que se deve tocar esse fim como o nadador toca a borda da piscina antes de voltar para trás.

Humanismo

Não há ideologia menos humanista do que o comunismo, mas são poucos os comunistas que o sabem.

8.12.11

Anti pedagogia

O homem deu em anti-pedagogo. Depois de nos lixar o país, acha que é a vez das crianças.

PS - Isto dito, esta versão parece a boa, ao economicamente leigo que sou.

7.12.11

Tadinho tadinho

Ver João Galamba acusar o Governador do BP de "sacrificar o rigor técnico da supervisão financeira para assumir uma linha política" é como ouvir o Pai Natal duvidar da existência do Natal.

PS - isto vindo de um artista da economia ainda é mais patético. Ou é mais triste, não sei.

6.12.11

Coisas simples

Meias acasaladas

É ler, rapaziada. Está tudo aqui. Depois não digam que não foram avisados.

"A noite, o que é?"

Jean Boaventura Sousa Ziegler

Jean Ziegler está dois ou três níveis acima do nosso Boaventura na escala da má-fé e cegueira intelectuais.

Ou abaixo.

Diário de Bordos - Falmouth Harbour, Antigua, 05-12-2011

Falmouth Harbour está cheio, a abarrotar. O boat show dos mega-iates encheu isto de caras novas, todas iguais, apesar de algumas serem loiras, outras morenas, ruivas (poucas) ou pretas (menos ainda). São todas sobretudo barulhentas. "Estás velho", diz-me a Lena; "estás velho", ecoa P., quando lhes faço o comentário. "Pois estou. É bom estar velho. Eu gosto, pelo menos".

Descubro na minha filha uma excelente conversadora, com argumentos lapidares, justos, precisos. Deve ser por isso que faz leme tão bem (não sei qual é a relação, mas deve haver uma, escondida quelque part).

Não sou de muitos amigos, mas sou de grandes amizades.

Domingo que vem vamos para Grenada buscar o barco de Ph., um "clássico" de quarenta anos, sem motor e com um leme de vento, coisa que não uso há quase quarenta anos. Quase. É uma troca: em contrapartida posso mostrar à Lena os meus sítios favoritos nestas ilhas: Bequia, Bequia, Bequia, Deux Pitons, Wallilabou Bay; e Grenada, claro. Gosto de St. George's Town quase tanto como de Bequia, San Juan, e outras cidades nas quais nunca somos estrangeiros, mesmo que nunca lá tenhamos ido, ou só de passagem.

Vamos ouvir um casal de músicos espanhóis que nos apareceu aqui caído das nuvens. Parece que é bom. É ao lado do Skullduggery: se for mau não se perde muito tempo. E a rapariga é bonita; se for mau nem tudo está perdido.

Gosto muito das pessoas, mas não gosto da superfície das pessoas. Deve ser por isso que não sou de muitos amigos.

Qualquer dia a minha vida de vagamundo acaba. Só espero duas coisas: que acabe, e que esse dia venha longe.

O amor é uma coisa estranha: resiste a tudo menos à falta de amor. Já a vida não é assim: resiste a tudo.

5.12.11

Palhaços, seguramente

A Jugular School of Arts não nasceu do vazio, claro. Esta é digna dos melhores artistas do circo (refiro-me aos palhaços, naturalmente).

PS - O Prelúdio de uma Resposta está cheio de comentários sobre a grosseria do Governador do Banco de Portugal - que aparentemente tem de ouvir impávido e sereno a coisas como "não é verdade" e não pode reagir; mas tem muitos poucos comentários técnicos. O que lá está desmente João Galamba. Talvez fosse interessante explicarem-nos porque é que um deputado pode dizer que alguém está a mentir e a pessoa que o ouve não tem o direiro de responder com um argumento que, aliás, é sobejamente vero: má fé intelectual. E, mais ainda, seria magnífico se apresentassem argumentos técnicos para contradizer o que Carlos Costa disse.

Mas enfim, vivemos num país de vítimas, e vitimizar-se rende decerto muito mais votos.

PPS - Isto para além de ser questionável a autoridade moral de um deputado que preferiu sair da sala a votar contra as instruções do "seu" partido (aspas porque João Galamba é "independente"). Carlos Costa, pelo menos, disse o que pensava.

4.12.11

Diário de bordos - 041211

Mais um ciclo que acaba: uma ida relâmpago a St. Martin, e hoje mini-regata daquelas "largamos daqui a 5 minutos, ok?".

É preciso desconfiar das primeiras impressões. Ontem gostei de St. Martin (por causa de St. Martin, não da empregada brasileira do bar onde tive esta revelação). Foi um dia cansativo: chegámos às quatro da manhã; às oito estava no escritório da marina. Clearance, duches, pequeno-almoço - cheguei ao ship chandler às dez e saí de lá às 5 da tarde, com um breve intervalo para o almoço e a dupla epifania: desconfiar das primeiras impressões e gostar de St. Martin.

Em português um ship chandler é uma loja de aprestos marítimos. Um marinheiro - qualquer marinheiro - fica feliz quando vê um bom ship chandler, tão feliz como uma dona de casa num hipermercado das coisas exóticas, raras, bonitas com as quais ela sonhou toda a sua vida. Foi lá que passei o dia, acompanhado por um vendedor chamado Rex a fazer compras para a empresa. A lista de items era maior do que a lista de desejos de uma adolescente, mas a Island Water World tinha praticamente tudo aquilo que dela constava.

Almocei ao balcão de um barzito de uma das marinas da laguna. A empregada era brasileira, a salada de polvo não sei de onde e também era óptima; ouvia falar francês, inglês e espanhol como se estivesse no centro de traduções de uma conferência internacional. Enfim, não vale a pena tentar perceber: estava enganado.

Da viagem pouco há a dizer: dezasseis horas à ida e aguaceiros, vento, frio, chuva a jorros à vinda.

Dias: zero ou um, com pouco no meio, quase nada.

Para fazer leme é preciso paz; quero dizer, estar em paz. Fazer leme é português recente. Quando comecei a falar dizia-se governar. Em inglês é to steer e em francês barrer. Gosto mais de governar. Para governar é preciso estar em paz.

Cheguei cansado. Quando fui fazer a clearance sentia-me um zombie; depois recuperei. É curioso como o cansaço muda: dantes não dormia três dias e de repente caía-me em cima como um martelo. Hoje não durmo dois e a fadiga vai-se acumulando numa caixa que de vez em quando se entreabre e deixa sair um bocadinho. Como puns, uns mais malcheirosos do que outros.

Dormi dez horas seguidas. Não foi bem dormir, foi uma espécie de pequena morte, um coma profundo, reparador: não acordei, ressuscitei.

De uma forma geral - há excepções, claro - as brasileiras são feias. E são prodigiosas a fazer-nos esquecê-lo.

Um dia vou deixar de gostar de navegar; mas não consigo imaginar como serão os dias depois desse. De que serão feitos, de que tristezas, cansaços? Não há melhor cansaço do que o do mar, nem tristezas mais irrelevantes.

3.12.11

Aterrar

Um gajo chega a terra e há milhares de coisas importantes a fazer, ouvir e ler; e algumas menos importantes.

Esta faz parte das segundas; mas meu Deus, dá um gozo comparável às primeiras. Finalmente alguém desgalamba o Galamba.