O espanhol do Panamá é incompreensível, mesmo para quem aqui vive - e convive - há muitos anos. Ontem andava às voltas pela zona chic de Colon num automóvel que comparado aos táxis em que tenho andado é um carro de luxo e pensava que tinha sido raptado por uma nave de extraterrestres. Não percebia rigorosamente nada do que se estava a passar. Colon é uma cidade nocturna: é melhor vista de noite, mesmo a zona burguesa. Parávamos à frente de uma casa e uma das ocupantes - uma jovem de 15 anos que parece ter 20 e já deve ter vivido 25 - saía do carro, entrava na casa, saía da casa, entrava no carro. Algumas, breves palavras eram trocadas entre os três outros ocupantes (inclui o condutor, aquilo era uma nave espacial tripulada) e lá íamos para outra.
Até que numa das paragens a cena não se repetiu: a jovem ninfa não voltou a entrar no carro e fomos (o tio, a mãe da dita e eu) para um restaurante. Fomos é uma verdade parcial, demasiado activa para descrever o que se passava comigo. Eu não fui. Levitei, derivei, pairei (é um termo náutico) sentado no banco de trás do carro a ouvir sons estranhos, com pessoas estranhas, numa paisagem meio lunar até perceber que o carro estava a ser estacionado e que aquela paragem seria longa.
O restaurante definia-se como uma
Parrillada, uma coisa cuja tradução em português seria Churrascaria. Utilizo o condicional: aquilo não parecia um restaurante. A primeira associação de ideias que fiz foi com a sala de convívio de um local de escuteiros, ou clube da terceira idade de uma aldeia remota num livro do Milan Kundera.
Mas era um restaurante, e entretanto a namorada do jovem que até ali tinha conduzido o carro - uma igualmente jovem estudante de enfermagem - juntara-se a nós. Eu continuava mais ou menos a flutuar algures entre a lua, desde sempre o meu planeta favorito e Marte, ou Júpiter.
Depois aterrei. Fui para um hotel que me tinha sido descrito como o mehor do Colon e me fez pensar que estava numa versão meia estrela do Polana, ou num filme de terror: pedi um copo de vimho branco, quando cheirei o vinho perguntei ao barman há quanto tempo estava a garrafa aberta. "Não sei. Talvez quatro ou cinco meses", respondeu. "Meses ou dias?" "Sim, meses, Quatro ou cinco. Aqui ninguém bebe vinho. o vinho estraga-se, se ficar aberto?".
Mas a vista era linda, na verdade. E ao lado do hotel e da piscina onde bebia vinho branco (comprei uma garrafa, o dia tinha sido definido, havia já algumas horas, como sendo para a desgraça) estavam dois navios encalhados, dois navios pequenos - tão pequenos que os armadores acharam que não valia a pena tirá-los dali -.
Foi um dia bom, e nada desgraçado. Descobri um lado de Colon que não conhecia, conheci pessoas da média burguesia colonense que me trouxeram à memória a cena do Annie Hall em que o Woody Allen vai visitar os por assim dizer sogros, andei pelo espaço sideral e gastei um monte de massa em muitas coisas; entre as quais um frasco gigante de Fahrenheit (na zona livre) e uma caixa de charutos Robaina, abençoado seja o senhor que os trouxe de Cuba e mais ainda o que mos vendeu por sessenta - sessenta - dólares, vinte e cinco coronas (ou prominentes, não sei. Mas aposto mais no primeiro) frescos, suaves, a cheirar a terra e a felicidade pura.
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Fartei-me de dar charutos, nunca conseguirei fumá-los antes de secarem, e apesar disso ainda tenho quinze (acabo de os contar. Gosto de abrir a caixa e cheirá-los. É bom. Li recentemente que a vida é uma troca de cheiros. É).
Dentro de três ou quatro dias deixamos Shelter Bay. Alguém disse que o importante numa viagem não é a chegada, é a viagem; sítios como Shelter Bay fazem-me pensar que a partida é o mais importante. Talvez Shelter Bay seja uma sinédoque.
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Cada um de nós tem uma Ítaca., cada um uma Tróia.
"
Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes,
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
..."
(Kavafis, não sei de quem é a tradução)
(Hoje o KIKI mudou de nome. Chama-se HELENA S.)