31.8.13

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 31-08-2013

O taxista que esta manhã me trouxe de Colon para a marina chama-se José, é um homem enorme e só trabalha com o seu táxi aos fins de semana, quando não exerce a profissão de supervisor de atracagem no porto de Colon.

Hoje excepcionalmente comecei a falar de política - vai haver eleições (primárias, mas o país está suspenso) em breve e tive vontade de ouvir a opinião de um jovem dinâmico e empreendedor -. Passada a fase da política doméstica passámos à internacional. Mais uma vez confirmei que nós, aqueles que acreditamos no capitalismo e no liberalismo perdemos definitivamente a batalha da comunicação.

"Fidel e Chavez são capitalistas", diz-me José sem sombra de ironia na voz. "Querem tudo para eles e nada para o povo (a transcrição não é verbatim)". Tem razão, claro: Fidel e os que pensam como Fidel querem tudo para eles e nada para o povo. Mas isso não faz deles capitalistas. Faz ditadores, opressores e ladrões, mas de todo não capitalistas, José.

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 30-08-2013

O espanhol do Panamá é incompreensível, mesmo para quem aqui vive - e convive - há muitos anos. Ontem andava às voltas pela zona chic de Colon num automóvel que comparado aos táxis em que tenho andado é um carro de luxo e pensava que tinha sido raptado por uma nave de extraterrestres. Não percebia rigorosamente nada do que se estava a passar. Colon é uma cidade nocturna: é melhor vista de noite, mesmo a zona burguesa. Parávamos à frente de uma casa e uma das ocupantes - uma jovem de 15 anos que parece ter 20 e já deve ter vivido 25 - saía do carro, entrava na casa, saía da casa, entrava no carro. Algumas, breves palavras eram trocadas entre os três outros ocupantes (inclui o condutor, aquilo era uma nave espacial tripulada) e lá íamos para outra.

Até que numa das paragens a cena não se repetiu: a jovem ninfa não voltou a entrar no carro e fomos (o tio, a mãe da dita e eu) para um restaurante. Fomos é uma verdade parcial, demasiado activa para descrever o que se passava comigo. Eu não fui. Levitei, derivei, pairei (é um termo náutico) sentado no banco de trás do carro a ouvir sons estranhos, com pessoas estranhas, numa paisagem meio lunar até perceber que o carro estava a ser estacionado e que aquela paragem seria longa.

O restaurante definia-se como uma Parrillada, uma coisa cuja tradução em português seria Churrascaria. Utilizo o condicional: aquilo não parecia um restaurante. A primeira associação de ideias que fiz foi com a sala de convívio de um local de escuteiros, ou clube da terceira idade de uma aldeia remota num livro do Milan Kundera.

Mas era um restaurante, e entretanto a namorada do jovem que até ali tinha conduzido o carro - uma igualmente jovem estudante de enfermagem - juntara-se a nós. Eu continuava mais ou menos a flutuar algures entre a lua, desde sempre o meu planeta favorito e Marte, ou Júpiter.

Depois aterrei. Fui para um hotel que me tinha sido descrito como o mehor do Colon e me fez pensar que estava numa versão meia estrela do Polana, ou num filme de terror: pedi um copo de vimho branco, quando cheirei o vinho perguntei ao barman há quanto tempo estava a garrafa aberta. "Não sei. Talvez quatro ou cinco meses", respondeu. "Meses ou dias?" "Sim, meses, Quatro ou cinco. Aqui ninguém bebe vinho. o vinho estraga-se, se ficar aberto?".

Mas a vista era linda, na verdade. E ao lado do hotel e da piscina onde bebia vinho branco (comprei uma garrafa, o dia tinha sido definido, havia já algumas horas, como sendo para a desgraça) estavam dois navios encalhados, dois navios pequenos - tão pequenos que os armadores acharam que não valia a pena tirá-los dali -.

Foi um dia bom, e nada desgraçado. Descobri um lado de Colon que não conhecia, conheci pessoas da média burguesia colonense que me trouxeram à memória a cena do Annie Hall em que o Woody Allen vai visitar os por assim dizer sogros, andei pelo espaço sideral e gastei um monte de massa em muitas coisas; entre as quais um frasco gigante de Fahrenheit (na zona livre) e uma caixa de charutos Robaina, abençoado seja o senhor que os trouxe de Cuba e mais ainda o que mos vendeu por sessenta - sessenta - dólares, vinte e cinco coronas (ou prominentes, não sei. Mas aposto mais no primeiro) frescos, suaves, a cheirar a terra e a felicidade pura.

........
Fartei-me de dar charutos, nunca conseguirei fumá-los antes de secarem, e apesar disso ainda tenho quinze (acabo de os contar. Gosto de abrir a caixa e cheirá-los. É bom. Li recentemente que a vida é uma troca de cheiros. É).

Dentro de três ou quatro dias deixamos Shelter Bay. Alguém disse que o importante numa viagem não é a chegada, é a viagem; sítios como Shelter Bay fazem-me pensar que a partida é o mais importante. Talvez Shelter Bay seja uma sinédoque.

........
Cada um de nós tem uma Ítaca., cada um uma Tróia.

"Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes,
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
..."
(Kavafis, não sei de quem é a tradução)

(Hoje o KIKI mudou de nome. Chama-se HELENA S.)

28.8.13

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 28-08-2013

É muito cedo, como sempre; não há vento nenhum. Também é frequente. Mas há sol - acabou de sair de trás das árvores, ainda meio encoberto, mas está lá -; e não há sinais de chuva para já. Muito mais raro. A maré mudou, definitivamente (enfim, até à próxima mudança, claro. Que venha longe). O futuro HELENA S. trouxe boas vibrações a este projecto, que tanto delas andava precisado.

A cabeça do motor do Artie não precisa de rectificação. É uma boa notícia, equilibrada claro por o kit de juntas não ter chegado completo. Mas com isso podemos nós. E não há dinheiro para fazer tudo o que queria fazer; idem.

Começo a ver o fim da estadia em Shelter Bay Marina, começo a cheirá-lo. Não tarda um fósforo estaremos em Antigua, todos; a vida recomeçará.

25.8.13

Amor, mutilação

O amor é uma medida daquilo que não temos, não somos. Amo-te: preciso de ti; amo-te muito: preciso muito de ti. Fazes-me muita falta.

O amor é a medida da nossa incompletude, imperfeição, mutilação.

Jantar improvisado - Carne de vaca à bruta

Que o jantar de ontem ia merecer honras de post foi coisa que nunca me passou pela cabeça. Estava naqueles dias; mais propenso a mistela do que a boas surpresas. As quantidades são as mesmas para todos os ingredientes: muito. Muito mesmo. Daí o nome.

Comecei por refogar uma cebola grande e um bom bocado de gengibre, muito alecrim - uma embalagem quase cheia - e a carne (a qual ainda estava congelada, mas isto não se pode dizer a ninguém). Para ajudar ao descongelamento pus uma boa porção de rum e flambeei. Repeti isto duas vezes, e como a carne nem assim descongelou fui para o poço fumar um cigarro. Quando voltei pus orégãos, curcuma e pimenta de Cayenne. Um bocadinho de sal (deve ter sido o único ingrediente que foi para o tacho comedidamente), cobri com água e - milagre - uma hora depois estava delicioso. A mistura de gengibre, rum e alecrim faz milagres em corações destroçados, palatos exigentes, corpos com fome e outras bestas que por aí pululam, escondidas nas voltas do mar e nas esquinas das vidas.

Dias...

...a galope no garanhão do tempo aos pinotes como cowboy de rodeo numa montanha russa bêbeda em pleno temporal.

24.8.13

Amar-te...

...ao meu lado por cima por baixo, pensar-te lembrar-te imaginar-te, hoje amanhã para desde sempre.

23.8.13

Futuros passados

O mais difícil - e melhor, de longe - não é esquecer o que fomos, o que foi; é aprender a esquecer o que teríamos sido. O que teria sido.

Um pouco de rum e muita endorfina: há melhor maneira de terminar um dia?

22.8.13

Fragmentos antigos

... a cama, minha querida, é um acessório do coração e não este um acessório dela.

21.8.13

Shelter Bay Marina, Shelter Bay, Panamá, 20-08-2013

Algumas vidas são uma montanha russa; outras uma sucessão de precipícios, ou de cumes. Outras uma mistura de tudo isto: cumes, precipícios, montanhas russas, subidas vertiginosas, descidas.

Ontem à noite era um skipper despedido, hoje de manhã sou armador de duas embarcações de vela. Uma chama-se ARCTIC FRONT, é um cutter sloop em aço de 44' desenhado por Bruce Roberts e construído na Califórnia. A outra é um catamaran Kelsall 52' do qual pouco ou nada sei, se não que é entusiasmante. Chamar-se-á HELENA S. e vai de certeza merecer o nome.

Se se optar pela versão da vida como montanha russa deve precisar-se que é daquelas que têm loops. A empresa que entretanto está em vias de ser criada no Panamá chama-se Make Fast Yachting: mais palavra menos palavra a empresa que me levou para Lisboa em 2002, cheio de ilusões, esperança e dinamismo, por ordem crescente.

Agora tenho ainda menos ilusões - o que me espera não vai ser fácil - mas mantenho intactos a esperança e o dinamismo. Ingredientes fundamentais, sem dúvida; mas que de pouco serviriam se não tivesse M. a meu lado. E, em Fevereiro o meu filho T. Desta vez o soufflé tem os ingredientes todos para crescer. Esperemos apenas que não seja um soufflé.

O plano mantém-se: Bocas del Toro, Caraíbas, Mediterrâneo, com uma possível digressão pelas San Blas e por Cartagena se Bocas del Toro não funcionar. É preciso ter um plano se se quiser poder não o respeitar. Eu tenho dois: pode ser que o terceiro saia certo.

Vai sair. Chama-se SYNCHRONICITY e é lindo de morrer. A Make Fast Yachting é como o Macunaíma: quando nasceu já tinha seis anos.

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Isto dito, fica uma palavra de apreço pelo Marina Hotel, na Marina de Shelter Bay. Fomos impecavelmente tratados durante a agitada e movimentada noite de ontem.

Shelter Bay Marina, Shelter Bay, Panamá, 19-08-2013

M. chamou-lhe "travessia demoníaca"; foi muito mais do que uma travessia, mas nada menos do que demoníaca. E foi, para mim, o momento de viragem: ou volto ao meu former self ou sou esmagado por um bando de demónios sem freio, bêbedos, vingativos, medonhos.

O refit correu mal. Saber que no Panamá nada corre bem não me alivia a suspeita de que poderia ter feito melhor. No caminho o motor voltou a aquecer; vários episódios depois queimei a junta de cabeça. Ficámos dois dias (três noites) fundeados em Gamboa, a meio do Canal. Quando chegámos a Colon não pudemos ir para a Marina devido a um daqueles conjuntos de circunstâncias nos quais uma delas ser domingo parece a mais fácil de resolver. Ou seja, mais uma noite fundeados.

De manhã levantámos (enfim, a tripulação levantou, sem motor não há guincho) ferro; avisei o Canal de que ia atravessar para o lado Oeste, à vela; que esperasse, responderam-me, "há tráfico a chegar". Estou a ver o navio que aí vem; nada disso, "vem outro atrás que vai atracar. Espere onde está".

Vale tanto a pena discutir com a Autoridade do Canal do Panamá como contestar a presença de uma baixa pressão num sítio qualquer, pelo que esperei. De tal maneira que a certa altura me enfiei num navio ali fundeado. Os estragos não foram maiores porque o Artie é uma espécie de cofre-forte flutuante. Quando finalmente consegui atravessar o vento caíu - não sem antes perdermos o dinghy (recuperámo-lo, claro).

Há uma frase qualquer em francês que diz "boire le calice jusqu'à la lie" (ver aqui. Literalmente poder-se-ia traduzir por beber o cálice até às borras). Esta travessia foi a lie. As borras. A borrada final. O ponto final. Tenho sorte com a tripulação, nunca é de mais dizê-lo. Aqui fica o meu obrigado, M., N., G.).

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Para além do impacto destas coisas no meu por assim dizer estado de espírito há outra vantagem nisto tudo: cada vez é mais seguro que o futuro da Make Fast Yachting está na mistura mágica de Caraíbas e Mediterrâneo, Antigua e Palma. Já nelas vivi, já pelo menos numa delas morri: que mais querer para ter a certeza que são ambas tanto a minha terra como Lisboa, Genève ou Lourenço Marques?

Montanhas, subir e descer

Pode subir-se uma montanha de cada vez; ninguém consegue subir duas. Como fazê-lo? Uma perna em cada? Agora uns passos numa, agora outros na outra?

Já para as descer é mais fácil: podem ser mil simultaneamente.

20.8.13

Erros e erros

Por vezes enganamo-nos na pessoa, amamos a pessoa errada. Por vezes essas pessoas merecem ser amadas, valem o erro; outras não.

15.8.13

Retrato possível

Não é propriamente um engatatão; deixa-se engatar com facilidade, é tudo. Tal como nunca deixa uma mulher: faz-se deixar.

13.8.13

O princípio do affaire

Um dia viu-a na rua e deu-lhe um par de chapadas e um beijo. Infelizmente não se lembra por que ordem.

Vida, desequílibrio, cavalheirismo

A vida é um desequilíbrio permanente entre as coisas que são o que são e as que não são o que deviam ser. Não devemos aceitar cegamente as primeiras nem lutar desesperadamente para corrigir as segundas.

Fim de noite em Panamá

Pouco a pouco a cidade vai saindo de mim; e eu dela. Não suspeitava quanto estávamos entranhados. É a minha última noite sozinho em Panamá e sinto-me com o direito de a gozar ad valorem.

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Carlos senta-se na minha mesa. Pergunta-me se é importuno. Digo-lhe que não. Já jantei, estou naquela esplanada porque é a única no Casco Viejo que tem charutos (hoje só Cohiba, mas não faz mal). Digo-lhe que sou português e começa um improviso que inclui estar longe de casa, a Virgem de Fátima e qualquer coisa mais que, misericordiosamente, esqueci.

Depois pergunta-me se gosto de alguma música latina. Peço-lhe que toque um Mariacchi. Toca-o bem, improvisa a letra, canta o longe de casa e outras banalidades. Bem. Penso numa voz que o acompanharia, na cidade que em breve deixarei, na facilidade com que os objectos encontraram o seu lugar no quarto de hotel que tão bem conhecem, em quão farto estou de quartos de hotel, em quantos mais me esperam.

12.8.13

Diário de Bordos - Boquete, Panamá, 11-08-2013

À primeira vista o restaurante não deixava prever nada do que ia acontecer: vazio, móveis do mais kitsch que há, decoração abominável, música a soma dos dois, televisões em todos os cantos. Mas dizia-se argentino, e eu arrisquei pedir um bife muito mal passado. E mal passado ele veio, ao fim de meia hora de espera. Quase três dedos dos meus de altura, quase de se cortar sem faca, quase cru. Bem acompanhado por um Shiraz / Malbec e pelo silêncio, quando finalmente me fartei e pedi à empregada, invocando a minha qualidade de cliente único, que baixasse a música (ela percebeu e apagou-a).

A Posada Boqueteña näo merece uma hora de avião, mas vale facilmente os dez minutos a pé desde o hostel onde o acaso me hospedou.

Boquete fica a mil e duzentos metros de altitude. O governo panamiano quer promovê-la como destino de montanha, fresco. De fresco tem pouco: ao fim de cinco minutos de marcha às onze da noite o meu casaco de linho beige, comprado com grande sofrimento em S. Francisco torna-se supérfluo; mais cinco e é preciso tirá-lo. Mas montanha é, sem dúvida. Ouve-se o correr da água ao longo das ruas (para alguma coisa serve a chuva, os riachos estão a abarrotar) e vêem-se luzinhas a tremelicar nas alturas - não são estrelas, o céu está completamente nublado.

Saio do restaurante a pensar nas saudades que tenho do Ca na Chinchilla, da 5ª Puñeta, do Lizarran. Ah, Palma, que primeiro me encheste o coração e mo roubaste depois!

Boquete não é particularmente bonito nem particularmente interessante. Escala de mochileiros, como o Panamá todo parece ser (enfim, o que eu conheço, bem pouco; e exceptuando a cidade, muito mais do que isso).
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Quarta-feira atravesso o Canal do Panamá. Para celebrar a ocasião comprei um livro sobre a sua história; ao que parece o livro sobre o Canal, o documento, o monumento. Foi publicado em 1976 mas continua a vender-se como pãezinhos quentes. Chama-se Path Between the Seas, é de um senhor chamadp David McCullough e lê-lo é uma delícia.

Uma vez mais se confirma que há coisas nos países que não mudam. Quem conhece isto apreciará decerto o seguinte excerto: "The point that he [George M. Totten, um engenheiro americano que participara na construção do caminho-de-ferro do Panamá e acompanhou de Lesseps na sua (de Lesseps) primeira viagem ao país] does seem to have stressed - the great lesson to be learned from his experience - was that everything, everything, had to be brought to Panama, including the men to do the work". Isto em 1879.

10.8.13

Hallelujah

Escava um milhar de beijos e encontrar-me-ás olhando para ti e perguntando porque demoraste tanto? Mil beijos não é nada para quem tem um milhão enterrado no jardim; e tu dir-me-ás mas eu não tenho um sequer, secaste-mos todos, não sobram nem para as lágrimas que me sobram ainda, tão poucas.

Hallelujah.

Coisas, palavras, vazio

As coisas não deviam esbarrar no vazio. Comecemos por definir coisas, e depois vazio.

Coisas são: palavras; gestos; emoções; sentimentos; objectos. 

Vazio é: ausência de coisas. 

As coisas não deviam esbarrar contra a sua ausência, como se a ausência de coisas (isto é: palavras, gestos, emoções, etc.) fosse uma presença. Como se a ausência fosse uma barreira sólida, física, intransponível. Como se o silêncio fosse uma coisa, uma pedra ou uma emoção. Medo, por exemplo.

O medo não é nada porque nunca esbarra contra o que quer que seja. O medo dissipa-se como uma pedra de gelo num café quente (em cujo caso se transforma - e ao café - num mazagran, o melhor dos refrescos).

Ou seja: o medo não é uma coisa porque não pode bater contra a parede da ausência de medo. Não há ausência de medo. Não há uma parede que separe o medo do resto das coisas. Quem diz medo diz outras coisas, claro. 

As palavras podem esbarrar contra a ausência de palavras, contra aquilo a que algumas culturas chamam silêncio. As palavras são coisas. A ausência de palavras  não é uma coisa. É o vazio. 

A ausência de uma pele, um olhar ausente, um corpo que hesita porque há uma parede entre ele e os outros corpos não são coisas. 

São o vazio.


(O som é medonho, mas as cantoras são giras.)

Stuck, unstuck

Falo com estrangeiros que escolheram viver no Panamá (ao contrário dos expat que aqui estão por causa das empresas onde trabalham e sabem que dentro de dois ou três anos partirão) e pergunto-lhes de que gostaram no país que os fez ficar. "I got stuck here", é o fim de resposta mais frequente.

Nas Antilhas as pessoas estão porque querem, gostam, porque são unstuck.


Coisas bonitas

Histórias tristes / felizes

É a história triste de uma centopeia que lutava contra duzentos fogos ao mesmo tempo; veio um bombeiro e esmagou-a.

Ou feliz: queimou metade dos braços mas sobreviveu.

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 09-08-2013

Ainda não encontrei um restaurante português no estrangeiro no qual comer fosse uma experiência agradável; o de Panamá não só não é uma excepção a essa regra como a eleva a potências insuspeitas.

É límpido que com esta idade já devia ter aprendido a evitar experiências que só me provocam dor e pouco proveito. Porém a linha que separa o optimismo da estupidez é ténue (a do pessimismo também; mas fraco é o consolo).

Decididamente a cidade de Panamá e eu somos incompatíveis. (Sou injusto: não há lugar no mundo com o qual hoje sou compatível).

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Quarta-feira atravessamos o Canal. Comprei um livro sobre a sua história. Ainda vou no segundo capítulo, mas já posso invejar o entusiasmo com que o século XIX abraçava os grandes projectos. Penso no equivalente hoje: a ida à Lua, as viagens espaciais, a cura do cancro ou da depressão. Parece que se trata da morte de uma mosca ou duas.

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Estive em Bocas del Toro, um golfo  cum arquipélago lindo de morrer, ou viver. É para lá que vamos com o Artie - primeiro acabar com o refit (esta palavra já me dá náuseas) e depois trabalhar. O sítio foi descoberto por backpackers; hoje é um pólo de turismo barato; em breve será um destino de turismo caro. Os países que desprezam os backpackers cometem um grande erro.

7.8.13

Insatiado

Para quem não está satiado.



(Isto é lindo de morrer.)

Como seixos na água da lagoa azul em sintra


ou na praia de sines






Pedras, águias, búzios

Galinhas pedregulhos águias quem larga o quê onde? Esmagam penas que caem de corpos sem penas sem culpas leves como búzios



"na ponta do medo"... "pois eu vou mexer no destino / vou mudar-te a sorte"

6.8.13

Outra vez nunca mais

diz outra vez por favor nunca mais nunca mais nunca mais outra vez

Lado a lado

Implacáveis brutais violentos tremendos silêncios assassinos malditos vogam no meio dos destroços ruínas naufrágios devastação cinzas submersas no meio dos dias e das ruas sem luz sem azul sem vento sem sem sem

grandes chamas cinzentas labaredas queimam alastram irrespirável o ar   a luz queimam

com tubarões sem culpa e galinhas coitadas sem penas cheias dela

lado a lado.

5.8.13

Psico e somático

Uma das grandes vantagens da idade é que os males psico estão sempre acompanhados por males somáticos, e vice-versa. É bom; ajuda a equilibrar e a relativizar.

3.8.13

Sempre aberta

A ginginha está quase a fechar e com ela fecham a noite, o eterno procurar pelos filhos  e os amigos, a ideia de que uma mãe deve saber sempre onde anda o filho e se este estiver a mais de cinquenta centrímetros de distância ela é uma má mãe, ponto.

Asfixias, moral

A superioridade moral da esquerda é uma coisa que não deixa de me fascinar, cada vez que lhe vejo uma manifestação. Basicamente, consiste em dizer vamos asfixiar-vos porque vos amamos e queremos o vosso bem.

(O que me fascina é que os asfixiados ainda agradecem.)

Bolbo de proa

Uma espécie de coisa ferida, magoada, cheia de cicatrizes; porém imponente, sólida, inspira confiança, dá vontade de lhe pedirmos a bênção; ou de pensar que nunca chegaremos àquele ponto.

Ginginha Sem Rival

Poderia passar horas a escrever sobre a ginginha Sem Rival. Para alívio grande dos leitores deste blog (e meu) prefiro bebê-la.

Maratona, arquétipos

Comecei a correr. Já consigo correr quase cinquenta metros seguidos. Para o ano faço a maratona.

Se houver uma categoria Arquétipos, claro.

Correr com o tempo

Tempestades interiores, exteriores, alheias; tempestades, tempestades e demónios daqui e dali. Os tempos vão complicados.

Hoje parti um varandim ao sair da rampa. A minha primeira reacção foi pensar que a responsabilidade era minha e a culpa do desgraçado que estava nos cabos, no carrinho. É mentira. A culpa foi minha (a responsabilidade é sempre, escusado mencioná-la). Felizmente os estragos são menores do que à primeira vista pareciam. Não é com bom tempo que se vêem os bons marinheiros. Ne pas se laisser aller; don't let go; não arreies.

Ontem chegou M., o novo skipper (a empresa para a qual trabalho comprou mais dois barcos, preciso de uma pessoa fixa). Se houve uma coisa que correu bem nesta viagem (houve muitas, na verdade) foi a tripulação. M. vem juntar-se a uma longa lista de tripulantes magníficos que me acompanharam desde San Francisco, e manter-lhe o nível.

Tento lembrar-me de todas as tripulações com as quais naveguei e penso que no fundo tenho razão para ser optimista. É certo que nunca estive tanto tempo seguido com tripulantes tão bons; mas aqueles que até hoje me desgostaram, desiludiram, enganaram foram muito poucos, uma esmagada minoria. Noventa por cento de sorte e dez de intuição. Agradeço a sorte e aprecio a intuição.

O bom marinheiro não arreia mas sabe quando deixar correr.

2.8.13

Os actos e as palavras

Apesar de gostar muito de palavras - e sabe Deus se gosto - continuo a atribuir mais importância aos actos. Aquilo que uma pessoa faz é mais importante do que aquilo que ela diz. Aquilo que uma pessoa diz só tem valor se for corroborado pelo que faz.