31.5.25

Diário de Bordos - Horta, Faial, Açores, 31-05-2025

Os Açores são o sonho de todo o marinheiro. Sonho e realidade encontram-se no Café Sport, também conhecido por Peter. É certo que hoje a clientela não é constituída quase exclusivamente por pessoas que aqui chegaram de barco, mas que importa? Que pode a turisficação fazer face à memória? Nada. O Peter continua a ser o lugar mágico que sempre foi e não deve haver marinheiro no mundo que mal entre ali não se sinta imediatamente em harmonia consigo, com os outros marinheiros, com o mar, com a vida.

Outro poder dos Açores: a capacidade que estas ilhas têm de transformar chuva em beleza. É verdade que não são as únicas - basta ir à América Central, à Irlanda, a tantos sítios. Mas os Açores operam essa transformação melhor do que qualquer outro lugar do mundo, devido a esta mistura de latitude, longitude e orografia. A beleza aqui é mais profunda, mais mágica (esta palavra está gasta, eu sei, mas por agora fica), tem mais sentidos do que a de qualquer outro lugar. Talvez porque não seja só a chuva que estas ilhas transfiguram. Até a lava, meu Deus, a lava, uma rocha preta e cheia de arestas se faz linda. Estou persuadido de que a simpatia, a gentileza e a hospitalidade  desta gente provêm da beleza na qual banham todo o dia, todos os dias.

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Fui passear pelo Pico, o mais belo seio que a geografia produziu. Refiro-me a seios de pedra, claro. Conheci o dono da Companhia das Ilhas e a sua adorável mulher, comprei meia dúzia de livros, arranjei um editor para a continuação da publicação do DV, comi umas lapas bastante decentes num café chamado Cinco (ou coisa que o valha) e fiquei com vontade de me fustigar por não ter visitado mais o interior das ilhas quando aqui navegava. Nunca fui grande turista e de qualquer forma a Companhia das Ilhas não existia. 

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Factos relevantes do dia (ordem cronológica inversa):
- Vim jantar a um restaurante de sushi aonde me zanguei com a empregada, quiçá injustamente;
- Encontrei um americano simpatiquíssimo, passe a redundância. Navegador solitário;
- Escrevi um monte de postais;
- Fui ao supermercado (hiper) Continente comprar Ziplocs. Aquilo é assustador. Não porei lá os pés para o aprivisionamento;
- Encontrei um talho que me embala as carnes em vácuo;
- Dormi uma sesta de hora e quase meia e mesmo assim foi insuficiente;
- Tratei da grande e do amantilho;
- Comprei trinta e dois metros de cabo de doze para o segundo rizo. Na segunda levam-mo a bordo e instalo-o;
- Levei o casaco de linho branco à lavandaria, ver se conseguem tirar a nódoa do polvo de ontem;
- Falei com o J. S. A Mid Atlantic não quer ajudar-me com a carta. Compreendo e não lhes quero mal, mas chateia-me porque o apoio ao cliente da B&G é uma merda (o que explica que eles não queiram fazer o trabalho) e agora quem vai ter de se haver com aquilo sou eu;

Tudo isto com uma maldita constipação que está vai não vai para se transformar em gripe.

Detesto restaurantes que se aproveitam das minhas indecisões para me facturar o dobro do que eu quero gastar. Metade do sushi vai para bordo numa caixa, consequência sem dúvida das alterações climáticas, do Trump, da transfobia e de eu ter deixado à discrição da empregada o que ia comer.

PS - Tenho vontade de voltar para o mar, apesar de já saber que não vou ter vento nenhum e terei de ir a motor.

30.5.25

Diário de Bordos - Horta, Faial, Açores, 30-05-2025

O país é outro, a rotina a mesma: acordar cedo, sair de bordo para vir tomar o pequeno-almoço, fazer o relatório para o proprietário e planear o dia. Se sobrar espaço nas sinapses, escrever meia dúzia de disparates; se não, queixar-me do frio, insuportável. Tenho a roupa toda na lavandaria e a melhor definição de frio que conheço é «não estar suficientemente vestido». A carcaça aproveita e manifesta-se. Esmifra-se toda, como aqueles biscoitos muito secos e óptimos que a minha avó Filipa fazia, pareciam - e chamavam-se - areias, eram uma maravilha. Não sei se poderei dizer o mesmo deste corpo, começa a sobrar-me pele, arrefece como se não houvesse lã, está pouco cooperante seja o que for que lhe peça para fazer.

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O MADRIGAL VI continua a fazer das suas e agora é o motor de EB que resolveu deixar de pegar. Enfim, não sei se é o bote se é a falta de manutenção, tanta que dói. O molinete eléctrico não deve ter visto lubrificação nos últimos cinco anos, diz-me J. S. o técnico / mecânico / electricista / tudo que a Mid Atlantic me enviou. Tinha o número de telefone dele na memória do meu google, sinal de que já o tinha contactado numa prévia passagem por aqui. O homem é bom e sinto o prazer de cada vez que vejo alguém trabalhar bem. Infelizmente, esse prazer prolongar-se-á porque ainda há muito que fazer. Repitam comigo: reparar uma embarcação é mais caro do que mantê-la. 

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Resumo: tenho de ir cortar o cabelo e comprar roupa, duas coisas que abomino. E à farmácia. Três. A realidade não liga nenhuma às coisas que gosto ou não gosto de fazer. 

28.5.25

Diário de Bordos - Horta, Faial, Açores, 28-05-2025

Por uma razão de que eu não compreendo as razões, a realidade nunca está de acordo com os meus planos. Por um outro conjunto de razões, este mais facilmente compreensível, os planos que a realidade faz para substituir os meus acabam sempre por prevalecer. 

O meu plano era:

- Chegar à Horta;
- Dormir;
- Acordar e
- Lavar o bote;
- Fazer a entrada;
- Sentar-me no Peter a tratar das poucas centenas de assuntos que precisam da minha atenção. 

Escusado será dizer que as coisas não se passaram assim. São vinte para as cinco e só agora os miúdos começaram a baldear o convés. Chegámos há pouco do almoço. Estamos de braço dado com outro cata que vai largar amanhã e a ideia é trocarmos agora: vou eu para dentro e fica ele por fora,  pronto a largar. Resultado: sesta comprometida e um dia de atraso sobre o meu plano. O da realidade, esse, cumpre-se ao milímetro. Ao segundo: as coisas acontecem quando têm de acontecer, não antes nem depois.

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Pensava ficar quatro ou cinco dias aqui. Já sei que vão ser mais. Não sei é quantos mais.

Monótono, o mar? Monótona é a terra, por muito adorável que seja.

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Chove e eu bebo rum (merdoso, mas isso é outra história). É uma combinação frequente na minha vida. No Peter disseram-me que não podia sentar-me na única mesa livre porque «há uma lista de espera». Lista de espera em minha casa? Vim para o bar do clube, que me parece uma boa residência de férias.

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O shore power de bordo é de trinta e dois amperes; o da marina de dezasseis. Preciso de um adaptador. Encomendo-o, dizem-me que estrá pronto às três da tarde. São quatro e meia, não está pronto e não sabem quando estará. Depende do técnico. Há quem não perceba a minha vida. Eu percebo: basta saber lidar com factores que não controlamos e beber rum enquanto chove.

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Venho a Porto Pim, lugar de peregrinação obrigatório cada vez que venho à Horta. Bebo moscatel numa tasca feia. Porto Pim merecia melhor do que isto? Não sei. Sinto-me em modo Cônsul e a fealdade do lugar e da clientela não me incomoda nada. Vou jantar lapas ao Peter, está decidido. Agora limito-me a ouvir Hildegarde e a pensar nas incomensuráveis profundidades das alturas. Ou ao contrário, nas incomensuráveis alturas das profundidades. Ou no poder sagrado, divino, da memória, que nem uma tasca feia consegue magoar.

De que eu não sou bipolar tenho a certeza; já o mesmo não digo da minha vida. Ou digo: não é bipolar, é multipolar. Tem mais polos do que a estrela de David. (Hildegarde aponta para eles todos.) 

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O Peter tem lista de espera. Quatro mesas antes de mim. Atenho-me à decisão inicial: lapas e vinho branco. Continuo a ouvir Hildegarde, que se mistura deliciosa e contraditoriamente com o barulho ambiente. É como dormir numa cama quente  uma noite de tempestade.

27.5.25

Diário de Bordos - No mar, St.-Martin - Horta, 11 a 27-05-2025

O piloto automático em modo vento é provavelmente a melhor invenção dos senhores da electrónica - depois do GPS, claro. Vou a sessenta do aparente e a setenta e picos do real. Não vale a pena tentar apertar mais: o bote vai carregado com gasóleo que chega para meia volta ao mundo e mais outra tralha diversa, pesada e inútil; da grande o terço superior não funciona de todo. Talvez servisse para fazer uma bandeira. Mesmo assim tive de rizar, note-se e num dos squall fui ao segundo rizo. Foram muitos, esta madrugada e esta manhã. Já sabia o estado da vela. O Ernst da Tropical Sail Loft (a publicidade não é paga e é de minha iniciativa. É o melhor veleiro de St.-Martin) já me tinha dito: reparar esta vela é pôr dinheiro bom em cima de dinheiro mau. Mas fazer uma nova implicaria uma espera de três meses, coisa que nem o proprietário nem eu queríamos. De maneira cá venho com o meu pano bandeira, que tanto trabalho nos deu a desmontar e a montar. Do gasóleo também sabia, naturalmente: quatrocentos litros nos tanques e outro tanto em jerrycans. Não sei quem o comprou nem para quê mas dói-me ver o bote a caturrar e a reclamar do peso. Só me espanto é estar a fazer um pouco mais de seis nós de média. O quarenta não é nem de perto nem de longe o melhor modelo da Lagoon - e este muito menos, com quatro casas-de-banho para quatro camarotes - mas que anda, anda.

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Saímos de Marigot há trinta horas. O W. tem estado enjoado mas mesmo assim cozinha bem. O M. está bastante melhor do enjoo inicial e a T. confirma que é a miúda impecável que se via em terra. Não sei se vou conseguir fazer isto em quinze ou dezasseis dias mas pelo menos tudo indica que a viagem vai ser agradável. Se a grande aguentar. 

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130525 

Hoje passámos o trópico de Câncer. Estamos geograficamente fora dos trópicos mas até chegarmos aos ventos de Oeste - ou melhor ainda, à calmaria de uma alta-pressão, é como se ainda lá estivéssemos. Curioso, este desejo de me apanhar sem vento para usar o gasóleo todo que tenho a bordo. Enquanto não vir os jerrycans vazios não descanso.  

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Da mesma forma que numa criança que cresce um dia vemos a cara que terá em grande, hoje vi a minha cara de velho - doze anos depois de me ter visto velho, em Grenada, numa fotografia da minha filha H. É uma das imagens de mim de que mais gosto e hoje ao espelho confirmei: a velhice é um porto depois da tempestade. 

É com prazer que digo adeus ao "touro furioso" (aspas porque cito). Ele que vá pastar para outras paragens. Enfim... digo isto e penso imediatamente que talvez não seja completamente verdade. 

A verdade completa interessa-me pouco. Pelo menos nesta área. Gostaria imenso de saber a verdade toda sobre a dieta das andorinhas no hemisfério sul, por exemplo. Ou sobre a técnica de fabrico de frigideiras no séc. XIII no Quirguistão - assumindo que as tinham. 

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140525 

Vamos a caminho do quarto dia de viagem. Cerca de 25% do tempo que esta primeira etapa vai demorar. Estou ansioso por que o vento caia de vez. Assim como está nem coisa nem sai de cima: tenho de ir a motor mas não posso fazer rumo directo. Quero consumir esta quantidade absurda de gasóleo, ver se aligeiro a burra. 

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150525 

Tinha um squall pelo través de estibordo e fui vestir-me em consequência. Fato Henry Lloyd e botas Dubarry. O squall afastou-se. Toda a gente sabe: a melhor maneira de evitar essas bestas é estar preparado para elas. 

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As marcas servem näo só para transmitir informação sobre nós aos outros mas também a nós próprios, dizia já não sei quem. Por exemplo: cada vez que ponho aquelas botas fico a saber que tenho um irmão porreiro que mas ofereceu. E o fato Henry Lloyd informa-me de que já estive na Holanda num flea market náutico e comprei aquilo novo por metade do preço, já não sei porquê. (Ou seja, ando a transmitir falsa informação aos outros..) Não, não comprei a um cigano e não foi na feira de Carcavelos lá do sítio. Aquilo é legítimo. Só que foi comprado a meio preço. 

Posso não perceber nada de Balenciagas, Tom Fordes et al. mas sobre moda náutica não hesitem em consultar-me (é mentira. Uso Henry Lloyd desde os dezoito anos e só não uso botas Dubarry desde essa altura porque o meu irmão era muito novo. E elas não existiam.)

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O dia acaba e as nuvens apagam-se pouco a pouco. Primeiro as mais baixas, que já estão cinzentas; depois as de cima, por agora cor de laranja intenso. Não tarda serão cinza, elas também. Hoje transfegámos duzentos litros, mais litro menos decilitro, de gasóleo dos jerrycans para os tanques. O MADRIGAL VI agradece. O caturro tornou-se imediatamente mais suave. Ainda estão cento e cinquenta nos paióis de vante. É um exagero (e não estou a contar com os oitenta ou cem que tenho à popa). 

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Ser marinheiro é ser tudo e o contrário de tudo, escrevi um dia (um pouco mais elaborado, verdade seja dita). Saí de quarto às seis da manhã, vim para o camarote para uma pequena sesta e o resto do tempo foi passado "a fazer coisas", a minha maneira habitual de passar o tempo a bordo: inspecção ao tanque de água - quase cheio. Parabéns e obrigado, tripulação; dei-lhes um pequeno curso sobre a meteorologia desta viagem; trabalhei - ou melhor, comecei - o trabalho para a continuação da publicação do DV; mostrei-lhes o programa do Quinn; li pouco mas li; venho de novo para o camarote escrever sobre a dualidade, ambivalência ou dupla personalidade do marinheiro. 

Por um lado, gostaria de conhecer as últimas tropelias do Trump, as chamadas trumpelias, de saber como está a guerra na Ucrânia e quem ganhou as eleições em Portugal, se é que já foram. Por outro, estou contente por não ter o Starlink. Estas "coisas" que faço não me distraem do mar, não me desembarcam, por assim dizer. O que inevitavelmente aconteceria se tivesse net a bordo. 

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160525 

Primeira mudança de hora da viagem. Pouco a pouco, passo a passo, vaga a vaga. 

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Uma das réguas saiu do slide, o que implicou sessão de acrobacia. M. diz-me que faço estas coisas para pretender que não tenho sessenta e sete anos. Não lhe disse que ainda há pouco dias escrevi quanto gosto de ter esta idade. 

Depois, no continuar da conversa, disse-me que as faço por gosto. Aí corrigi-o: não me arrisco inutilmente mas é indesmentível que gosto de ser capaz de fazer face a estas situações. Só que não é por causa da idade. Esta, aliás, leva-me a ser bastante mais cuidadoso agora do que era dantes. 

O que em parte explica porque gosto da minha idade. A diferença entre super-homem e super-parvo, já de si ténue, esfrangalha-se ao longo dos anos. 

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Não consigo dormir, apesar de ter os músculos todos doridos da sessão de espiritismo desta tarde. Pensei em medir a glicemia mas em vez disso comi dois triângulos do Toblerone que está no frigorífico de bombordo. Daqui a hora e meia entro de quarto e antes disso vai mais um, aposto. A verdade é que sem álcool o açúcar cai dramaticamente. Nem com o chocolate e os candies (uma coisa horrível, feita de açúcar em forma de borracha) vai aos níveis habituais. Reduzi os comprimidos para um por dia, ver se dou uma folga aos rins e ao fígado. Imagino o que sofrem, coitados, sem rum nem cerveja. Eu não sofro, mas é verdade que hoje me apeteceu uma cerveja. E um cigarro, que também não há a bordo. 

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170525 

As sessões de espiritismo continuam e os músculos reclamam cada vez mais. Passaram de uma vida em que o exercício mais violento era cortar as unhas dos pés para outra em que são precisos porque sem eles não há vida. Queixam-se, claro. 

Morro de pena deles, coitados.

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Rumo norte, ver se encontro os ventos de oeste. Deve ser a primeira vez na vida que ne meto voluntariamente por um anticiclone dentro e espero que seja última. Já o MADRIGAL VI agradece. Sente-se mais levezinho. Estou farto do motor e o resto da tripulação também. 

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190525 

Encontrei rum Gosling em Philipsburg e vou poder fazer Dark 'n Stormy em casa (se o rum lá chegar, o que é pouco provável). Agora já só preciso de uma boa ginger beer. Ah, a falta que faz o British Bar do antigamente. 

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Vento SW 20 nós. Vou em rumo directo para os Açores, demasiado devagar para o vento (seis e meio, sete) mas a dar graças a Deus e ao Ernst por a grande se ter aguentado até aqui. E mais darei se chegar inteira a Motril. 

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"Nada Entre mim e a Lua." Não me lembro do primeiro verso do haïku, que não me sai da cabeça quando navego, mesmo quando estou de quarto em baixo, como agora, deitado a ouvir a conversa do MADRIGAL VI com o mar. Não trago o hélice engatado - são de pás fixas e fazem-me perder meio nó cada um - de maneira a reunião vai animada. 

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210525 

O cenário destes últimos dois dias é o habitual:cinzento, mar cinzento às listas brancas, chuva, frio, baldes de água atrás de baldes de água. Rizei, desrizei, voltei a rizar e agora, com um rizo na grande e quatro voltas na genoa, estamos em ordem. É pouco provável que isto suba outra vez. 

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Quando as embarcações de vela eram embarcações e não residências secundárias tinham um compartimento para se pendurar as roupas de mar molhadas. Hoje não têm e é preciso pô-las "a secar" (aspas porque é irónico) na casa de banho. A qual já de si é pequena porque cada camarote tem uma. Os senhores não podem partilhar um duche e uma retrete, coitados. 

O pior do badanal já se foi. Agora vamos com força seis / sete ligeiramente para ré do través. Um largo folgado. É o largo e sou eu, que vejo a burrica a andar. Tenho gasóleo para dia e meio (e mais uns pós de que não se fala porque é como se não existissem) e quanto mais perto puder chegar da Horta sem usar o motor melhor. 

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220525 

Terceiro dia de badanal. Está tudo e estamos todos encharcados. A maior parte das escotilhas mete água. O pior não é tanto o cansaço - com três pessoas a correr quartos descansamos o suficiente. É a roupa toda molhada, o frio, o estar farto. Vamos com dois rizos na grande e menos de metade da genoa. A questão é: isto ou falta de vento? Até há poucos anos teria respondido sem hesitar. Agora não sei. Hesito, imagino-me parado mas com sol, talvez a tomar banho no mar... E a perguntar-me "que mal fiz eu a Deus?" Assim, pelo menos andamos. Estamos a menos de setecentas milhas da Horta, cinco dias. E pergunto-me: "Vão ser todos assim, esses cinco dias? Que mal fiz eu, etc.?" 

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Se não fosse o cor de laranja intenso da bóia sentir-me-ia numa fotografia a preto e branco. Ainda no banho da revelação.

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Há algum tempo que não atravessava num barco tão pequeno: quarenta pés. Os ingleses têm razão: um pé de barco por ano de idade. 

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Pouco a pouco, nó a nó o vento vai caindo. Em breve, destes dias só ficarão as roupas molhadas e um ou outro episódio mais marcante para a miudagem. Para mim, isto ficará registado como o badanal em que descobri que o meu Henry Lloyd já não é impermeável. Não tem mais de oito anos, bolas! Vou escrever à marca a reclamar. A queixar-me. A manifestar o meu désarroi.

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Faltam seiscentas milhas. Em condições normais seriam quatro dias. Estou mais tentado a acreditar que serão cinco. E eu com o armário cheio de rum, coitado. Como é aquele velho dito "a espera aumenta o prazer?" "A antevisão de um copo de rum após quinze ou dezasseis dias de mar provoca uma onda de prazer que rebentará com estrondo quando deixar de ser antevisão e passar a visão." Sucintamente é isto. 

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Pode fazer-se tudo no mar menos mentir. O mar não engole patranhas. 

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Então é assim. Dois pontos. O vento continua de sul mas agora nuns mais agradáveis vinte nós. O MADRIGAL VI avança ligeiro a um largo, livre das centenas de litros de gasóleo dos jerrycans e com os tanques de água e de combustível a meio. A noite esta fresca mas não fria e lá para terça feira saberei, finalmente, quem ganhou as eleições e lerei notícias das trumpelias destes dias. 

Abençoado oceano! 

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230525 

Acabo de fazer a primeira volta de revisões do ano dois mil e doze e comecei o dois mil e treze. Ainda bem que escrevo um diário. Não há memória humana que chegue para tanta coisa. 

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Depois de três dias a andar o vento tropeçou e caiu. Agora arrasto-me a cinco nós. Vou ter de rever o ETA, está visto. Tudo se paga nesta vida? Bolas, o frio e ter tudo encharcado parece-me um preço mais do que suficiente. 

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Gritos da T. Viu uma baleia. Era uma baleia de bossa, a mais de cem metros do barco (pelo menos quando eu a vi. Parece que passou mais perto). Pareceu-me que tinha uma cria atrás mas não tenho a certeza. Depois da cena de quando ia para Lisboa de Ponta Delgada no AQUARELLE, baleias a mais de cinco metros não me impressionam. 

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Pescámos um yellow fin. Grande festa, fotografias, filmes, Gopro e o diabo a quatro. Eu, homem simples como sou, só pensava nas calças que já estavam quase secas e agora estão todas molhadas outra vez. 

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Último duche até à Horta. Devia ter sido amanhã mas não me apetece nada nem voltar a pôr estas calças encharcadas nem pôr umas lavadas sem me lavar eu primeiro. Maldita dessalinizadora! E maldito o meu perfeccionismo. Se tivesse feito o que o gajo antes de mim fez provavelmente teria água para um duche todos os dias. 

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A pergunta "Quem é que ganhou as eleições?" ganha foros de obsessão. Amanhã saberei. Não gosto de obsessões e muito menos quando são parvas. 

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T. tem uma teoria bonita sobre o avistamento da baleia. Diz que é o encontro do mundo submarino com o nosso. Um bocadinho mais elaborado. Gosto da ideia e amanhã vou pedir-lhe que ma conte de novo. 

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O vento reforçou um bocadinho e estamos de novo entre os cinco e os seis nós. Não é muito mas é melhor do que nada. Este code zero faz milagres.

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240525 

Estou a editar o DV para a próxima publicação, cujo título por enquanto é Não sei. Estou na parte em que a T. me deixou. Aquilo é de fazer chorar as pedras da calçada mas de uma coisa posso orgulhar-me: consegui evitar a pieguice. Alguns posts até são bons. 

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A motor, outra vez. Mil e quatrocentas rotações e só no motor de bombordo, para equalizar os tanques. Penso que chegaremos lá para segunda à noite. 

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Vem, tempo, vem. Enche-me de mar os olhos, de sol a pele, queima-me devagar e à estrada que ficou para trás. É um caminho sinuoso mas é o que me trouxe aqui, a ti. Que nada sobre dele senão estas meias dúzias de palavras. 

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250525 

Penúltima noite no mar. Não estou seguro de que a de amanhã conte: vai ser a da chegada. 

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Resisti à tentação de perguntar o resultado das eleições. Não foi difícil. Na verdade não passava de uma litote, da ponta do icebergue. São tantas as coisas da terra que me esperam... Mais do que aquelas por que eu espero e de que preciso. Tenho uma vida em terra e as eleições são uma das piores partes dela. 

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O meu olho direito não vê a ponta de um chavelho. Vá lá que lhe vê a base. Infelizmente não chega.

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Tenho visto caravelas portuguesas enormes. Deve ser do aquecimento global. Ou do arrefecimento local. Ou da situação na faixa de Gaza. Ou assim. Alguém devia levar isto à atenção do Guterres, ver se ele vem experimentar-lhes a toxicidade, convidar a Greta grotesca para a Assembleia Geral da ONU e declarar as caravelas portuguesas uma espécie em risco. 

Por falar em Guterres: é possível que a sua irrelevância seja melhor aferida se se comparar o salário do homem ao do Cristiano Ronaldo, por exemplo. Talvez nem seja preciso ir tão longe: qualquer jogador médio de futebol ganha mais do que aquela aventesma. 

Verdade seja dita: o mesmo se aplica aos outros secretários-gerais da máquina de untar porcos. 

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Faltam cinquenta milhas. "Metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa." 

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É impressão minha ou quando os países africanos ainda eram colónias havia menos gente a querer vir para a Europa? 

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270525 

Chego, tenho acesso à net e apercebo-me de que afinal o mundo não mudou enquanto estive no mar. 

E esta, hein?

11.5.25

Diário de Bordos - Marigot, St.-Martin, Antilhas Francesas, 11-05-2025

Largo daqui a uma ou duas horas. As previsões são boas, o bote está mais ou menos em ordem e a minha vontade de chegar a Maiorca pelo menos intacta. Penso isto e logo a seguir lembro-me de que agora tenho uma casa - tenho entre aspas, a casa não é minha, é arrendada - e os meus livros têm finalmente estantes aonde se extrairem do caos e das caixas que têm sido os últimos anos. Já só falto eu.

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Isto dito, a possibilidade, por remota que seja, de voltar ao Panamá também me atrai bastante. Tanto pelo país como pela conversa que tive com o proprietário, que me parace estar na linha do actual: a liga dos muito bons.

10.5.25

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 10-05-2025

Hoje é um dia histórico: comprei a máquina fotográfica e ouvi música boa num táxi. A compra da máquina não teve grande história. Tentei obter uma opinião, não consegui, comprei-a na mesma. Lembrei-me da compra de F2 em Caracas, uma .áquina do caraças. Pode ser que esta, Nikon também, esteja à altura da sua antecessora.

Já o Clarence, taxista nascido em Nevis e vindo para Sint Maarten aos dezoito anos, carpinteiro de profissão nas taxista há treze por causa dos joelhos, apreciador de música clássica e cristão proselitista é outra coisa. Só me fartei um bocadinho por causa da sua insistência na minha vida depois da morte e ba salvação da minha alma e todo esse conjunto de tretas mas a boa música salvou-me a viagem e a ele a gorja.

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Venho almoçar ao Lagoonies, um hamburguer e - espero - um rhum punch. Espero nos dois sentidos do termo: a mulher entornou o jarro e estou há mais de dez minutos à espera. 

(Chegou. Hallelujah.)

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Vou para bordo. Ainda tenho um trabalho no mastro por fazer, mas não tenho a certeza de o querer fazer agora. Na Horta veremos (a tripulação optou pelo Faial e eu acedi facilmente).

Reinaldo, St.-Martin e outras vantagens imensas

A música é horrorosa, invasora, omnipresente, agressiva. Em todo o lado, partout

«Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.

Mas dancemos, dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha do Van Gogh ...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.»

(Reinaldo Ferreira)

Passo de uma coisa em forma de música mas que não passa de barulho a um dos mais bonitos poemas de Reinaldo Ferreira. Uma das funções desta ilha é levar-nos daqui para fora.

9.5.25

Diário de Bordos - Marigot, St.-Martin, Antilhas Francesas, 09-05-2025

O trabalho teve uma pequena acalmia mas agora, com a proximidade da largada, arrancou de novo com a energia de uma raposa esfomeada. Hoje às dez e meia da manhã já tinha fornecido pelo menos três quartos de um dia de labor. Agora preparo-me para ir para a Marina de Fort-Louis. Estou farto deste acampamento e quero um pouco de conforto para os últimos dias em terra.

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Tenho imensa sorte com a tripulação e não consigo impedir-me de pensar no trabalho que me deu ter tanta sorte.

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Estou furioso com a maneira como a Harel lidou com o problema da escotilha e essa fúria só piora quando penso nas vantagens que tive em ficar três emenas aqui à espera da maldita peça - que afinal foram duas. O bote está em condições incomparavelmente melhores do que estava há um mês.

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Finalmente na Marina Fort-Louis e de novo esta alegria infantil de ser reconhecido, apreciado e de ver o pessoal a fazer esforços durante uma boa vintena de minutos para me arranjar um lugar (isto foi de manhã, claro. Quando para aqui vim já tinha o lugar, longe da tomada de electricidade mas perto da água, que é o mais importante). É sempre melhor deixar um porto com amigos do que com inimigos, lição que algumas pessoas não conseguem aprender.

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Amanhã é o último dia. Baldeação - o bote está imundo -, lavandaria, deixar o carro, ir a Philipsburg decidir se compro a Nikon ou não (a resposta será sim, aposto), ir à Ile Marine para o Iridium - o preço está escandaloso, de novo - fazer o planeamento no GPS de bordo e no do computador, desenhar o livro de bordo, fazer o relatório diário para o proprietário... Não vou ter muito tempo para saudades antecipadas.

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Desta ilha levo aquilo que sempre levei: o epítoma da expressão mixed feelings. Vai ser preciso deixar decantar isto tudo, lembrar-me das alegrias e esquecer as tristezas, lembrar as belezas, que são tantas e esquecer as fealdades, igualmente numerosas.

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Arrependo-me de não ter comprado a máquina. Fotografar é como escrever e ambos são como respirar. Não importa se o faço mal, importa que sem eles não vivo. Espero que não a tenham vendido entretanto.

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Cantar laudas sem saber cantar. Talvez seja isso a vida. Não sei.  Talvez. Bom título para o próximo livro: Talvez. É a continuação do Don Vivo, essa grande sequência de Talvez.

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Se tivesse de escrever uma carta de amor, a quem a escreveria? Vêm-me alguns nomes à mente e pergunto-me: porquê só uma? E: que teriam em comum?

A resposta seria: uma mistura de queixas sobre a minha estupidez e de espantos sobre a minha sorte.

8.5.25

Diário de Bordos - Marigot, St.-Martin, Antilhas Francesas, 07-05-2025

O JM Beer (verbatim) é o Lagoonies do lado francês da ilha, à escala um para dez. No mínimo. Tem um problema grave: faz margaritas excelentes, coisa que a mim me faz impressão. Tequila num país de rum? Isso não é como pôr um protestante no conclave para escolher o Papa?

É. Paciência.

A partir de agora vai ser a minha bebida aqui (deste lado, que do outro os rhum punch continuam insubstituíveis).

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A saída foi adiada para domingo. Amanhã faz um mês que estou em St.-Martin. Como é que se cola isto tudo? Com trabalho, uma tripulação excelente e sorte, muita sorte. E rum, coitado.

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Ainda não consigo perceber se gosto de St.-Martin, se a detesto ou se estou algures entre os dois. É como namorar com uma mulher feia e inteligente. Ou bonita e burra. Ou assim.

7.5.25

A vida glamorosa de um delivery skipper (ou skipper de transportes, para o caso do M. M. ler isto)

Nunca gostei muito do verbo esmiuçar e agora que está gasto, puído e cheira a ranço, ainda gosto menos. O que é uma sorte, porque não era esse o verbo que pensava usar. Esse é destrançar, como em destrinçar mas aplicado a um cabo de três pernas. Estão todas entrançadas umas nas outras, o que convém a um bom cabo e destrinçar isto tudo requer um certo esforço.

Peguemos numa espicha e comecemos o trabalho. O MADRIGAL VI (repito que só a título excepcional digo o nome do bote, porque é tão bonito e faz-me tanto pensar no Livro Sexto do Gesualdo): cheguei a St. Martin no dia oito de Abril, convencido de que partiria por voltas de dia catorze. Talvez quinze, vá lá, porque um dos tripulantes - o cozinheiro - só chegaria a catorze. O barco tinha um problema maior, que é uma escotilha no costado e resolvi não sair sem ter aquilo substituído. Dez dias de espera, diz-me o representante da laguna. Hoje estamos a sete de Maio e a peça chegou ontem ao escritório da senhora. Hoje veio um funcionário da marca instalá-la e como por acaso é um milímetro maior (literal, não metaforicamente) do que a original, apesar de os números de referência serem exactamente os mesmos. Apesar de amanhã ser feriado o homem acedeu a vir trabalhar, pelo que com sorte sairemos ou no sábado à noite ou no domingo de manhã. Quase um mês depois da data prevista.

Entretanto, como o MADRIGAL VI estava cheio de problemas, pedi ao proprietário que me deixasse ir tratando deles, porque sempre era melhor do que ficar sentado à espera. O senhor disse que sim e passei duas semanas a trabalhar que nem um louco. Está quase tudo resolvido (o quase que falta são coisas que não vale a pena fazer aqui porque St.- Martin já não é a ilha barata do antigamente).

Enquanto trabalhava no barco tinha um acontecimento importante na minha vida pessoal a envenar-me os dias e as noites. Desse não falo, que isto é um diário, não é um confessionário.

Ou seja: neste momento temos os problemas do Lagoon 40 e os da minha vida pessoal. Porém, qualquer cabo que se preze tem três pernas. A terceira sendo um trabalho que para mim representava tudo o que quero para o fim da minha vida de mar, que a meu ver está ali à vista do próximo farol. Acontece que as tratações para esse graal se arrastavam, eu estava cada vez mais desconfortável com elas e no outro dia mandei os senhores passear. Estava farto e quando me farto perco a pouca paciência que me resta. Isso aconteceu ontem. Anteontem tinha feito uma breve pesquisa para substituir o trabalho (numa lancha catamaran de sessenta e sete pés, a quem possa interessar).

Hoje tinha três propostas de trabalho, das quais uma me interessava bastante - era no Panamá, fazer charter nas San Blas - e outra também - é uma lancha em Maiorca. O uso do presente do indicativo diz tudo, não diz? Diz. No Verão volto para Maiorca, trabalhar numa lancha não sei de que comprimento mas pouco me importa. E o trabalho no Panamá ficou de porta entreaberta para Outubro, quando acabar o charter na Sicília. Destrinçar isto tudo, meus queridos leitores, é muito mais complicado do que descrever as complexidades da mecânica das vagas ou destrançar ternamente uma senhora. 

É como destrinçar a vida, trança a trança, transa a transa.

5.5.25

Cansaço, música e outras coisas

Arrastei-me até ao Arhawak para beber um rum, arrasto-me para o beber e sinto-me paralisado à simples ideia de que vou ter de me arrastar até bordo. De onde vem tanto cansaço? Da praia não é de certeza, nem do Cadisco. Tão pouco vem da idade - antes viesse... - nem do dia. Este cansaço é demasiado idoso para ser de um dia.

Não sei. Acho que vem do excesso de má música. 

Vem de muitas coisas e de uma podes estar certo: não partirá tão cedo.

4.5.25

Diário de Bordos - Anse Marcel, St.-Martin, Antilhas francesas, 04-05-2025

O começo não foi lá muito auspicioso. Fui ao Cadisco meter água, o que no MADRIGAL VI representa hora e meia de convivência com bêbados e uma luta contra a minha intolerância para a espécie. Hora e meia para meter seiscentos litros de água é um exagero, qualquer que seja o critério ou o ambiente. Depois regressámos ao lugar, comi qualquer coisa - qualquer coisa feita pelo W. é «qualquer coisa» - e fui à D's Beach. A praia é porreira e não muito longe, mas a música estraga tudo. Felizmente esqueci-me da carteira dos euros e dos carttões e só tinha dólares para dois Painkillers que são, devo dizê-lo, os melhores que até hoje bebi nesta ilha. Dois cocktails dão direito a dois mergulhos, na minha contabilidade. Voltei a bordo buscar a supra-mencionada carteira e vim para a Anse Marcel. É a praia mais bonita da ilha, sobretudo para quem não gosta muito de praia: o bar é porreiro, a música má mas baixinha, a paisagem bonita e o Dark'n Stormy relativamente próximo do original. A ideia era relaxar, esquecer-me da merda do bote e escrever meia dúzia de disparates. Neste ponto falhei mas nos outros consegui. Uma coisa é escrever e outra descrever.

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A paisagem é linda, a luz idem, o restaurante está vazio e o homem uma simpatia. Sou sensível à beleza, o que por um lado explica o que me chateia nestas ilhas e por outro me faz ver aquilo que nelas gosto. Basta aprender a separá-las, as coisas de que gosto e as que não suporto. Um dia pô-las-ei numa balança e farei o balanço.

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Ontem troquei o mordedor dos rizos e da escota da grande. Troquei é uma maneira de dizer: quem fez o trabalho foi o Q. Eu limitei-me a explicar-lhe o que queria e a enganar-me na marca do mordedor, o que assim visto de fora parece difícil mas no mundo encantado do Luisinho Serpa não é. Voltei à IWW com o Q., trocámos a peça e tudo correu às mil maravilhas. O Q. não me contou todas as horas e eu convidei-o para almoçar, troca que assim de repente me parece justa. Além de agradável, claro, nada despiciendo.

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O dia cai, o café fecha, a luz alaranja-se e o verde do monte à minha frente torna-se mais denso. O vento rondou ligeiramente - sei porque olho para o cata igual ao meu que está ali fundeado. Só me resta desligar o computador, pagar e pensar na sorte que tenho. Podia ser pior. Muito pior. E melhor? Talvez. De certeza. Não sei. Sendo rico, por exemplo. Mas eu tenho as vantagens da riqueza sem as respectivas desvantagens - tal como, de resto, com a pobreza: oscilo entre uma e outra sabendo que as duas são irreais, passageiras.

A única coisa perene é esta beleza, este fim de dia, esta mistura de verdes, azuis e brancos, esta nostalgia antecipada: um dia não terei nada disto. 

3.5.25

Diário de Bordos - Marigot. St.-Martin, Antilhas Francesas, 02-05-2025

Consegui fazer quase tudo o que tinha na lista. Quase é uma palavra que engana muito, eu sei, mas forçoso é reconhecer que nestas circunstâncias é reconfortante. A perspectiva de uma largada esta quarta-feira volta a parecer-me real. Uma das coisas que ficou por fazer foi ler o contrato, mas a M. B. pediu-me para ler um texto dela e entre um texto da M. e um contrato redigido por um advogado pago não à palavra mas à letra a escolha é óbvia. Nove páginas de juridiquês impenetrável. Tenho amigos próximos que são advogados; uma das pessoas que mais aprecio no FB é uma senhora advogada que não conheço sequer pessoalmente mas adoro ler - e aprender com ela coisas que não domino de todo, como a moda ou a cultura da actualidade. Porém, quando vejo contratos destes penso naquela anedota segundo a qual uma terrível falta de areia no deserto é ver quatro advogados enterrados até ao pescoço.

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O dia acaba em paz. O S. trouxe-me uma maquineta para capinar o sítio aonde estou atracado, o que me liberta de o pagar. S. é um daqueles pobres diabos como os os quais eu não quero acabar e de que os portos estão cheios. Impressiona-me ver a degradação entre o ano passado - quando o conheci - e este ano e espero que eu próprio não me degrade tanto e muito menos tão depressa. A verdade é que gosto da minha vida, se bem muitas vezes tenha a impressão de foi ela que me escolheu e não o contrário. Hoje a manobra correu bem apesar de ter uma tripulação que não sabe fazer uma volta de fiel ou um lais de guia - prova singela de que a personalidade das pessoas é muito mais importante do que o que sabem ou (passe a evidência) o que fingem saber.

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Vim ao bar L'Essentiel porque beneficio intermitentemente da sua rede quando estou a bordo e esta é a minha forma de lhe agradecer; bebo finalmente mojitos como devem ser: sem açúcar e com muito rum. A minha teoria é que este cocktail foi inventado para disfarçar o sabor do rum barato, opinião essa que me satisfaz e me leva a não a investigar seriamente. A minha admiração por Hemingway tem limites e este é um deles. Um bom mojito é feito com rum barato, sem açúcar e com gelo em cubos. Pensa tu o que quiseres, Ernest.

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O vento caiu completamente, o W. cozinha, o segundo mojito saiu quase perfeito, o bar está vazio e a música - merengue - está baixinha. Tenho uma tripulação maravilhosa. Queixo-me frequentemente de que a minha vida é feita de distâncias e pergunto-me com a mesma frequência: que seria dela sem a distância? Que seria dela sem a T., o M., o W.?

M. é um especialista em cibersegurança. Tem uma mente lógica, impressionante, linda para quem, como eu, gosta de lógica e acredita que «o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo». Não sou o único, eu sei. Aos sessenta e sete anos pode perder-se a ilusão de que se é único.

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Fui com o W. ao Super U fazer compras. Tive de o deixar mal começámos. O hipermercado é uma das maldições da vida moderna. Há quem goste: aquilo estava cheio. Refugiei-me no bar vizinho, com uma cerveja Presidente e uma profunda reflexão: o bote está uma merda, o armador é impecável, a tripulação uma maravilha: que fiz eu para merecer tanta sorte? Como a vou pagar?

1.5.25

Diário de Bordos - Marigot, St.-Martin, Antilhas Francesas, 01-05-2025

As alpergatas que o Domingos me fez em Palma estão num estado próximo do comatoso. Quero ver se as guardo para tentar recuperar a pele, que é tão boa. E ainda há quem não acredite que eu penso no planeta e em como salvá-lo. Basta-me pôr este par de merdas nos pés e penso logo em afogar o Domingos e só não o faço por causa do planeta. E porque a culpa é minha, mas isso é outra história.

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Plano de trabalho para amanhã:
- Island Water World para o gás de cozinha;
- Îles marine para as calças do M.;
- Lavandaria;
- Procurar quem me venda minutos de Iridium;
- Supermercado;
- Se não houver vento, acabar a vela grande (este já sei que vai ficar para sábado quase de certeza, mas gosto de saber o que não vou poder fazer);
- Começar a lista de compras da chandlery - isto implica mais uma visita a tudo quanto é locker, lazaretto, forepeak;
- Se os franceses do Sun Odissey já tiverem largado, ir para o lugar deles;
- Pôr o M. a tratar da água na minha casa-de-banho (isto já foi feito duas ou três vezes, está aqui só para me lembrar);
- Tentar convencer o Andrew a vir a bordo tratar-me da sonda (bis repetitia) - este é o primeiro ponto da lista, por ordem cronológica;
- Tentar falar com os fabricantes da dessalinizadora - ando a tentar há duas semanas, já enviei dois e-mails, já liguei não sei quantas vezes. Pedi ao propreitário para ligar, mas também não conseguiu;
- Falar com o J. R. em Barcelona a propósito do contrato;
- Não me chatear comigo por não ter tempo ou cabeça para escrever aqui.
- Chatear-me comigo por não me lembrar de tomar nota das ideias absolutamente brilhantes que me ocorrem durante o dia.

- Rezar muito para que a maldita escotilha chegue na segunda-feira. (Esta vai destacada, para ver se deixo de pensar nela.)

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Comecei a seguir a meteo. Ou muito me engano ou esta viagem vai ser uma merda. Espero que a meteo se engane e eu também.

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Releio a lista e penso na sorte que é ter uma dessalinizadora e um Iridium. Qualquer deles vale o esforço. Se funcionarem, claro.

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Mais um dia de chuva. À tarde acordo da sesta no princípio de um squall que apareceu do lado errado. O vizinho do lado estava com o dinghy a segurar o bote - uma coisa linda, construída na Escócia em setenta e um, para aí com três vezes o peso do meu MADRIGAL VI. Pus o motor de estibordo a trabalhar para ajudar o ferro, que honra seja feita ao S. se aguentou à bronca. Câmara lenta? Quem falou em câmara lenta?

(Isto dito, o lugar dos franceses é mais seguro e amanhã vou para lá, se eles saírem.)

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Os miúdos foram para o cinema. Mais um fim de dia em paz comigo. Enfim, passe a ironia. Chamar paz a isto requer uma grande dose dela.

Diário de Bordos - Marigot, St.-Martin, Antilhas Francesas, 30-04-2025

O Lagoonies continua a ser o Lagoonies mas deixou de o ser a partir das seis da tarde. A culpa é dos músicos que lá actuam, maltratam canções de que gosto e fazem-no demasiado alto. Como se isso não fosse suficiente, cada vez que lá tento escrever há alguém que conheço e a quem não posso decentemente dizer que não me sento com ele. Resultado: Lagoonies sim e sempre, mas à tarde ou de manhã quando não há ninguém.

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O contrato para o próximo trabalho chegou, finalmente. Ainda não o abri, sequer. Amanhã também é dia. 

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A tripulação foi para o carnaval de Philipsburg. Gosto de os ver assim, juntos e a divertirem-se como deve ser para a idade que têm. 

E gosto ainda mais destes momentos de solidão (refugiei-me no bar do Centr'Hôtel a beber um stormy monday que é uma pálida sombra do verdadeiro mas que pelo menos tem a vantagem de não me fazer sentir roubado).

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Ontem perdi um dia inteiro com cenas de dinghy e de lavandaria. Desabafo com J.: «Tudo o que quero é um dia normal". Resposta: «Luís, há quantos anos navegas? Não há dias normais.»

É verdade. A vida nestes países parece um filme em câmara lenta, uma sequência de Buster Keaton ao ralenti

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Cortei as unhas dos pés. Parece-me importante mencionar isto porque para o ano vai de certeza ser preciso cortá-las outra vez e quero saber em que mês isso aconteceu. É um desporto  violento - o mais violento de todos os que pratico (enfim, é o único) - e eu sou um rapazinho calmo e nada dado a práticas que puxem demasiado pelo físico.

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Os grandes projectos no MADRIGAL VI acabaram. A partir de agora vai ser só pequenas merdices (não conto com o dessalinizador. Já me fiz à ideia de que não o utilizarei e de que se o fizer será rodeado de mil precauções. Não quero fazer dos tanques de água doce tanques de lastro. Isto contando, claro, que a escotilha que provocou este atraso todo chega na segunda-feira. Ah, e há também o problema do Iridium a resolver.

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Há pessoas que pagam para passar férias em St.-Martin. Eu sou pago para trabalhar aqui. E ainda há quem se admire por eu não gostar de fazer turismo.

(Isto dito, se me apanho no mar a caminho dos Açores nem acredito.)