29.8.25

Diário de Bordos - Ayamonte, Andaluzia, Espanha, 28-08-2025

Ando relapso, eu sei. Há muito para contar e pouca oportunidade para o fazer. Talvez amanhã em Lagos? Não sei.

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Em contrapartida, sei que o dito inglês "gentlemen don't sail to windward" é mais do que justificado, mesmo por quem não é gentleman, como eu. Oito horas para fazer vinte e seis milhas, com o motor a duas mil e duzentas! 

Visivelmente,  o idiota que antigamente vivia em mim não se foi ainda embora. Resta saber se um dia irá. Penso que não mas enfim. Às vezes engano-me.

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O meu patriotismo tem alguns limites. Gosto de croquetes, rissóis, chamuças, pastéis de bacalhau e cozido à portuguesa e bacalhau à Brás, por exemplo. Freud chamar-lhe-ia patriotismo oral, suponho. Eu chamo-lhe patriotismo circunscrito.

Hoje podia escolher entre as marinas de Vila Real de Santo António e Ayamonte. Esta sendo vinte euros mais barata, escolhi-a.

Abençoados vinte euros! Graças a eles descobri um restaurante - não descobri coisíssima nenhuma. Limitei-me a perguntar - absolutamente fabuloso (meço as sílabas).  Chama-se Casa Luciano e fica pertíssimo da marina, se por acaso.

24.8.25

Mar, felicidade

É muito difícil não ser feliz no mar. 

18.8.25

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mlorca Baleares, Espanha, 19-08-2025

Não descrevo o dia porque é muito chato descrever dias chatos e depois apercebo-me de que afinal só a manhã foi chata. A tarde foi uma delícia. 

- Como se a vida fosse uma montanha russa, não é?

- A vida? Os dias. Montanhas? Descidas e subidas.

16.8.25

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-05-2025

Última noite em Palma, até ver. Peço ao táxi que me deixe no princípio da Sindicat e apercebo-me da primeira idiossincrasia: não tenho bicicleta. Ando a pé. O Claudio tem uma fila mas é pequena. Como sempre: peço-lhe meia dose (laranja de Maiorca, desta vez), ponho os trocos todos que tenho na carteira (dois euros e qualquer coisa), troco meia dúzia de cumprimentos e saio com dose  meia do melhor gelado do universo. De todos os universos, para quem acredita em coisas.

Não me apetece ir para casa. Não me apetece ir para lado nenhum,  de maneira venho ao 7 Machos beber uma Margarita e um shot de mezcal. É para isso que trabalhamos, não é? Para viver. Para ter muitas casas em vez de uma só. Para ter livros que um dia daremos a uma biblioteca. Para beber uma Margarita que não é igual a nenhuma outra. Para ter sono e resistir-lhe. Para viver quando devíamos estar a dormir.

E para comprar mais animais ao Mbayé. E para ser feliz.

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"De derrota em derrota até à vitória final, diziam dos comunistas os outros. De asneira em asneira até à sageza, digo eu.

A vida não passa de uma colecção de erros que por milagre alquímico nos leva a outra colecção de erros, só que mais pequena, mais pequenos, mais agradáveis e mais baratos.

14.8.25

Diário de Bordos - A bordo, fundeado em Es Trenc, Mallorca, etc., 14-08-2025

A térmica está fraquinha mas estabelecida; Es Trenc menos cheia do que é habitual; encontrei um lugar numa das extremidades, pelo que a bombordo não terei ninguém e a estibordo o mais próximo está a quarenta metros; os clientes estão felizes e convidaram-me para jantar amanhã.  Disse-lhes que não, mas que os levaria ao meu restaurante favorito e ali beberia um copo com eles. Não dormi a ponta de um chavelho esta noite e suponho que por consequência o transporte para a Póvoa do Varzim me evacuou a mortificada mente.

Mortificada não é exagero nem ironia. Quando voltarei a ver estas águas?

13.8.25

Diário de Bordos - Cala Ratjada, Mallorca, Baleares, Espanha, 13-08-2025

Cala Ratjada é uma espécie de Vilamoura gigante com uma marina encolhida. Dois horrores. Não venho aqui muitas vezes e não é por acaso. É porque não gosto mesmo do lado leste da ilha em geral e deste porto em particular.

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Com clientes como os de agora não me importaria de fazer este trabalho todos os dias.

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Ando bicéfalo: entre o charter de hoje e o transporte de sábado a minha mente não sabe para onde olhar. Ou melhor: saber sabe mas chateia-se comigo porque acha que encavalitar um transporte como este logo a seguir a um charter é uma imbecilidade. Permito-me discordar e respondo-lhe «O que tem de ser tem muita força». Ela cala-se e faz o seu trabalho em cada uma das áreas. Pelo menos no que respeita ao charter está a trabalhar bem. Vamos a ver o resto.

E a carcaça, perguntar-me-ão? Bem, essa calo-a com óptimos sonos a bordo e hierbas secas em terra. É uma boa mistura.

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A desgraçada da minha mente, como se não estivesse suficientemente ocupada com as duas tarefas já mencionadas, começa a fazer sérias incursões na prospectiva, ciência que sempre abominou. O objecto de tão estranha actividade (para ela) sendo este Inverno. Panamá, Palma ou Caminha? Se eu pudesse escolher, iria por uma mistura de Palma e de Caminha mas como não sei se posso, não escolho nada. O ceguinho e o seu «A ver vamos» é que tinha razão. Sobretudo se nos lembrarmos de que ele o dizia à mulher, que era surda, coitadinha.

10.8.25

Diário de Bordos - Cabrera e Portocolom, Baleares, Espanha, 10-08-2025

Palma despede-se de mim majestosamente. Estou em Cabrera, aonde já não vinha há bastante tempo e esta semana o programa é irmos a Menorca, aonde tão pouco vou desde que Moisés separou as águas ou Noé construiu a arca (deve ter sido mais ou menos ao mesmo tempo). Os clientes são adoráveis: dois casais de italianos jovens e bem-educados. Uma das raparigas faz hoje trinta anos... Não há vento, graças a Deus. (Espero que para a semana haja e muito, mas uma coisa é um transporte e outra um charter, como qualquer pessoa sabe.)

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Este Verão passou à velocidade da luz. Já estou a cinco de Outubro na Sicília. Ainda não sei é como vou sair dali mas para isso está o Outono. 

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Vim jantar ao Sa Llotja, muito provavelmente o melhor restaurante de Portocolom. Seria injusto - ou pedante - dizer que é barato. Não é. Mas é tão bom...

Seria igualmente injusto dizer que passo dias de merda para pagar isto. Não passo.

A única coisa que posso dizer de consciência tranquila é que me sai dos pelos. Isso sai. As glândulas sudoríperas não estão por cima deles, o que de resto me parece um erro da evolução. E o que eu transpirei hoje não se conta nem se cheira. Até tirei a camisa. Felizmente os clientes são jovens e adoráveis e não se importaram. Olha a sorte que eu tenho...

(Refiro-me à totalidade do total, não só aos clientes ou ao pólo.)

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Refiro-me a esta noite e a todas as que me trouxeram aqui. E ao que me trouxe aqui. E a aonde isto me levará. Ao crematório, eu sei. Refiro-me ao caminho até ele.

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Isto só não se chama potlatch porque não tenho ninguém que retribua.

Enfim, tenho. Chama-se vida. Também desperdiça muito e ri-se. 

Podre de arrependimento, claro.

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O jantar acabou por ser menos caro do que eu pensei. É sempre melhor pensar que se vai pagar uma grande fortuna e acabar com uma pequena. Sobretudo quando o jantar é bom como este foi. Ou quando é muito mais do que um jantar: visto por um lado é uma expiação, por outro uma acção de graças. Qualquer das perspectivas vale bem o que paguei.

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Estou no meio do velho e habitual problema do dinghy: não quero ir para bordo e depois eles ligarem-me para os ir buscar porque quero dormir. Não reclamo: o alvo da reclamação teria de ser eu.Organizei isto muito mal. Estava a morrer por um duche e mal chegámos foi nisso que pensei. Resultado: voltei para o Volare, agora para beber mojitos sem açúcar enquanto tento não me desfazer em sono. Acabei por comer de mais. A mousse de chocolate era dispensável ou deveria ter sido trocada por um colonel, ainda por cima mais barato.

Estamos sempre a aprender.

(Ah, já agora um relembrete: scallops em inglês não significa escalopes.)

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Se a vida fosse tão boa comigo como eu sou com ela obrigar-me-ia a pensar duas vezes antes de agir em vez de agir duas vezes antes de pensar. Infelizmente agora é tarde, eu sei. Já ambos lançámos os dados, a vida e eu.

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Afinal o problema do dinghy não o foi e viemos todos para bordo felizes, contentes e quase sóbrios. Tanto que ainda bebemos umas hierbas

9.8.25

Aonde, quando

Importo-me pouco com o mundo e menos ainda com o meu lugar nele. Estou aonde estou e ele, soberano,está-se nas tintas para mim. Nada como a reciprocidade, não é? Oiço música grega, música que comprei em Atenas há vinte anos ou mais e penso naquela história do tempo-espaço. Há vinte anos - ou mais - estava aqui, aonde agora estou. Isto é, em mim. Mudamos do lugar aonde estamos mas não do lugar que nos recebe desde que sabemos o que é um lugar. Desde que sabemos a diferença entre nós e um lugar. Com a idade aprendemos que isso é o que somos e que o lugar aonde somos o que somos importa pouco. Não é de aonde que fugimos. É de quando.

Sono, pele

A questão é simples: como deixar o dia de hoje esvair-se sem que o de amanhã nos entre pela pele dentro?

8.8.25

Mundo, n e m

O mundo muda e não é por acaso que entre mundo e mudo só há uma letra de diferença. 

É a inicial de não, eu sei, mas éme é a inicial de muita coisa e ninguém se ofusca por causa disso.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-08-2025 / II

Só quem nunca saiu de Lisboa pode pensar que a luz da nossa capital é unica, maravilhosa, especial e etc. É, sim. É maravilhosa, especial e única porque é o resultado de uma combinação de factores que ocorrem especialmente em Lisboa. Mas qualquer cidade perto do mar tem uma luz especial, única e maravilhosa, diferente da de Lisboa simplesmente porque os factores que fazem da luz o que é variam. A luz de Palma, por exemplo, assemelha-se à de Lisboa e varia apenas devido às árvores. As ruas aqui são arborizadas, as árvores são altas e filtram a luz de uma forma, lá está, única.

Há momentos nesta cidade em que somos transportados para outra dimensão, perdoem-me o lugar-comum mas não há outro. No carrer Unión, na Rambla, no Paseig des Born a luz de repente envolve as pessoas de um halo e faz delas todas santas, dos pés à cabeça. Uma luz difusa, filtrada pela humidade do mar e de repente olha-se e parece que as pessoas avançam num muro de luz. Num muro de felicidade, mas essa está nos olhos de quem a vê.

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O bar After Landing faz Alexanders tão bons como os do senhor Miguel no Pavilhão Chinês ou os do Luís (e depois do Zé) no Procópio. Tem um acrescento, apenas: uma coleção de bitters como até agora só vi no Door 13, também em Palma. Hoje experimentei o meu cocktail favorito com quatro gotas de um bitter de amêndoa e agora vou experimentar com um bitter de chocolate. «Menos gotas», diz-me  um dos empregados. «Este é mais forte.»

O bar After Landing vai ocupar o lugar do Antiquari, apesar de não ser tão bonito. Tem outras coisas. Tal como expliquei ao senhor que me faz os Alexanders, sou uma mistura de conservador e explorador. Mistura de proporções variáveis, isso não lhe disse porque ele não precisa de saber. Hoje sou um, amanhã outro.

Desde que os Alexanders sejam bem feitos e tenham quatro gotas de bitter de chocolate.

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Ando a correr: amanhã encontro-me de manhã com os clientes do charter desta semana, depois vou a Andratx rever o S., que vou levar para o Porto, depois volto para Palma preparar o saco para a semana. Não gosto de correria e esperam-me dias dela. Nada é perfeito, nem a minha vida apesar do esforço que nela invisto.

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Mais um jantar no Fidel (que hoje era o Tom) com o V. C. P. Amar Palma é fácil. Ser amado por ela também e eu tenho provas quotidianas de que esta cidade me ama. Se não amasse, não teria sentado esta senhora na mesa ao lado. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-08-2025

Chego de Lisboa e vou directamente para o Napoli. O pretexto é a fome, claro; fraco pretexto. A verdade é que preciso de noite, mas de noite a sério, não a do 7 Machos - que de qualquer forma estaria fechado quando lá chegasse - ou a do Nova Lisboa. A noite não é essa. É a dos empregados de restaurante que acabaram de trabalhar e não querem cozinhar, a dos vendedores de peças «artesanais» do Senegal - a quem compro um hipopótamo giro porque o homem é adorável, chama-se Mamadou Mayé - a das senhoras que precisam de um homem para lhes aconchegar as abundantes mamas e bebem tequila para sinalizar a virtude, a dos chauffeurs de táxi entre dois serviços. Não que esta noite seja mais verdadeira do que a da burguesia ou a da intelectualidade. Não há verdades nisto. É simplesmente que era desta que estava a precisar e como já não ia ao Napoli há muito tempo foi lá que o táxi me deixou e ali comi um hamburguer com bacon e ovo, bebi um tinto e arrematei com um café e umas hierbas secas. conheci o Diego e o Mamadou. A senhora rumou directamente a outro gajo, vá lá saber-se porquê (não que me zangue, note-se. Antes pelo contrário.)

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Hoje choveu e como sempre eu reguei. A água é para partilhar, seja ela real ou metafórica. Estou-me nas tintas para o meu futuro. O presente dos outros também é importante. Sim, porque isto de ser generoso quando se tem muito é fácil. Difícil é sê-lo quando a água é escassa. Faz-me pensar naquelas pessoas forretas que ajudam - são mais altruístas do que eu, que não sou nada forreta e vejo o acto de ajudar com a mesma naturalidade com que vejo a chuva cair no meu jardim e no do vizinho.

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Ou seja: Palma despede-se de mim «com graça e majestade» e eu, que não gosto de despedidas, tento desgraçá-la e plebeizá-la. Não consigo, claro. Palma-a-nobre aceita, adapta-se e guarda para si aquilo de que não gosta, como qualquer aristocrata que se preze.

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No avião de Lisboa para Palma:

O homem que se sentou na minha fila é grande e tem uma barba grande também. Faz-me lembrar aquela personagem do Popeye, a sua nemésis. Usei barba durante vinte anos ou mais. Hoje detesto ver um tipo com «pelo facial», (aspas porque cito) e pergunto-me como é que eu conseguia seduzir senhoras nesse tempo. Qualquer barba é feia, não apenas estas cujo lugar não é numa cara e muito menos num homem.

A citação acima vem de um anúncio que li há muitos anos e nunca mais esqueci. Foi muito antes desta moda se divulgar. Uma senhora num desses sítios de encontros procurava um homem «sem pelo facial». Hoje teria dificuldade em encontrar – mais uma coisa que me faz detestar as barbas: não gosto de modas. Não há modas bonitas, como muito bem se confirma quando olhamos para fotografias antigas.

7.8.25

Diário de Bordos - Aeroporto de Lisboa, Portugal, 07-08-2025

Ontem, avião Palma - Lisboa.

Estou inquieto, impaciente, nervoso, ansioso e tudo isto sem razão nenhuma aparente. Pelo menos às segundas, quartas e sextas. Às terças, quintas e sábados esta febrilidade é mais do que justificada. Aos domingos não sei. Talvez cortando o dia ao meio? Talvez decidindo que não estou nada disso e estou em paz?

A viagem está a demorar imenso, Espanha nunca mais acaba, seja por mar, ar ou alcatrão.

Resumindo: o livro (Não sei) já tem editor; a época correu relativamente bem. St.-Martin - Ibiza, Lisboa - Mallorca, charter, day charter e charter e day charter, charter em Mallorca, Andratx - Porto. Da carcaça só me queixo dos olhos e disso tratarei amanhã em Lisboa.

Não sei. Devo ter uma espécie de ansiedade tectónica, subjacente, que por vezes se manifesta sem que se perceba porquê, como um episódio de herpes labial ou esta vontade de comer sardinhas assadas que não me larga desde que descolámos.

Amanhã tenho um dia cheio. Depois volto para Palma, sexta está livre e sábado começo um charter. Num monocasco. Ainda não consegui o meu objectivo: passar uma época só com lanchas e day charter.

Começámos a descida. Atravessamos uma camada de cirrus que veste a paisagem de tule semitransparente. O castanho alaranjado da terra empalidece e fantasmagoriza-se. Quero chegar depressa e quero arrumar os meus livros e depois ir a Genebra e à Sicília e depois ao Panamá, see Deus quiser. Oxalá. Inch'Allah.

A paisagem é toda igual. Ainda não saímos da meseta. O avião imobiliza-se, fica parado neste algodão translúcido. Quero chegar. Venho à janela, eu que nunca gostei deste lugar. Agora gosto porque me permite dormir mais facilmente. Isto é, quando não estou nesta ânsia que nem acordado me deixa estar, que não acaba nem começa, que parece esta interminável camada de cirrus e de meseta árida.

Estou com frio, mas não sei de onde vem, se de fora se de dentro. Não teria servido de nada trazer o casaco de linho branco. Vê-se o mar. Chegámos. Agora sim, a descida acentua-se. O trem de aterragem saiu. Aterrámos.

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Hoje, Lisboa.

Estava convencido que viria a Lisboa para gastar uma fortuna no oftalmologista e ouvir «Volte cá quando puder». Afinal gastei a fortuna (por sinal até coincidiu o que gastei com o que pensava ia gastar) e ouvi: «Vamos tratar disso agora.» Só isto justifica a vinda e o respectivo custo (duas propostas de charter recusadas, mai-lo o resto todo). Troquei a ida a Cascais por uma sesta. Estava cansado de mais. Comi sardinhas decentes no Alga (as de ontem nem para pâté serviam). Encontrei tripulação para o transporte Andratx - Palma. Continuo febril e ansioso mas como hoje é dia de não saber porquê não perco muito tempo com isso. E se não for passa a ser.

O Terminal dois está consideravelmente melhor. Já não parece que estamos num aeroporto de província do Togo.

5.8.25

Resumo sucinto da minha vida

Uma das poucas - mas grandes - vantagens da minha vida é ser minha. Se fosse doutro gajo qualquer eu ficaria tristíssimo, apesar de não ser invejoso.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-08-2025

Parole, parole, parole... Promessas, promessas, promessas... Por pouco que goste de paroles ou promessas ou «projectos» (aspas porque é uma violenta ironia), são eles que me levam de um dia ao seguinte. Amanhã é um poço cheio de bombons e de mulheres bonitas só o hoje o pode validar e portanto tenho de esperar até amanhã se transformar em hoje e ver em que se transformaram os bombons e as senhoras eesta beleza pacífica que hoje me trouxe. Não só por causa dos amanhãs, note-se, mas como vieram juntos juntos ficam. 

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O bar After Landing faz um Alexander perfeito (com noz moscada e tudo, sem ter sido pedida) e não tem música. Das outras vezes que aqui estive não reparei neste maravilhoso pormenor. Um bar sem música ganha imediatamente outra dimensão e se lhe acrescentarmos um Alexander feito como deve ser passa imediatamente para o próximo nível, o que está mesmo antes do paraíso. Parece-me que encontrei um escritório para as noites.

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Fui jantar ao Gigi's. É como ir comer a casa da avó, só que é o avô quem cozinha. A carta dos pratos hors pasta é reduzida porque a cozinha é pequena (eu diria minúscula mas ainda não a vi) e o dito Gigi (?) está sozinho e cozinha tudo na altura. Quem me diz isto é a sua mulher, uma senhora aparentemente inglesa (não tenho a certeza de ter percebido correctamente), cheia de um vibrato que, suponho, se repercute em quem a vê ou fala com ela. É um supônhamos, claro mas sem supônhamos estaríamos como sem sonhos ou promessas, não é? É.

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Cada vez mais Palma sabe-me a despedida. Logo a mim, que detesto despedidas.

4.8.25

Cheiros, pessoas, fascínios e comoções

O cheiro fétido, rançoso, nauseabundo que por vezes exala de certas pessoas é fascinante. E comovente. 

Vida, vidas

Não é questão de escrever a vida linha a linha, palavra a palavra. É uma vida e é a minha, por acaso ou coincidência. Não é feita só de palavras, graças a Deus. Contém muitas outras coisas. Mas se a sacudíssemos bem, espremêssemos e filtrássemos, sairiam palavras, imagens, meia dúzia de peles, mar e pouco mais. Não parece mas é muito.

2.8.25

Limitações alheias, erros nossos

Descobrir limitações graves em alguém que apreciamos magoa. 

Não por causa das limitações mas pelo que elas revelam de nós.

Da vida e outras coisas

Amar a vida de amor platónico não chega, meu caro. É preciso comê-la, bebê-la e fodê-la.

De caminho fodes-te? E que é uma foda, se não for recíproca?

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Últimas palavras e outras tretas

Não sou grande fã dessa coisa das últimas palavras. Idealmente, as minhas serão um diálogo:

Eu: Fodi-te bem, vida? (Isto desmente-me e demonstra a iimportância das últimas palavras. É uma pergunta que nunca faço.)

Vida: Sim, querido, fodeste-me muito e bem. E eu, fodi-te?
Eu: Sim, vida, tu também me fodeste muito. Não sei é se foi bem, mas agora é tarde para decidir.

Diário de Bordos - Ibiza, Ibiza, Baleares, Espanha, 02-08-2025 / II

Acabo de almoçar e deambulo um pouco por Ibiza. A cidade confirma o que eu penso dela: é bonita, tem uma mistura interessante de velha e nova arquitectura e insinua-se por mim dentro. Se não soubesse que isto tudo vive de festas, cocaína e superficialidade caíria na armadilha.

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Claro que chamar a isto «armadilha» é uma maneira disfarçada de me chamar palerma, mas isso fica para depois. Agora é hora de apreciar o rum Santa Teresa «especial» (aspas porque não fixei o rótulo) a doze euros, doze. Como o normal custa onze não vejo grande razão para não o escolher, se bem pense que rum Santa Teresa especial é um pleonasmo. O rum Santa Teresa é especial por natureza, qualquer que seja o seu preço ou etiqueta. É um rum hispanófono, sem os xixis dos franceses e a agrura dos anglófonos. («Franceses» não é por acaso. Só eles fazem runs que falam francês.)

O almoço, na tasca da bem coisada foi bastante bom, frango frito, vinho tinto e hierbas. A viagem de avião de Ibiza para Maiorca dura meia hora e dou por mim a lamentar ser tão curta. Vão acordar-me mal adormeça. 

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Pergunto-me como posso gostar tanto de uma vida que me obriga a andar tantas vezes de avião e a resposta é simples: passo mais tempo no mar do que no ar.

Se bem seja falaciosa, mas isso são contas de outro rosário.

Relação de eixos semânticos

Está um homem sentado numa esplanada em Ibiza a pensar na relação do calor com a paisagem e vai daqui, um ponto de partida relativamente simples, embrenha-se em elocubrações lexicais sobre os possíveis significados de calor e paisagem.

Cada um destes termos aceita pelo menos um plural e algumas variáveis. Por exemplo: paisagens móveis versus paisagem fixa. Calores externos versus calores internos (integrar eixo temporal).

Outro paradigma: o tempo. A diferença entre vermos o tempo escorregar por nós e termos nós de gatinhar por ele fora, aos apalpões e arranhadelas.

Outro: nós e a vida. Quem manda, quem é mandado? Um pau mandado é a mesma coisa do que um pau ou um mandado?

Divagações: se não houvesse calor haveria vida? E sem vinho tinto? E sem hierbas? E sem café? E sem mar? 

A resposta é evidente?

Telefones, rodas

É bastante provável que o uso do telefone portátil se tenha propagado ao mesmo ritmo que o da roda quando ela apareceu.

Mutatis mutandi, claro

Normas para fazer fotografia

- Olhar para cima;

- Olhar para trás;

- Olhar para onde os outros não olham;

- Olhar para a luz e escrever uma história com ela;

- Enquadrar e disparar.

Diário de Bordos - Ibiza, Ibiza, Baleares, Espanha, 02-08-2025

A viagem para Ibiza foi a habitual mistura de banalidades: bom tempo, um bocadinho de chuva, um bocadinho de muito vento, um bocadinho de tudo banhado em cansaço. Cheguei às quatro da manhã, não havia lugar para mim no pontão mas os marinheiros deram-me uma bóia, dormi bem e pouco. Quem gosta de vidas variadas deve evitar a de skipper, que é muito parecida com o mar aonde se passa: muda imenso e é sempre o mesmo. Bom, banhada em cansaço e em alegria, prazer, não digo felicidade porque não gosto de palavrões.

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Tenho a tarde livre em Ibiza, cidade que aprecio medianamente e conheço pior. Preparo-me para umas horas de turismo como deve ser: sentar-me num café e esperar que a cidade passe por mim, em vez de a calcorrear eu com a mochila às costas. (Mochila essa que contém a máquina fotográfica, mas a esta hora é pouco provável que haja luz decente para fotografar seja o que for.) A dificuldade deste método de turistar é a escolha do café. Os parâmetros são muitos e contraditórios: estar bem situado, ter a correcta mistura de turistas e locais (com preponderância parav estes, naturalmente), ser confortável para se escrever, não ser «gourmet fusion poke et al.»

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Tenho de escrever um texto sobre a dor. Tenho devia levar aspas: não tenho. Quero. A relativa ausência de dor em que me encontro - relativa sendo aqui a palavra-chave, porque é exactamente a que me vai servir de mote para o texto - torna o exercício bastante sedutor. Tenho é de o escrever antes de o relativo se transformar em absoluto.

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Em Ibiza nunca sei aonde comer (e acessoriamente fazer turismo). Escrevi o que antecede no Café-Teatro Pereyra, um lugar adorável mas que não satisfaz todas as condições: tem pouca gente. Mas que é bonito e confortável e apelativo é.

Depois decidi apangar o touro pelos cornos, por assim dizer. Liguei para o D. S., que é daqui e teve a gentileza de responder ao meu pedido: um sítio para comer mal, caro, feio e longe de tudo.

Resposta: Barra da la Bientirada. Não sei se Bientirada significa o nesmo do que significaria em francês, mas vou perguntar e já digo.

Sim, tem. Isto está cada vez mais apelativo.

Fica na Avinguda Bartomeu de Rosseló, 11, se por acaso alguém quiser beber uma cerveja ou comer uma excelente tapa na bem coisada.

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Contrariamente ao habitual, sento-me no exterior e como é costume regozijo-me: em alguns casos uma esplanada pode ser melhor que- ou pelo menos tão bom como - o interior, apesar do ar condicionado.

Em primeiro lugar, as senhoras rivalizam em beleza com as de Palma, o que atenua largamente o efeito do calor. Enfim, substituiria um por outro, se tal fosse possível. Em segundo lugar, a vista é muito mais bonita, apesar de estar numa avenida de lojas.

Sou pássaro de ar livre e se por vezes me fecho é para melhor apreciar a alternativa. 

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Problema: aqui chegado isto pede sesta e a menos que vá para o aeroporto não vejo aonde.

Devia haver um café Fábulas em todo o lado. Incluindo Lisboa, aonde fechou por obra e desgraça do demo.