"Comecei a fugir para dentro. É cada vez mais difícil não fugir para dentro", dizia, citando Nuno Júdice. Por isso se deitava todos os dias às "portas do crepúsculo": ele era a noite, o que não era visível, o que não tem côr nem forma. De dia, o movimento das coisas inquietava-o: não sabia para onde iam. "Talvez para Amsterdão". Quem iria para Amsterdão? Ele não: não conseguia esquecer a jovem que uma vez lhe dera boleia na bicicleta, ele sentado no quadro, dez vezes mais pesado que ela. Não conseguia esquecer as águas negras dos canais, como as paredes do "Blues Café".
Não conseguia esquecer nem uma palavra que dissera ou ouvira, nem uma paisagem, nem uma cara, ou pele: transformara-se num imenso Aleph, numa paráfrase sobre pernas.
27.4.04
26.4.04
Sans titre
Petit à petit Arthur tomba amoureux de Marie-José. C’était un amour insidieux, “un amour moustique”, l’appelait-il: “on l’entend bien avant d’être piqué”. Arthur savait qu’il lui serait facile de s’en débarrasser, mais ne le voulait pas. Il avait envie de Marie-José, il avait envie de la calmer, de la conquérir, de lui démontrer combien, oh combien, elle était désirable non pas quand elle se croyait désirable, mais quand elle baissait la garde et devenait elle-même. Il aimait son intelligence ; et quand elle faisait comme si elle en n’était pas pourvue il avait envie de la noyer. Mais il savait qu’il la retiendrait au dernier moment, car il était amoureux d’elle et pour être amoureux de quelqu’un il suffit d’être amoureux des ses défauts.
Il avait envie de lui faire l’amour : il aurait certainement beaucoup de choses à lui apprendre, car Marie-José était très amoureuse d’elle-même et il faudrait lui apprendre l’autre. « Mais ça sera drôle », se disait-il, « car elle apprend vite ». Et l’amour est une question d’intelligence. Le corps n’en est que le véhicule. Une femme bête ne saura jamais faire l’amour : elle saura être lascive, tout au plus. Arthur soupçonnait une quantité inépuisable de sensualité chez Marie-José. Il l’aimait et il avait envie d’elle.
Il avait envie de lui faire l’amour : il aurait certainement beaucoup de choses à lui apprendre, car Marie-José était très amoureuse d’elle-même et il faudrait lui apprendre l’autre. « Mais ça sera drôle », se disait-il, « car elle apprend vite ». Et l’amour est une question d’intelligence. Le corps n’en est que le véhicule. Une femme bête ne saura jamais faire l’amour : elle saura être lascive, tout au plus. Arthur soupçonnait une quantité inépuisable de sensualité chez Marie-José. Il l’aimait et il avait envie d’elle.
Cantilène
Pour M. P. (qui ne les lira jamais)
Tu joues joues joues si bien des mots,
Dans ta bouche sont-ils légers légers légers,
Tu les manipules pules pules si bien…
Des peaux joues-tu aussi bien que des mots?
Tu joues joues joues si bien des mots,
Dans ta bouche sont-ils légers légers légers,
Tu les manipules pules pules si bien…
Des peaux joues-tu aussi bien que des mots?
Via Dolorosa
Lista de Aperitivos para um almoço buffet
Chouriço em Cidra (das receitas de Pepe Carvalho);
Peixe frito de escabeche;
Fatias recheadas;
Ceviche;
Amêijoas à Bulhão Pato;
Escabeche à Marroquina;
Salada de polvo.
Chouriço em Cidra (das receitas de Pepe Carvalho);
Peixe frito de escabeche;
Fatias recheadas;
Ceviche;
Amêijoas à Bulhão Pato;
Escabeche à Marroquina;
Salada de polvo.
Pequenos anúncios
Homme, 38 ans, marié, pondéré, (sur-pondéré, même), cherche femme pour rencontres clandestines, illégitimes, fugaces, ludiques, lubriques, brèves, drôles, sensuelles, fragiles, sans avenirs et sans passés, respectant les usages courants, couchants et dormants. Pour femme aux yeux noirs, bleus ou verts, vifs et surprenants.
Beckett
"Past midnight. Never knew such silence. The earth might be uninhabited."
"... Perhaps my best years are gone. When there was a chance of happiness. But I wouldn't want them back. Not with the fire on me now. No, I wouldn't want them back."
In Krapp's Last Tape, Faber & Faber, ed. 1965
"... Perhaps my best years are gone. When there was a chance of happiness. But I wouldn't want them back. Not with the fire on me now. No, I wouldn't want them back."
In Krapp's Last Tape, Faber & Faber, ed. 1965
Baricco, sempre
" - Mais rien n'arriva, parce qu'il manque toujours quelque chose à la vie pour être parfaite."
" - Il faut passer à travers la souffrance, vous comprenez?
- Non. "
"Alors elle pensa que, même si la vie est incompréhensible, nous la traversons probablement avec le seul désir de revenir à l'enfer qui nous a engendré, et d'y habiter auprès de qui, un jour, de cet enfer nous a sauvé. Elle essaya de se demander d'où venait cette absurde fidélité à l'horreur, mais elle s'aperçut qu'elle n'avait pas de réponse."
In "Sans Sang", Albin Michel, Trad. Françoise Brun
" - Il faut passer à travers la souffrance, vous comprenez?
- Non. "
"Alors elle pensa que, même si la vie est incompréhensible, nous la traversons probablement avec le seul désir de revenir à l'enfer qui nous a engendré, et d'y habiter auprès de qui, un jour, de cet enfer nous a sauvé. Elle essaya de se demander d'où venait cette absurde fidélité à l'horreur, mais elle s'aperçut qu'elle n'avait pas de réponse."
In "Sans Sang", Albin Michel, Trad. Françoise Brun
Disgrace
Hoje, um ex-dirigente do Partido Socialista Português, actualmente a desempenhar as funções de Presidente da República, condecorou a Sra. Doutora Isabel do Carmo com a Ordem da Liberdade. Deve ser a contribuição desse senhor para acabar com o actual clima de impunidade absoluta que se vive no país - ao qual se começa, muito timidamente, a tentar pôr fim.
25.4.04
Domingo (suite et fin)
Domingo chato, em casa, doente. Acabei "Middle Passage", o livro do Naipaul sobre alguns países das Caraíbas: Trinidade, Guiana Inglesa, Suriname, Martinique e Jamaica, antes da droga. O problema da raça, e as diferentes maneiras como cada um desses países lidou com ele, é o eixo principal do livro. Dos cinco, só conheço a Martinique. Tudo o que Naipaul escreve permanece válido (o livro foi escrito em 1961): presumo que o seja também para os outros.
Sou (agora menos, é certo), colour blind; sinto-me especialmente intrigado pelas povos, países, civilizações para quem a raça é um critério importante na distinção das pessoas. Este livro estuda três atitudes diferentes: a inglesa, a holandesa e a francesa. Paradoxalmente, a mais "aberta" e igualitária, a holandesa, foi a que piores consequências teve, pelo menos se aferidas pela força dos movimentos racionalistas. Mas a verdade é que não se pode falar numa atitude "inglesa": elas foram diferentes em Trinidade, na Guiana, na Jamaica.
Passei a viagem às Grenadines a fazer comparações com África - era inevitável, creio. Uma das coisas de que gostei muito foi que, mesmo quando estávamos em festas locais e éramos, o P. e eu, os únicos brancos, nunca senti no ar a agressividade, e por vezes o risco, que tantas vezes senti em circunstâncias semelhantes em África. Ninguém se aproximava de nós por sermos brancos, mas também ninguém por isso nos agredia ou tinha comportamentos agressivos - duas coisas que teriam acontecido em muitos países africanos.
Lembrei-me muitas vezes de uma frase do A., um colaborador meu em Bujumbura: "o problema em África é político, não é económico, nem tribal. O tribalismo é uma invenção dos jornalistas europeus, e a pobreza resolve-se com medidas políticas, não com ajuda humanitária". Apercebi-me muito depressa que ele tinha inteiramente razão, e hoje subscrevo sem hesitar essa tese - claro que depois há que saber como forçar os governos a aplicar medidas políticas "correctas", mas isso é outra história e outro debate.
Contudo, essa simplificação a que os media são forçados é inevitável - não é por serem idiotas que os jornalistas reduzem e simplificam problemas complexos, é porque um artigo de jornal não é um ensaio.
Sou (agora menos, é certo), colour blind; sinto-me especialmente intrigado pelas povos, países, civilizações para quem a raça é um critério importante na distinção das pessoas. Este livro estuda três atitudes diferentes: a inglesa, a holandesa e a francesa. Paradoxalmente, a mais "aberta" e igualitária, a holandesa, foi a que piores consequências teve, pelo menos se aferidas pela força dos movimentos racionalistas. Mas a verdade é que não se pode falar numa atitude "inglesa": elas foram diferentes em Trinidade, na Guiana, na Jamaica.
Passei a viagem às Grenadines a fazer comparações com África - era inevitável, creio. Uma das coisas de que gostei muito foi que, mesmo quando estávamos em festas locais e éramos, o P. e eu, os únicos brancos, nunca senti no ar a agressividade, e por vezes o risco, que tantas vezes senti em circunstâncias semelhantes em África. Ninguém se aproximava de nós por sermos brancos, mas também ninguém por isso nos agredia ou tinha comportamentos agressivos - duas coisas que teriam acontecido em muitos países africanos.
Lembrei-me muitas vezes de uma frase do A., um colaborador meu em Bujumbura: "o problema em África é político, não é económico, nem tribal. O tribalismo é uma invenção dos jornalistas europeus, e a pobreza resolve-se com medidas políticas, não com ajuda humanitária". Apercebi-me muito depressa que ele tinha inteiramente razão, e hoje subscrevo sem hesitar essa tese - claro que depois há que saber como forçar os governos a aplicar medidas políticas "correctas", mas isso é outra história e outro debate.
Contudo, essa simplificação a que os media são forçados é inevitável - não é por serem idiotas que os jornalistas reduzem e simplificam problemas complexos, é porque um artigo de jornal não é um ensaio.
Polémicas
A verdade é que enquanto se discutem "erres", não se discutem outras coisas muito mais importantes.
PS - no Expresso, na página de Nicolau Santos, o poema do Poeta Alegre sobre o dito cujo "erre". Por amor de Deus!
PS - no Expresso, na página de Nicolau Santos, o poema do Poeta Alegre sobre o dito cujo "erre". Por amor de Deus!
24.4.04
Via Dolorosa
O bar chama-se Pop Up, e é na Rua das Janelas Verdes, nº 84. Há quase trinta anos que os frequento, mas ainda não sei o que distingue um bom bar, equipamento indispensável ao meu equilíbrio psíquico, de um mau. Uma barmaid bonita? A do Pop Up deve ter sido corrida de todos os concursos de beleza do mundo, para dar uma chance às outras concorrentes (sim, eu sei que não sou exagerado e que por vezes devia empolar um pouco as afirmações secas e objectivas que faço. Que fazer? Sou mininalista...); contudo, uma bonita empregada não chega: o melhor bar do mundo, a Casa do Largo, em Cascais, não tem, nunca teve, seja Deus louvado, uma única empregada feminina. Será que a simpatia do dono do bar é determinante? O dono, ou um dos donos, do Pop Up é a simpatia personificada; será a decoração, a música, o serviço generoso e sorridente? O Pop Up tem uma decoração lindíssima, e, para quem, como eu, gosta de arquitectura, particularmente apelativa. A música é boa, a quantidade de vodka que me serviram apreciável - e apreciada - e, enfim, a metade feminina da clientela é bonita, se bem que seja eclipsada pela da jovem senhora que está atrás do balcão.
Temos, portanto, um bar que:
a) é bonito;
b) tem uma clientela bonita,
c) e uma boa música - pelo menos no dia em que lá fui;
d) serve porções generosas ("estão no princípio", diz o céptico em mim. "Que importa?", responde o ingénuo);
e) fica perto de casa (se bem que isto não seja relevante, acho que deve fazer parte de uma crítica objectiva e fria como esta).
Que se pode querer mais? Talvez uma variedade maior na escolha de bebidas, e uma passagem rápida por um curso de cocktails... Mas que isto não vos impeça, ó multidão, de acorrer em massa ao Pop Up - único, ou pelo menos dos raros, bares da zona onde vale a pena ir, o que não é pouco.
Ainda na área da crítica dos equipamentos de lazer de Santos, uma palavrinha rápida e igualmente objectiva em favor do restaurante Pangaré, sito ele também na Rua das Janelas Verdes. É um restaurante muito pequeno, onde à noite se come um só prato, a "picadinha", que é uma mistura de carnes e de tubérculos grelhados. É bom, agradável, tem o ligeiro senão de ser ligeiramente caro para o que é. Mas a simpatia da dona, a qualidade do que lá comi até hoje (tambem têm prato do dia, este a um preço francamente acessível, e francamente bom), o vinho Marquez de Tenera a um preço mais do que aceitável - compensam largamente aquele ligeiro defeito.
Temos, portanto, um bar que:
a) é bonito;
b) tem uma clientela bonita,
c) e uma boa música - pelo menos no dia em que lá fui;
d) serve porções generosas ("estão no princípio", diz o céptico em mim. "Que importa?", responde o ingénuo);
e) fica perto de casa (se bem que isto não seja relevante, acho que deve fazer parte de uma crítica objectiva e fria como esta).
Que se pode querer mais? Talvez uma variedade maior na escolha de bebidas, e uma passagem rápida por um curso de cocktails... Mas que isto não vos impeça, ó multidão, de acorrer em massa ao Pop Up - único, ou pelo menos dos raros, bares da zona onde vale a pena ir, o que não é pouco.
Ainda na área da crítica dos equipamentos de lazer de Santos, uma palavrinha rápida e igualmente objectiva em favor do restaurante Pangaré, sito ele também na Rua das Janelas Verdes. É um restaurante muito pequeno, onde à noite se come um só prato, a "picadinha", que é uma mistura de carnes e de tubérculos grelhados. É bom, agradável, tem o ligeiro senão de ser ligeiramente caro para o que é. Mas a simpatia da dona, a qualidade do que lá comi até hoje (tambem têm prato do dia, este a um preço francamente acessível, e francamente bom), o vinho Marquez de Tenera a um preço mais do que aceitável - compensam largamente aquele ligeiro defeito.
22.4.04
O futuro radioso
Ao som de "Uma Gaivota Voava, Voava" um comunista caía de uma janela do 5º andar. Quando chegou ao terceiro andar gritou para uma senhora que aflita o via cair "Até aqui está tudo bem. O futuro é radioso". No segundo andar levantou o punho e exortou os camaradas a construirem um homem novo. No chão estatelou-se, claro, e deixou uma grande mancha que de vermelha se transformou, rapidamente, em castanha. "O futuro é realmente radioso", pensaram os abutres, enquanto debicavam furiosamente o corpo do senhor. Dostoievski e Zweig jogavam à roleta num casino chamado Amok. O que ganhasse levava a mão de uma desconhecida; o que perdesse ia ao Porto passar uma semana.
No Céu, Deus decidiu reestructurar e reorientar as operações. "Estamos a precisar de um face-lift, focalizar as nossas opções no cliente, de reestrutar o organigrama, que é um pouco complicado, e pouco flexível. Compreende, fomos criados há muito tempo, e desde aí sofremos poucas mudanças. Há que adaptar o modelo, sem o pôr fundamentalmente em causa, aos tempos modernos", explicou a uma jornalista que o foi entrevistar. Assim, os procedimentos foram simplificados: o Purgatório começou a acolher todos os mortos que lá chegam; e só dal eram orientados ou para o Céu ou para o Inferno. Quem não cabe bem nem numa categoria nem noutra vem para Portugal. E as pessoas amáveis de que fala, e de quem estava farto, D. H. Lawrence, porque são uma mentira, começam, a partir de agora, a ir para o Inferno, condenados a ouvir Roberto Carlos.
Lenine, Staline, Mao, Pol Pot e Hitler criam um concurso aberto apenas a governantes com mais de um milhão de mortos provados. Quem ganhar leva uma assinatura vitalícia do Monde Diplomatique e é obrigado a ouvir todos os programas do Herman - sem poder, contudo, mandá-lo para um Goulag ou para uma câmara de gaz.
No Céu, Deus decidiu reestructurar e reorientar as operações. "Estamos a precisar de um face-lift, focalizar as nossas opções no cliente, de reestrutar o organigrama, que é um pouco complicado, e pouco flexível. Compreende, fomos criados há muito tempo, e desde aí sofremos poucas mudanças. Há que adaptar o modelo, sem o pôr fundamentalmente em causa, aos tempos modernos", explicou a uma jornalista que o foi entrevistar. Assim, os procedimentos foram simplificados: o Purgatório começou a acolher todos os mortos que lá chegam; e só dal eram orientados ou para o Céu ou para o Inferno. Quem não cabe bem nem numa categoria nem noutra vem para Portugal. E as pessoas amáveis de que fala, e de quem estava farto, D. H. Lawrence, porque são uma mentira, começam, a partir de agora, a ir para o Inferno, condenados a ouvir Roberto Carlos.
Lenine, Staline, Mao, Pol Pot e Hitler criam um concurso aberto apenas a governantes com mais de um milhão de mortos provados. Quem ganhar leva uma assinatura vitalícia do Monde Diplomatique e é obrigado a ouvir todos os programas do Herman - sem poder, contudo, mandá-lo para um Goulag ou para uma câmara de gaz.
Um dia (8)
"I do not know much about gods", Hannah lia T. S. Eliot. "Mas sei tudo sobre diabos e demónios: dormi com todos eles, e com alguns convivi mesmo durante anos. Agora perdi a inocência: sei finalmente que nada disso serviu para o que quer que fosse. Nada posso esperar de mim, e, o que é pior, nada ninguém espera de mim. Estou sozinha, física e moralmente. Tudo o que de bom poderia haver em mim foi-se, como o calor na noite do deserto. Enganei Bruno, que era um bom marido, e Daniel, mau amante e demasiado coitado para merecer isso. Enganei os meus filhos, que não me perdoam a partida do pai e o que fiz para os guardar comigo; até agora, só não me enganei a mim mesma. Para nada. Para nada."
Quando tudo arde
A resposta à pergunta com que termina um muito citado e particularmente belo soneto de Sá de Miranda "...Que farei quando tudo arde?" é: Ide ver o "Conto de Outono", de Rohmer.
20.4.04
Tubarão
O tubarão corria, apavorado. Tinha fugido dos contos de Maldoror e ouvia hordas de Lautréamonts a correr atrás dele. Entrou num restaurante chinês, onde lhe serviram um escelente Mei Kwei Lu. "Estou salvo", pensou. Respirou fundo e estendeu-se um pouco mais na cadeira. Assim que adormeceu os chineses cortaram-lhe as barbatanas e, por generosidade, fizeram com elas uma magnífica sopa. Quando acordou, o tubarão viu que não tinha barbatanas, o que o aborreceu bastante; mas também viu que estava vivo. "Que se lixe, não preciso de barbatanas para nada". E foi-se embora, a coxear.
Um senhor convidou-o a beber um copo, e ele aceitou. "Afinal ainda há gente boa no mundo!" Contudo, o senhor era proprietário de um snack-bar chamado "The Yellow Shark", cuja especialidade eram os bifes de tubarão, com música dos Beatles aos altos berros. O homem era míope e a casa cheirava a comida que tresandava. A mulher tinha mau hálito, e o empregado, alcoólico, costumava fornicar as clientes que lho pediam em cima do bar na sala ao lado.
Quando acordou, o tubarão viu que lhe faltavam metade dos lombos - e que ainda estava vivo. Continuou a procurar uma razão para viver e um médico honesto. Não encontrou nem uma nem outro, claro. Dias mais tarde, alguém lhe tirou a pele para fazer lixa; resolveu voltar aos livros (este tubarão era um sobrevivente, um objecto de estudo em todas as pesquisas sobre a resiliência), mas só encontrou um texto medíocre, uma sátira mal feita aos Contos de onde, alguns anos antes, ele tinha saído. "Será que ninguém quer um tubarão usado?"
O Conde de Lautréamont não. Nem ouvir falar dele sequer: "foi o tubarão mais estúpido que me passou pela páginas", dizia. Porém, atrás do Conde vinha uma personagem do Roald Dahl que costumava cortar dedos aos proprietários de isqueiros que não acendiam mais de 99 vezes seguidas. E atrás desse, o Oncle Oswald, a tentar sacudir uma leprosa que se agarrava a ele como um boxer à perna de um maquinista da marinha mercante na costa de Moçambique, onde só os Rodhesian Ridgeback tinham o direito de se agarrar às pernas fosse de quem fosse, desde que fosse negro, e nunca oficial num navio da Companhia Moçambicana de navegação.
O Oncle Oswald resolveu ir às trutas no Doubs, e foi comer à Tante Yvonne. Esta, antes de o servir, fez-lhe uma felação soignée. O vinho branco estava bastante fresco, e o Doubs respirava sol. Yvonne foi para a cozinha despejar o esperma nas trutas para que estas ficassem bem peganhentas - ela sabia que Oswald gostava delas assim.
Entretanto, a leprosa desencaixava vaginas, umas atrás das outras. Contei sete, cónicas, feitas em aço inoxidável. Quando as tirou todas descobri que era um homem; tarde demais: disse-lhe para voltar a pô-las e fiz-lhe um cunnilingus acompanhado com champagne Charles Bertin, uma boa relação qualidade/preço para esse efeito. Quando terminei, a leprosa transformara-se numa imensa bolha especulativa.
Kurz, na selva, espetava mais uma cabeça num pau, e Lord Jim deixava-se apanhar por um bando organizado de coolies que traficavam ficções de outrém para ontem. Naipaul e Theroux discutiam num canto: era o princípio do fim de uma tão bela amizade. Theroux voltara de África, onde descobrira que os cenários podem não mudar, mas os filmes sim. Naipaul, em Kisangani, contava histórias ao Mobutu enquanto este a fazia e condenava o seu povo a uma miséria, passe a expressão, negra. Em Lubumbashi, nascia uma jovem senhora chamada Tschombé a quem Dylan Thomas dedicaria, provavelmente, o seu livro "The Map of Love", o qual começa assim: "Because the pleasure-bird whistles after the hot wires / shall the blind horse sing sweeter?" A resposta é não, claro: o cavalo cego está num pub chamado Pig & Pigeon a beber cerveja Courage e a cantar laudas à vida. Hoje, Tschombé cavalga ventres masculinos e leva-os às estrelas, enquanto estuda história africana na universidade. Se é que se pode chamar Universidade àquilo: uma sequência de pavilhões em ruínas enttre os quais os alunos e professores plantam milho. Tem, contudo, uma linda vista sobre a região circundante.
Dylan ele-mesmo lia em voz alta poemas aos clientes:
"Lie still, sleep becalmed, sufferer with the wound
In the throat, burning and turning. All night afloat
on the silent sea we have heard the sound
That came...
...all the from China
and you know you have no love to give her
and she tells you you've always been her lover
because you touched her perfect body with your perfect mind"
Dylan já não conseguia ler. Foi beber whisky. Como não tinha dinheiro, pagou ao barman assim:
"Too proud to die, broken and blind he died
The darkest way, and did not turn away.
A cold, kind man brave in his burning pride
On that darkest day. Oh, forever may
He live lightly, at last, on the last, crossed
Hill and there grow young, under the grass, in love.
...
Go calm to your cruxifixed hill, I told
The air that drew away from him."
O barman não aceitou "Elegy" em pagamento, e o Dylan mandou-o lixar-se. Foi para o México disfarçado de Cônsul. No Doubs, Tante Yvonne continuava a fazer felações e trutas sublimes, aéreas. Resolveu escrever um livro chamado "Histoire de la Felation". O título era um erro: ela queria dizer "Histoires de la Felation", mas como não sabia escrever muito bem tirou-lhe o S. Óptima ideia: 30 anos mais tarde, num outro país do terceiro mundo europeu, estalou uma polémica por causa de um "erre" - que não era "erre", mas sim "erro". Esse país era rodeado por um mar chamado Défice, no qual se banhavam umas coisas em forma de espermatazóide chamadas "políticos". Esses "políticos" mexiam-se muito porque eram realmente espermatazóides, mas provinham de um eunuco (era um eunuco com tomates) pelo que apesar de se agitarem bastante não procriavam. Do outro lado do mar Défice havia o oceano Europa, e comunicavam os dois, segundo o princípio dos vazos comunicantes.
Entretanto o sol resolveu ir ver a execução pública do cavalo cego, que também não tinha massa para pagar a prodigiosa quantidade de whiskies, Piñas Coladas e Alexanders que, para aparar a dor, bebera depois das cervejas. O cavalo aparava dores e golpes habilidosamente, mas acabou por sucumbir à pressão popular. Com a retirada do sol o país ficou às escuras, o Cônsul ficou sem cavalo (branco), o Thomas sem cavalo (cego), o arrumador de carros do Jardim da Estrela sem cavalo (tout court) e nós, o leitor e eu, sem paciência.
É verdade que o cavalo branco do Cônsul era simbólico, ao contrário dos outos dois, mas isso não chega para nos devolver a paciência. Entretanto, um poeta português chamada Reinaldo Ferreira dizia que "a vida é um vôo cego a nada" e exortava o cavalo (seria o cavalo branco?). "voa, cavalo, galopa mais / rumo àquele ponto, exterior ao mundo / para onde tendem as catedrais".
Um senhor convidou-o a beber um copo, e ele aceitou. "Afinal ainda há gente boa no mundo!" Contudo, o senhor era proprietário de um snack-bar chamado "The Yellow Shark", cuja especialidade eram os bifes de tubarão, com música dos Beatles aos altos berros. O homem era míope e a casa cheirava a comida que tresandava. A mulher tinha mau hálito, e o empregado, alcoólico, costumava fornicar as clientes que lho pediam em cima do bar na sala ao lado.
Quando acordou, o tubarão viu que lhe faltavam metade dos lombos - e que ainda estava vivo. Continuou a procurar uma razão para viver e um médico honesto. Não encontrou nem uma nem outro, claro. Dias mais tarde, alguém lhe tirou a pele para fazer lixa; resolveu voltar aos livros (este tubarão era um sobrevivente, um objecto de estudo em todas as pesquisas sobre a resiliência), mas só encontrou um texto medíocre, uma sátira mal feita aos Contos de onde, alguns anos antes, ele tinha saído. "Será que ninguém quer um tubarão usado?"
O Conde de Lautréamont não. Nem ouvir falar dele sequer: "foi o tubarão mais estúpido que me passou pela páginas", dizia. Porém, atrás do Conde vinha uma personagem do Roald Dahl que costumava cortar dedos aos proprietários de isqueiros que não acendiam mais de 99 vezes seguidas. E atrás desse, o Oncle Oswald, a tentar sacudir uma leprosa que se agarrava a ele como um boxer à perna de um maquinista da marinha mercante na costa de Moçambique, onde só os Rodhesian Ridgeback tinham o direito de se agarrar às pernas fosse de quem fosse, desde que fosse negro, e nunca oficial num navio da Companhia Moçambicana de navegação.
O Oncle Oswald resolveu ir às trutas no Doubs, e foi comer à Tante Yvonne. Esta, antes de o servir, fez-lhe uma felação soignée. O vinho branco estava bastante fresco, e o Doubs respirava sol. Yvonne foi para a cozinha despejar o esperma nas trutas para que estas ficassem bem peganhentas - ela sabia que Oswald gostava delas assim.
Entretanto, a leprosa desencaixava vaginas, umas atrás das outras. Contei sete, cónicas, feitas em aço inoxidável. Quando as tirou todas descobri que era um homem; tarde demais: disse-lhe para voltar a pô-las e fiz-lhe um cunnilingus acompanhado com champagne Charles Bertin, uma boa relação qualidade/preço para esse efeito. Quando terminei, a leprosa transformara-se numa imensa bolha especulativa.
Kurz, na selva, espetava mais uma cabeça num pau, e Lord Jim deixava-se apanhar por um bando organizado de coolies que traficavam ficções de outrém para ontem. Naipaul e Theroux discutiam num canto: era o princípio do fim de uma tão bela amizade. Theroux voltara de África, onde descobrira que os cenários podem não mudar, mas os filmes sim. Naipaul, em Kisangani, contava histórias ao Mobutu enquanto este a fazia e condenava o seu povo a uma miséria, passe a expressão, negra. Em Lubumbashi, nascia uma jovem senhora chamada Tschombé a quem Dylan Thomas dedicaria, provavelmente, o seu livro "The Map of Love", o qual começa assim: "Because the pleasure-bird whistles after the hot wires / shall the blind horse sing sweeter?" A resposta é não, claro: o cavalo cego está num pub chamado Pig & Pigeon a beber cerveja Courage e a cantar laudas à vida. Hoje, Tschombé cavalga ventres masculinos e leva-os às estrelas, enquanto estuda história africana na universidade. Se é que se pode chamar Universidade àquilo: uma sequência de pavilhões em ruínas enttre os quais os alunos e professores plantam milho. Tem, contudo, uma linda vista sobre a região circundante.
Dylan ele-mesmo lia em voz alta poemas aos clientes:
"Lie still, sleep becalmed, sufferer with the wound
In the throat, burning and turning. All night afloat
on the silent sea we have heard the sound
That came...
...all the from China
and you know you have no love to give her
and she tells you you've always been her lover
because you touched her perfect body with your perfect mind"
Dylan já não conseguia ler. Foi beber whisky. Como não tinha dinheiro, pagou ao barman assim:
"Too proud to die, broken and blind he died
The darkest way, and did not turn away.
A cold, kind man brave in his burning pride
On that darkest day. Oh, forever may
He live lightly, at last, on the last, crossed
Hill and there grow young, under the grass, in love.
...
Go calm to your cruxifixed hill, I told
The air that drew away from him."
O barman não aceitou "Elegy" em pagamento, e o Dylan mandou-o lixar-se. Foi para o México disfarçado de Cônsul. No Doubs, Tante Yvonne continuava a fazer felações e trutas sublimes, aéreas. Resolveu escrever um livro chamado "Histoire de la Felation". O título era um erro: ela queria dizer "Histoires de la Felation", mas como não sabia escrever muito bem tirou-lhe o S. Óptima ideia: 30 anos mais tarde, num outro país do terceiro mundo europeu, estalou uma polémica por causa de um "erre" - que não era "erre", mas sim "erro". Esse país era rodeado por um mar chamado Défice, no qual se banhavam umas coisas em forma de espermatazóide chamadas "políticos". Esses "políticos" mexiam-se muito porque eram realmente espermatazóides, mas provinham de um eunuco (era um eunuco com tomates) pelo que apesar de se agitarem bastante não procriavam. Do outro lado do mar Défice havia o oceano Europa, e comunicavam os dois, segundo o princípio dos vazos comunicantes.
Entretanto o sol resolveu ir ver a execução pública do cavalo cego, que também não tinha massa para pagar a prodigiosa quantidade de whiskies, Piñas Coladas e Alexanders que, para aparar a dor, bebera depois das cervejas. O cavalo aparava dores e golpes habilidosamente, mas acabou por sucumbir à pressão popular. Com a retirada do sol o país ficou às escuras, o Cônsul ficou sem cavalo (branco), o Thomas sem cavalo (cego), o arrumador de carros do Jardim da Estrela sem cavalo (tout court) e nós, o leitor e eu, sem paciência.
É verdade que o cavalo branco do Cônsul era simbólico, ao contrário dos outos dois, mas isso não chega para nos devolver a paciência. Entretanto, um poeta português chamada Reinaldo Ferreira dizia que "a vida é um vôo cego a nada" e exortava o cavalo (seria o cavalo branco?). "voa, cavalo, galopa mais / rumo àquele ponto, exterior ao mundo / para onde tendem as catedrais".
19.4.04
Vigo
Ao princípio, pensa-se que Vigo é uma cidade cinzenta. Depois, apercebêmo-nos que não: é simplesmente uma cidade sem côr.
Onde se come bem, ao menos isso.
Onde se come bem, ao menos isso.
Eliot, deuses e diabos
"I do not know much about gods".
Eu tão-pouco; mas sei tudo sobre diabos, demónios,
como afogá-los nesse rio de que falas,
"sullen, untamed and intractable",
Afogá-los, anestesiá-los, pontapeá-los no focinho,
dar-lhes de beber até se esquecerem de nós,
dos deuses, do rio e do mar.
"The river is within us, the sea is all about us".
É verdade: restos de madeira e sacos de plástico e corpos de vacas mortas,
e o cheiro execrável das coisas que
derivam.
"The sea has many voices". Tem.
O mundo também, de resto.
Mas só oiço uma.
Lx 2004
Eu tão-pouco; mas sei tudo sobre diabos, demónios,
como afogá-los nesse rio de que falas,
"sullen, untamed and intractable",
Afogá-los, anestesiá-los, pontapeá-los no focinho,
dar-lhes de beber até se esquecerem de nós,
dos deuses, do rio e do mar.
"The river is within us, the sea is all about us".
É verdade: restos de madeira e sacos de plástico e corpos de vacas mortas,
e o cheiro execrável das coisas que
derivam.
"The sea has many voices". Tem.
O mundo também, de resto.
Mas só oiço uma.
Lx 2004
Dieta e Grenadines
É sempre reconfortante saber que, se não tivesse bebido tanta cerveja e tanto rum, não teria, certamente, engordado.
Mania das grandezas
- Sou um monte de m... - dizia ele.
- Lá estás tu com a mania das grandezas! - respondia ela.
- Lá estás tu com a mania das grandezas! - respondia ela.
17.4.04
Acordar
Quando acordava, tinha Lisboa não aos pés, mas atrás: e pela frente só via o Tejo e o sol no Tejo.
Conselhos à H.
Não esperes, nem procures, um príncipe encantado: escolhe antes um desencantado, é melhor e mais seguro.
E não uses a cama para lhe dar prazer: faz dela um instrumento do teu prazer, e só teu. Talvez tenhas menos candidatos a príncipe, o que é aborrecido, mas terás certamente menos desilusões.
Protege-te da dor, que não enobrece, antes avilta. Não distribuindo bem à tua volta, mas fazendo-te bem a ti.
Se tiveres que escolher entre matar e morrer, mata. E se tiveres que morrer, morre, mas às tuas mãos, à tua hora, por escolha tua, nos teus termos, por ti, não por outrém.
E não uses a cama para lhe dar prazer: faz dela um instrumento do teu prazer, e só teu. Talvez tenhas menos candidatos a príncipe, o que é aborrecido, mas terás certamente menos desilusões.
Protege-te da dor, que não enobrece, antes avilta. Não distribuindo bem à tua volta, mas fazendo-te bem a ti.
Se tiveres que escolher entre matar e morrer, mata. E se tiveres que morrer, morre, mas às tuas mãos, à tua hora, por escolha tua, nos teus termos, por ti, não por outrém.
16.4.04
Eternidade
- Quinze dias sem te ver, trinta, sessenta. De quantos dias é composta a eternidade?
- Um, suponho.
- Um, suponho.
Pedro Tamen
"O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar."
"Não durmas, que há uma escada
Para uma noite maior.
Não morras, que há uma espada
Que mata com mais amor.
Pássaro de todos os ramos,
Ó minha esquina tão esquiva,
A verdade é que afirmamos
Pela dupla negativa.
Querer-te: não querer e não querer.
Não fugir: ouvir o vento.
Amar-te é nao me esquecer
Da minha casa e assento."
"Um filho como um verso: neste branco
do mundo, o universo. Nos cinco dedos
da mão todos os ventos, e a rosa
que os respira e dá, vertiginosos."
E, a terminar esta série de poemas, dedicados ao raio, um raio benigno, note-se, que também os há:
"Hoje trago-te o vento; eu sei
que mais não pode ser o que te der.
E calo-me; o resto já to dei,
ao teu sereno pasmo de mulher.
Hoje trago-te o vento, vento,
o que ele tem mudado para nós.
(O nosso passo antigo que era lento
juntou-nos de repente numa voz.)
Hoje trago-te o vento renovado,
o vento que de longe chegou cá:
em cada monte e esquina foi lavado
para chegar ao fundo do que há
nesta pobreza de hoje, e, cá chegado,
entrar na mão da carne que to dá."
"Nada a fazer, amor: tu és nascida
e eu também, por graça ou majestade;
de lados longe e de que portos parte
esta morte insolente e assumida
que se nos dá nos dando a maior parte
do pão que se mastiga e bruxo há-de,
além de miga, ser de vida a vida?"
"Só dos monstros devemos ter ciúmes ..."
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar."
"Não durmas, que há uma escada
Para uma noite maior.
Não morras, que há uma espada
Que mata com mais amor.
Pássaro de todos os ramos,
Ó minha esquina tão esquiva,
A verdade é que afirmamos
Pela dupla negativa.
Querer-te: não querer e não querer.
Não fugir: ouvir o vento.
Amar-te é nao me esquecer
Da minha casa e assento."
"Um filho como um verso: neste branco
do mundo, o universo. Nos cinco dedos
da mão todos os ventos, e a rosa
que os respira e dá, vertiginosos."
E, a terminar esta série de poemas, dedicados ao raio, um raio benigno, note-se, que também os há:
"Hoje trago-te o vento; eu sei
que mais não pode ser o que te der.
E calo-me; o resto já to dei,
ao teu sereno pasmo de mulher.
Hoje trago-te o vento, vento,
o que ele tem mudado para nós.
(O nosso passo antigo que era lento
juntou-nos de repente numa voz.)
Hoje trago-te o vento renovado,
o vento que de longe chegou cá:
em cada monte e esquina foi lavado
para chegar ao fundo do que há
nesta pobreza de hoje, e, cá chegado,
entrar na mão da carne que to dá."
"Nada a fazer, amor: tu és nascida
e eu também, por graça ou majestade;
de lados longe e de que portos parte
esta morte insolente e assumida
que se nos dá nos dando a maior parte
do pão que se mastiga e bruxo há-de,
além de miga, ser de vida a vida?"
"Só dos monstros devemos ter ciúmes ..."
O raio, o nevoeiro e o mar
No mar, tenho medo de uma coisa e detesto outra: dos raios e o nevoeiro, respectivamente.
É difícil, uma pessoa defender-se de um raio: tem que se passar a amarra em volta do mastro, depois em torno do barco (pela balaustrada), e deixar cair o chicote (a extremidade) no mar, cerca de um metro. Depois, deve desligar-se as baterias, e esperar que a trovoada passe - tudo isto sem garantias de sucesso. Já vi um barco que tinha sido atingido por um raio, e não é um espectáculo bonito. Era um bocado de carvão encarquilhado, que tinha sido rebocado para o porto por uma corveta da Armada. Felizmente a tripulação estava sã e salva. Nem sempre é o caso.
Navegar no nevoeiro não é muito mais agradável, dura muito mais tempo e oss remédio são muito mais passivos: seguir devagar, ouvir, ouvir, ouvir - se bem que na névoa o som pareça vir de todos os lados - e estar pronto para manobrar, sempre.
Não há, nunca vi, nevoeiro e trovoadas ao mesmo tempo - no mar, claro; em terra o caso é outro.
É difícil, uma pessoa defender-se de um raio: tem que se passar a amarra em volta do mastro, depois em torno do barco (pela balaustrada), e deixar cair o chicote (a extremidade) no mar, cerca de um metro. Depois, deve desligar-se as baterias, e esperar que a trovoada passe - tudo isto sem garantias de sucesso. Já vi um barco que tinha sido atingido por um raio, e não é um espectáculo bonito. Era um bocado de carvão encarquilhado, que tinha sido rebocado para o porto por uma corveta da Armada. Felizmente a tripulação estava sã e salva. Nem sempre é o caso.
Navegar no nevoeiro não é muito mais agradável, dura muito mais tempo e oss remédio são muito mais passivos: seguir devagar, ouvir, ouvir, ouvir - se bem que na névoa o som pareça vir de todos os lados - e estar pronto para manobrar, sempre.
Não há, nunca vi, nevoeiro e trovoadas ao mesmo tempo - no mar, claro; em terra o caso é outro.
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