18.4.17

Não digo nada

Não digo nada porque prometi que nunca mais diria nada antes de ter os cabos todos largados. Mas não falho a promessa se disser que se não houver surpresas é hoje que os largo. Daqui a duas horas, talvez três, vá lá, no máximo.

Próxima paragem: La Linea, a menos que os diabinhos do inesperado me forcem a parar nos Açores. Ao diabo os diabos.

"Sonhei, na outra noite, com ilhas mais verdes do que o sonho..."

Amanhã vou-me embora; é uma certeza: só agora me ocorre que St. John Perse era daqui. Quem não tem cabeça ou tem pernas ou tem pena (isto é demagogia. A livraria mais próxima está a dez quilómetros e mais fechada do que o rabo de uma baleia).

"...Au coeur de l'homme, solitude. Etrange l'homme, sans rivage, près de la femme, riveraine. Et mer moi-même à ton orient, comme à ton sable d'or mêlé, que j'aille encore et tarde, sur ta rive, dans le déroulement très lent de tes anneaux d'argile --- femme qui se fait et se défait avec la vague qui l'engendre."

"J'ai rêvé, l'autre soir, d'îles plus vertes que le songe..."

17.4.17

Diário de Bordos - Marina Bas-du-Fort, Guadeloupe, Antilhas Francesas, 17-04-2017

Dissonâncias cognitivas: venho ao Pirate beber um Planteur, do qual não gosto porque é demasiado doce mas enfim, não posso passar os dias de manhã à noite no escritório que a Frégate se tornou, é preciso mudar de vez em quando e o Pirate tem ar condicionado e hoje a música nem sequer está muito alta e a televisão está ligada, pelo que escolho um lugar de costas para ela e quando me vou a sentar eu, eu que não tenho memória nenhuma reconheço o navio na televisão: é o M/V LIEMBA, meu conhecido dos idos de Bujumbura, um navio lindo no qual sonhei fazer a viagem pelo lago Tanganika, mas nunca se proporcionou.

O Lago Tanganika não sai da memória, nem daqueles que a não têm.

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Largada adiada para amanhã. Desta vez estou chateado, era perfeitamente evitável. Como se diz shit happens em inglês? Mas enfim, pelo menos sei agora que amanhã largo, salvo tremor de terra, programas de televisão sobre o Burundi (este não saiu da Tanzânia, coitado. Pergunto-me porquê) ou tsunami provocado pelo dito programa de televisão.

O programa é sobre  os gorilas. A televisão é realmente uma fonte de falsos alarmes sem igual.

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Agora o herói do programa de televisão está no comboio que vai para Dar. Uma vez sobrevoei esse comboio no porto de Kigoma, onde a linha acaba junto ao lago. Havia vinte quilómetros, medidos a GPS, de backlog. Vinte quilómetros de vagões carregados, imobilizados ao longo da linha. Levou um ano a desfazer...

São tão enjoativos, estes programas. Como o Planteur do Pirate.

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Estou fodido com o meu pâncreas. Ou entra na linha ou arrefinfo-lhe com comprimidos até ao fim dos dias. Isto de me fazer pensar até para beber um planteur (ou um ti'punch) paga-se, meu caro.

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Tudo se paga, não é? E quanto mais alto o preço melhor ela foi, que nisto da vida os mecanismos de mercado funcionam.

Não funcionam, claro. Mas faz bem pensar que sim, que estou a pagar a vida que encomendei. Foi a que vivi e talvez seja isso que pago: não ter sido boa mas ter sido a que quis.

16.4.17

Diário de Bordos - Le Gosier, Guadeloupe, Antilhas Francesas, 16-04-2017

Está terceira abordagem parcial, superficial e pela rama da Guadeloupe não me faz gostar mais dela do que gostava. Que longe estou do charme, da simpatia, dos sorrisos da minha bem-amada Martinique, Pa' ni pwobleme Martinique.

O pwobleme sendo, claro, que não gostar muito da Guadeloupe não implica que não seja melhor estar aqui do que alhures. É.

Quantas negativas tem a frase precedente? Demasiadas, mas não as suficientes. A Guadeloupe bem pode ser pior do que a Martinique, mas é melhor do que muitos outros lugares que eu conheço. 

Silêncio

Por vezes penso nela: uma sequência de gritos mudos, silenciosos como os de um gajo que se afoga longe da praia, onde ninguém o vê nem ouve.

15.4.17

Diário de Bordos - Marina Bas-du-Fort, Guadeloupe, Antilhas Francesas, 15-04-2017

As coisas sendo mais ou menos o que são e não sendo nem pouco mais ou menos o que nós queremos que elas sejam a largada foi adiada para segunda-feira. "A oeste nada de novo", diz o marinheiro; "merda!", retorque o gajo que aspira à qualidade de ex-marinheiro.

"Merda!" fraquinho, mas "merda!" é.

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K. é um grego nos cinquenta e poucos que consegue o prodígio - aparente; no Mediterrâneo é a norma - de ser simultaneamente simpático e reservado. O pouco inglês que fala ajuda à reserva mas não a preenche toda. É eficaz, se bem por vezes me deixe perplexo.  N. é um português de quarenta e sete anos, simpático, eficiente, excelente tripulante. Posso estar enganado, mas parece-me que voltei às tripulações normais, depois do terror que foram as do ano passado no transporte para Los Angeles. De qualquer forma creio que não atravessaria com monstros outra vez. É daquelas coisas que se fazem mas não se repetem e eu já bisei. Chega. Três vezes seria mais abuso do que azar.

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Hoje não parei até às quatro da tarde e senti a merda das bactérias ressuscitar. Imagino as batalhas homéricas que se passam nas profundezas do envelope: Augmentin e aliados de um lado, bactérias e diversos órgãos do outro. Uma espécie de guerra mundial num corpo só. Uma guerra corporal, será?

Um autor francês de quem gostava muito disse (enfim, escreveu) uma vez que "Todo o homem é uma guerra civil". Todo o homem é um conjunto de guerras, essa é que é essa. E uma delas perde-se sempre. Trata-se de ir ganhando as outras: de vitória em vitória até à derrota final. Ou então de extirpar dessa derrota a derrota, como da banalidade a banalidade, ou do amor a dor. Vasto e ambicioso programa. E dúbio: quem daria a vida em troca da imortalidade? A alma ainda vá que não vá, é intangível. Mas a vida?

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Fui injusto quando disse que a marina do Bas-du-Fort é igual a todas as outras. Não é; bebo um planteur (de que serve a tonelada de remédios que tomo todos os dias se não puder sequer um planteur beber?) e lembro-me do Marin e do Mango Bay e tal como os animais é assim: algumas marinas são menos iguais do que outras. Bas-du-Fort é uma delas.

(A razão é simples: a náutica de recreio na Guadeloupe esta num patamar muito inferior ao do da Martinique. Não há milagres nem maus-olhados).

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O amor silencioso é o único que merece o nome de amor; todos os outros são diferentes formas de histeria.

Da tosse

O meu corpo resolveu desistir da febre e da rouquidão e trocou ambas por uma inabalável vontade de se virar do avesso: pôr a pele para dentro e as tripas para fora. O método que escolheu para atingir tão insensato objectivo é a tosse.

Estas crises de tosse não conseguirão virar-me de fora para dentro, mas têm um efeito secundário que talvez seja salutar: estou a expelir a merda toda que acumulei nestes últimos meses.

Suponho aliás que a ela devo o permanente estado de cansaço em que andava há uns meses e não - como pensei após aturado estudo - às  rodas de borracha, circulares e pretas das viaturas motorizadas ou ao facto de as ciclovias de Lisboa estarem mais frequentemente ocupadas por peões do que por ciclistas; ou ainda - outra hipótese - à cor verde das folhas das árvores, que uma estranha epidemia impele os nossos autarcas a cortar sem razão aparente.

Das mediocridades

Todas as marinas do mundo têm um café ou restaurante que é frequentado pelas pessoas que nela trabalham. Há excepções, claro, notórias mas irrelevantes - e às vezes até explicáveis -. Na marina de Bas-du-Fort esse lugar é ocupado pela Frégate e - em menor escala - pelo Pirate.

É fácil para quem sabe identificar esses locais: invariavelmente abrem mais cedo, são mais baratos e um tipo não se sente obrigado a calçar-se para lá ir (se a Frégate tivesse net como deve ser suponho que o Pirate não seria sequer aqui mencionado).

Na Frégate a comida é ligeiramente mais do que medíocre - digamos suficiente menos - os funcionários são adoráveis, a net péssima mas ninguém se sente compungido por ter deixado os sapatos a bordo ou o computador numa mesa o dia todo. Hoje, pela segunda vez tentei ir comer a outro lado. As accras do Pirate acabaram de me convencer: não. A ideia era dar uma volta pela marina - da qual de resto estou saturado - mas a chuva enfiou-me no Best Burger, ou coisa que o valha. Não fixei o nome: é inútil. Voltar aqui só por castigo ou ameaça de morte iminente por falta de comida.

Há definitivamente espécies diferentes de mediocridade. Algumas são positivas,  queridas, doces, enternecedoras. As outras não passam de medíocres. 

13.4.17

Diário de Bordos - Marina Bas-du-Fort, Guadeloupe, Antilhas Francesas, 13-04-2017 / II

É mais ou menos impossível esconder que gosto disto, não é? Julie B., que conheci vai para quase meia dúzia de anos em Antigua dizia-me ontem "Deixar o mar? Viver em terra não tem piada nenhuma". Ela sabe: tentou e falhou. Está embarcada outra vez. É um desafio, extirpar a banalidade da banalidade. Ou então torná-la amável, interessante, sedutora, bonita.

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Fui ao médico. Se ir ao médico fosse assim eu iria muito mais vezes: a médica é a directora da agência. Ou seja, as consultas - foram duas, uma para a minha gripe e outra para a farmácia de bordo - foram precedidas de uma conversa sobre os papéis do barco e seguidas de outra sobre o material de segurança. A senhora é doce e simpática; o escritório cum consultório (hoje. Ela trabalha a tempo parcial num lar. "Assim não tenho pacientes à minha espera", explica) é igual ao de todas as agências de charter do mundo: pequeno e atafulhado de coisas de barcos, papéis, t-shirts, uma bicicleta dobrável, sacos de peças e por aí fora. Deve ter sido a melhor consulta médica dos últimos anos.

Daqui a três dias estarei bom. Tenho antibióticos, remédios para a tosse e para a rouquidão; e uma farmácia de bordo consequente.

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A tripulação concordou em não pararmos nos Açores. Vamos daqui directos para La Linea. Quero chegar depressa a Atenas e depois a Genève e depois a Lisboa, onde reverei o C. e a A., amigos de S. Luis e de sempre.

Quem falou em banalidade?

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Diário de Bordos - Marina Bas-du-Fort, Guadeloupe, Caraíbas Francesas, 13-04-2017

Estou cansado e miserável. São vinte para as nove e só agora consegui deitar-me. É pouco provável que consiga dormir já, apesar da gripe, da fatiga, do jet lag, da gripe, da gripe. O O. está um forno, claro, mas pelo menos não creio que tenha mosquitos. Se tem ainda não chegaram. Que se lixem os mosquitos. A primeira coisa a fazer é desembrulhar as pernas e a segunda amaldiçoar estas dores de garganta e cabeça,  que de tão próximas parece provirem do mesmo órgão.

Bebi um ti'punch, só um. E comi accras e boudin noir, este bom aquelas assim assim. Boas de sabor mas demasiado maçudas. E bebi chá sem rum, coisa nunca antes vista por estas latitudes. Pelo menos em mim. Tudo muda, mesmo os monolitos trogloditas.

Agora só me resta lidar com a dor na garganta, resistir à tentação de ir buscar uma faca e cortá-la (a dor, não a garganta)  de alto a baixo, de um lado ao outro,  esquartejá-la e depois cuspir-lhe em cima como nas torturas da Idade Média. Vá lá,  Pelo menos já consegui pôr-me por baixo do lençol de cima.

Não deve haver na terra e no mar profissões pelas quais eu nutra maiores respeito e admiração do que stew e maquinista naval.

E a Guadeloupe, perguntar-me-ão? Ainda só vi a Marina. Nada de especial: du pareil au même. Amanhã começa o trabalho a sério. Com gripe ou sem ela. Mas acho que este calor vai diluí-la, espapaçá-la, reduzi-la a uma pobre e perdida sombra de si. Aposto que vai. Aposto.

Se eu estou reduzido a uma sombra porque não há-de a puta da gripe reduzir-se também?

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Isto era ontem e hoje de madrugada. Acordei num estado porreiro, quase bom e passei a manhã a trabalhar. Não posso dizer que voltei ao ponto de partida: andei dez passos para trás. Estou outra vez de rastos.

Pela primeira vez na vida tolero, simpatizo e até empatizo com um bombista. Uma bomba, já. Atómica.

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Almoco: Colombo e planteur. Doente ou não estou nas Caraíbas, porra!

11.4.17

Rosas

Espalhar as mãos pelas rochas (espalhar não é uma imagem: as rochas são ásperas e cortam-te pedaços de pele que depois guardam, ciosas das suas prerrogativas, habilidades recém- descobertas, por mais inatas que sejam).

Isto é verdade: as rochas podem dilacerar-te desde que nasceram; algumas, porém, não sabem. (Todos passamos por semelhantes descobertas, mais tarde ou mais cedo).

Eu por exemplo acabo de descobrir que algumas dilacerações não doem; enchem-nos de uma nostalgia doce, que um olhar menos treinado tomaria por melancolia. Talvez o olhar menos treinado tenha razão.

Estou a divergir. A verdadeira questão é: onde situar as rochas e nelas as mãos dilaceradas? Podemos imaginar uma praça no centro da cidade com uma escultura feita de rochas; ou uma praia tão perto da praça que uma só letra as diferencia. Podemos imaginar uma montanha - subimo-la ou descêmo-la? O autor prefere deixar essa questão sem resposta. Pensa que a uma pele dilacerada indifere saber se o foi na subida ou na descida, ao contrário de um apaixonado para quem todos os pormenores contam -.

Aí está! Essa pele melancólica e dilacerada é a vida. Resta agora saber quem é a rocha, a tocha na qual se vão imolar os donos das mãos. Viver é isso: mãos que se tocam e se queimam, se dilaceram e espalham pelas rochas. Mãos que podem, no contexto do texto ser substituídas por olhos, corpos ou memórias, tal como um mesmo copo pode levar água, vinho, limonada ou outra bebida qualquer.

Assim nascem as primeiras noites: uma troca de solidões. Duas solidões trocam-se por uma só, que se vai aprofundando e dilacerando.

Por vezes das rochas nascem rosas.

10.4.17

Gripe

O corpo, o meu estúpido corpo, com o sentido de oportunidade que o caracteriza resolveu envolver-se com uma gripe feroz. Isto pouco mais de vinte e quatro horas antes de sairmos, ele e eu que andamos sempre juntos, para a Guadeloupe.

Raios o partam. Vim para casa morrer, que é a única coisa que se pode fazer durante um gripe, uma daquelas que nos talha a pele com uma lâmina de cinco em cinco milímetros e a levanta entre cada entalhe e no-los aquece por dentro, com uma daquelas máquinas de produzir calor cujo nome agora me escapa mas amanhã estará aqui, do lado de fora do corpo e apagado.

9.4.17

Dois pares de mãos, abertas

Pergunta: uma história de amor hoje começa num aeroporto, numa estação de comboios, numa marina, num porto de contentores, granéis sólidos ou líquidos, no terminal de passageiros de um porto frequentado por navios de cruzeiro (antigamente conhecidos por paquetes), numa estação de táxis, na proverbial tabacaria da esquina ou numa outra, menos proverbial, à porta da qual uma pequena suja come chocolates?

Uma viagem poderia começar das mais variadas formas se as viagens tivessem princípio ou fim. Não têm. Com excepção de uma, que não tem princípio mas tem fim. Passa-se o mesmo com uma história de amor; com o amor que essa história conta: tem fim mas não tem princípio. "Fui feito para ti", dizem as duas personagens da história. Mas foram feitas quando?

Como o universo: sabemos que vai acabar, colapsar, as estrelas e planetas e as galáxias e os cometas e os asteróides e o lixo espacial e as partículas mais tudo o que por ali anda e andará e andou um dia colapsará num gigantesco buraco negro e todos saberemos que acabou - "todos" tendo acabado já há muito tempo, claro.

Mas ninguém saberá de onde veio aquilo tudo, onde começou, de onde veio. "Fui feito para ti, mas quem me fez não te conhecia, não me conhecia sequer, foram milhares as mãos que me fizeram chegar a ti e tu a mim".

Foram milhares as mãos que nos fizeram. Uma história de amor começa com um par dessas mãos noutro par, abertas para se receberem, onde quer que estejam.

Promessa

Senhor doutor Juiz. Deixe-me por favor apresentar a minha defesa. Derivado a algumas más escolhas mai-lo azar não tenho dinheiro para advogados. É verdade que dei um fletibaite à Maria. Ou dois, sim. Mas senhor doutor Juiz, temos de considerar também o outro lado da questão. A mulher, salvo seja, com todo o respeito, senhor doutor não me deixa fazer-lhe conilínguas. A mim, senhor doutor, que já em novo era conhecido como o Rei da Trombeta lá no bairro. Enfim, da trompete, mas eu não gosto de palavras em estrangeiro e zangava-me e eles mudaram para trombeta. Quem é que ela pensa que é,  para não gostar de conilinguas? É que depois usa isso para não me fazer a mesma coisa a mim, senhor doutor. Enfim, quero dizer?, o equivalente mas a mim, o senhor doutor Juiz compreende. Depois é outra coisa: a minha Maria - que eu gosto dela, senhor doutor,  isto um fletibaite ou dois não quer dizer que um homem não gosta da mulher, é só que às vezes não sei. Dizia eu: a minha Maria só me apresenta as amigas dela que são casadas ou já têm homem. Das outras nem uma. Diz que não lhes quer apresentar o Rei. Ó senhor doutor, então isto faz-se? Olhe - ah, sim , desculpe - . Dizia eu: ela estava a mangar comigo e isso um homem não pode deixar,  Senhor doutor. Uma mulher deve respeitar o marido. Ele é as conilinguas, as amigas, gozar com a minha alcunha...

Eu peço a Vosselência que me perdoe e compreenda. Eu prometo que se ela voltar para mim e deixar-me exercer as minhas competências e não gozar comigo à frente das amigas eu páro com os fletibaites, senhor doutor. Prometo.

É só ela voltar para mim, senhor doutor Juiz, que sem ela eu até parece que estou sozinho.

6.4.17

Praga

Oiço André Gago ler (magistralmente, o que não estraga nada) o Manifesto Anti-Dantas e penso com inveja nos tempos pré-politicamente correcto, essa praga infecta.

Alguém imagina um Manifesto Anti-Vasconcelos hoje?

5.4.17

"Só os amantes usam luz do sol"

"Lovers alone wear sunlight (...)"

"For whatever we lose (like a you or a me)
it's allways ourselves we find in the sea"

e.e. cummings, in "selected poems 1923 - 1958", ed. Faber and Faber, 1969


Prece

Estação de Santa Apolónia, portas de vidro que dão para o passeio da Inf. D. Henrique.

Venho de uma leitura (leitura não é o termo) de poemas e textos de Almada Negreiros pelo André Gago. Dizer que foi sublime não começa sequer a aproximar-se da sombra do calcanhar da verdade. Como se eu nunca tivesse lido Almada e o tivesse descoberto hoje, num cafezito bonito de Alfama no qual nas primeiras terças-feiras de cada mês se celebra a poesia "com graça e majestade" (entre aspas porque a expressão não é minha. É de Tamen: "Nada a fazer, amor. Tu és nascida / e eu também por graça e majestade").

Escusado será dizer que estava comovido, se bem "estava comovido" esteja tão longe da verdade como o "sublime" de há pouco.

Numa das portas da estação um sem-abrigo, deitado na soleira lê um livro. Tem de levantar os braços para o livro receber a luz que vem do hall, como se estivesse a fazer uma prece à vida, à literatura, aos livros e à luz.

4.4.17

Saúde, transportes públicos

Dia de tratar de mim. Dois hospitais em Lisboa e um Centro de Saúde em Cascais. Tudo ou despachado ou em vias de. Tudo - incluindo uma das consultas e respectivas receitas - podia ter sido feito por telefone.

Uma boa bitola de comparação: quando isto acabar terei passado mais tempo em transportes públicos do que nos hospitais e serviços de saúde.

Felizmente temos um governo e uma autarquia (em Lisboa) socialistas e os transportes colectivos públicos são uma das suas prioridades. As outras foram o embelezamento do eixo central e a reversão das privatizações. Ninguém imagina como seriam os transportes públicos se fossem privados! E o gozo que dá ter de ir em pessoa tratar das coisas nos hospitais porque ninguém responde aos telefones e ver aquele eixo central tão bonito tão bonito que parece estamos na Europa... Também não há e-mails, outro dos métodos que as forças do obscurantismo neo-liberal iam usar para nos impedir de passar uma hora num autocarro entre a Rua da Junqueira e o Campo Pequeno. Ou três quartos dessa mesma hora num comboio para fazer um trajecto que se pode fazer em menos de meia.

É por isso que eu gosto dos socialistas: sabem definir as prioridades. Não se deixam iludir com questiúnculas ideológicas. Sabem o que é melhor para todos nós é impõem-nos essas soluções sem olhar a meios ou consequências.

É que o serviço público é melhor. No sector privado os accionistas das empresas, se querem ganhar dinheiro têm de fornecer um bom serviço. Isso é uma violência inaceitável. Os gestores públicos ganham o mesmo ou mais (e ganhar tem aqui um espectro muito vasto de significados) sem ter de se esforçar para que o serviço e adapte às necessidades das pessoas que os usam.

É mais humano e menos neo-liberal. 

3.4.17

Instruções: dormir

É preciso apontar para a Lua e satisfazer-te com o primeiro calhau no qual tropeças porque não estás a olhar para onde pões os pés mas sim para onde tens a cabeça. Como é que eles dizem? "A cabeça nas estrelas e os pés no chão". Lá que tens os pés no chão tens, sem dúvida. E  muitas vezes as mãos também. E o ventre. E tudo. A cabeça é que nunca sai das estrelas. Isso não. Antes saísse, pensas ao tropeçar na porta da pensão onde arranjaste uma cama para a noite. Em quantos quartos assim já dormiste? A questão não é essa. Em quantos já dormiste que fazem esse passar por um Palace De Luxe Oito Estrelas?

Já tiveste a tua quota-parte de estrelas e calhaus. O que te falta é sono. Dormir aninhado na Lua, tirar os pés do chão  (e as mãos e o resto) e dormir como se estivesses numa praia sem areia, no campo sem formigas, no ar. Algures um louco rega a atmosfera com uma mangueira de bombeiro mas não te molhas. Já nada pode molhar-te, não é?, nem o cheiro a restos de comida da cozinha, o rapaz é nepalês e gosta do teu nome, explica o que é um sherpa  (ele pronuncia serpa, sem h) e fica surpreendido por tu saberes o que é.

O gajo da mangueira disfarçou-se de padre e diz "esta é a tua vida, toma-a e vive-a" e tu vive-la, claro, pés no chão e cabeça nas estrelas. Sonhas com um sono sem sonhos como outros sonham com o totomilhões uma sogra mais nova do que eles um carro resplandecente de encarnado e um cavalinho preto à frente a conquista do pólo Norte em cuecas e sem cães o Pai Natal carregado de igualdade e de beijinhos aos leprosos ou o fim da deslealdade e o regresso dos respectivos fantasmas, olhar esgazeado porque viram a margem do mundo.

Um bom sono, ano e meio de sono na tal praia sem areia, uma pequena loira e bonita a nadar ao longe e a trazer-te as conquilhas à Bolhão Pato que comias quando eras criança numa praia com areia. Bonito sono esse sem sonhos, bonito de morrer, por ele morrerias quase. Quase: morrer não é dormir.

Um drakkar encalha na praia. Deve ser daí que sai a mulher loira. Um drakkar encalhado na ausência de areia, na ausência de sono, nas estrelas. Está frio. Deve ser daí que sai o viking a reboque da Lua. Esta despacha telegramas para o universo todo: "Tenho homem com cabeça dentro de mim. Stop. Dentro cabeça tem drakkar. Stop. Dentro drakkar tem mulher loira. Stop. Aguardo instruções. Stop."

Dormisses tu, dormisses. Dói-te a cabeça. Deve ser dos vikings, das estrelas, da ausência de sono, dos amanhãs que cantam, dos abismos acolhedores para os quais olhas quando estás farto de olhar para a Lua e não tens um dedo para a substituir. Aguarda instruções.

Dorme. Esquece os cegos nas esquinas os coxos na pista de atletismo os estropiados nos balcões  de bancos internacionais as sereias sem pernas as putas cheias de carinho esquece paradigmas e sintagmas e hipérboles eufemismos metáforas metonímias litotes fonemas e a problemática complicada da caça às baleias-anãs no lago do Alqueva (é um lago artificial, tiveram de se adaptar à água doce, coitadas e agora estão quase a ser dizimadas por bandos de sogras jovens à procura de genros velhos e tu a fugir, a fugir).

No jardim à frente do hotel uma rapariga dá aulas de sono. Sabe do que fala: dorme vai para cinco anos. Sem comprimidos e sem sonhos.

Dorme. Não ligues às estrelas, não percebem nada da vida na escuridão e no frio. Tu sim. Podes dormir.

1.4.17

Analogias desgarradas

1 - Forçoso é reconhecer que comprar água engarrafada é como ter sexo com uma prostituta. Para quê pagar, se a gratuita é melhor?

2 - Fazer um post curto dá mais trabalho do que marcar um cesto num jogo de basket jogado com uma bola de ping-pong. 

A porta está aberta

Foi por causa de uma porta. Deixei-a aberta. Espera. Não, foi ao contrário: deixei a porta aberta para que ela pudesse voltar a entrar sem ter de tocar à campainha. Saiu sem chaves. É isso. Discutíramos, como de costume. Já não sei qual foi o pretexto.

Claro que sei. Perfeitamente. Comi os ovos e não esperei por ela, estava a acabar de fazer o  café e eu cheio de fome comi os ovos antes de ela estar sentada à mesa. Começou assim, pela minha sofreguidão junta à falta de educação. Daí passou para a falta de respeito por ela. Era actriz e eu nunca sabia se o crescendo das suas raivas era fingido, auto-ateado ou se vinha do facto de eu não lhes ligar muito. Não ligo muito a nada, na verdade. Gosto de teatro e via-a a subir na fúria, degrau a degrau como se estivesse numa peça. Começava com uma pergunta inocente: "já comeste os ovos?" Depois passava para o degrau acima: "não achas que podias ter esperado por mim?" Não respondo: ela veria o meu gozo - que não é gozo, é indiferença, mas isso ela não concebe, não imagina que tantos e tão profundos sentimentos misturados numa revoada ciclónica (está para vir mas nesta fase já sabemos os dois que vem) me deixem completamente indiferente -. Deixam.

Daqui a pouco estará na cama a ameaçar que se vai matar. Vou para o pé dela, não porque acredite na ameaça mas porque me interessa ver a progressão do turbilhão.  Auto-alimenta-se, como um ciclone. É um circuito fechado.

Lembro-me do café a arrefecer em cima da mesa da cozinha e vou beber um gole. Gosto do café quente, sem açúcar: bebe-se mais devagar. No quarto os gritos aumentam porque saí. Digo-lhe "já vou". "Não preciso que venhas. Não preciso de ti para nada. Não tens respeito nenhum por mim. E ainda menos amor". "Os teus ovos estão a arrefecer e as torradas e o café também", respondo. Tento falar alto mas não gritar. Começa a chorar. As ameaças de suicídio estão quase a chegar. "Vem comer os ovos. Pelo menos morres de barriga cheia". Acabo o meu café e começo a beber o dela. Não me apetece voltar para o quarto. Vai estar à procura dos Valium que um idiota de um médico lhe receitou. Há muito tempo que os tirei da caixa, deixo dois ou três no máximo e vou substituindo os que ela consome. Os outros estão escondidos. "Vou acabar a caixa de Valium". "Acho bem. Toma-os depressa, para ver se adormeces".

Mas ela não tomou os comprimidos. Em vez disso pôs roupa num saco e disse-me "vou-me embora". Fui à frente, para lhe abrir a porta. É a primeira vez que ela faz isto.

Deixei a porta aberta, para ela poder entrar, mas não voltou.

Faz hoje um mês que a porta está aberta.