30.9.18

Cortar as unhas

Hoje cortei as unhas. As das mãos, não as dos pés, que ficam para depois. Tenho andado a tentar descobrir qual o ratio corte das unhas das mãos / corte das unhas dos pés. Estimo-o em três para um. Isto é, por cada três vezes que corto as unhas das mãos corto uma as dos pés. Não sei qual é o ratio normal e isso preocupa-me. Gosto de ter a certeza de que faço parte da normalidade, de que estou no intervalo de valores do normal.

Talvez esta preocupação a alguns pareça de somenos. Ridícula, até. Eu não penso assim. Um dia conheci uma miúda loira, bonita, um bocadinho pouco interessante. Ia casar-se com um gajo que trabalhava no Médio Oriente e ganhava muito bem. Sei isto porque ela mo disse. Era visivelmente daquelas que primeiro escolhem o porta-moedas e depois o homem. Se forem os dois aprovados vai ao altar sem perder muito tempo. Um dia (frequentámo-nos uma semana ou duas, até nos fartarmos um do outro ou ela descobrir que o meu porta-moedas estava tão vazio como a cabeça dela; ou eu que mamas sem nada acima é demasiado cansativo) disse-me que a coisa que mais a desgostava num homem eram as unhas sujas. Olhei ostensivamente para as minhas, não fosse ela julgar que o que ela dizia me era profundamente indiferente.

Estavam limpas. Não me lembro de onde isto se passou. Aborrece-me mais do que não ter a certeza sobre o ratio do corte de unhas mãos / pés. As minhas memórias andam constantemente à procura de um lugar, como se sem uma localização estivessem incompletas. Folhas caídas de uma árvore, arrastadas pelo vento.

Não sei. Talvez seja isso. A loira tinha uma amiga mais alta, mais magra e menos parva. Um dia disse-lhe que estava farto da amiga e queria ir para a cama com ela.

Deu-me tampa. Não queria trocar uma longa amizade por um amor que sabia fugaz, breve. Apesar de compreender que eu estivesse farto da outra. "Ela é muito cansativa, eu sei".

Nunca mais as vi e só me lembro delas quando corto as unhas das mãos. E mesmo assim nem todas. Talvez valesse a pena descobrir de quantos em quantos cortes de unhas me lembro daquela miúda. As relações são coisas importantes, pelo menos as numéricas. Das outras ignoro mais do que sei. Por isso gosto tanto de números: ajudam-me a perceber o que sem eles me escapa, incluíndo loiras.

29.9.18

Tu, sono

As duas únicas coisas que me impedem de dormir são a tua ausência e a tua presença.

Eles vivem

Bom, comecemos então pelo princípio sabendo que a seguir vem um zigzag.

Dentro do zigzag un cérebro e nele um corpo.

Dentro do cérebro, do corpo, dos traços ziguezagueantes que o amor deixa na pele (ou dentro dos traços lineares do desejo) aparece a sombra daquela mistura de amor, desejo, distância e vida que têm sido a tua vida, o teu amor e a distância à qual os vives, eles vivem.

Eles vivem: o teu olhar, o sono, uma senhora loira numa ilha Atlântica ou uma ruiva na penumbra.

Descobrir

Descobre-se uma cidade como se descobre um corpo: pelas mãos, pelos pés.

28.9.18

Bonheur, horreur

Misturar amor e honestidade é receita para o desastre. O amor é conquistador, a honestidade submissão. Amar é ignorar os outros em favor de um, ser honesto reconhecer os outros, tantas vezes em desfavor de um.

Há uma tensão dramática entre a honestidade e o amor. Quando essa tensão se anula, desaparece - quando o amor e a honestidade se equivalem - quel bonheur. Quelle horreur .

Sobredoses, excepções

O amor é a única droga da qual uma sobredose não mata. Antes pelo contrário: ressuscita.

27.9.18

Pergunta

Por onde anda o te do meu tracinho?

26.9.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 26-09-2018

A noite em Palma declina-se, inclina-se, espraia-se. Espalma-se.

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O Ca la Seu estava vazio, o estaminé da senhora argentina onde ia beber um mojito fechado. A Biblioteca de Babel está aberta, mas bebo vinho. Não podem fazer mojitos, é obvio. Não vale sequer a pena perguntar. A caminho de casa páro no Flexas, fecho o círculo.

Comprei um livro, mas está escuro de mais para o ler. Começa com uma afirmação sobre a moda da qual discordo, mas ler coisas das quais discordamos é bom. Das duas uma: ou mudamos de opinião ou reforçamos a que já tínhamos. As duas opções são igualmente agradáveis: trocar um preconceito por outro lembra-me de que são como as pessoas: não os há insubstituíveis. Já reforçá-los é como recuar para melhor saltar. Quanto mais forte a opinião mais difícil mudá-la e por conseguinte mais agradável.

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O dia foi fácil. Foi só meio, praticamente.

Não sei se o conseguirei pôr na água sexta-feira. Depende dos cotovelos para os machos de fundo que vêm de Barcelona. São Truedesign, não quero outra marca. Isto dos machos de fundo tem muito que se lhe diga.

Que se lixe. Prefiro esperar um dia a pôr outro qualquer. Há coisas que não se discutem, como a religião ou determinados cabelos ruivos.

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Vai ser preciso instalar um blower na casa da máquina. A questão é: por onde o vou fazer passar? Onde vai sair?

Não é uma pergunta, são duas. Deslizam pela noite de Palma e só vão voltar a casa amanhã. Óptimo.

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A quantidade de mulheres bonitas nesta cidade só é inferior à de Genebra. Deviam isentá-las de impostos: os que geram só de olharmos para elas compensam largamente.

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Não parei no Flexas. O círculo continua aberto.

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Adenda: Petite note en passant: et celles qui ne sont pas belles ont du chien.

Autofagia

Fazer amor com alguém que se ama para lá de toda a medida conta como autofagia?

24.9.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-09-2018

Não foi um dia de altos e baixos. Foi um dia de baixo e de alto, um dia de merda que acabou bem (acautela-te, boca. Ainda não acabou).

Esqueci-me de comprar uma coisa em Palma e tive de aqui voltar mal cheguei a Andratx; roubaram-me (me não é o pronome exacto, mas é como se fosse) o hélice que não tinha valor, é certo, mas com o qual contava fazer um candeeiro bonito; comprei a tinta errada e o Edisson perdeu uma hora a vir trocá-la.

Revolta-me ser roubado. Não é que seja de posse, não sou (antes fosse). Mas acho inaceitável que se roubem coisas a quem é incapaz de retribuir. É uma cobardia, uma infâmia. Os esquecimentos e as distracções ainda vá que não vá. São chatices, não tremores de terra. Mas roubarem-me qualquer coisa é desvastador, demolidor. Já perto do fim, uma senhora com quem tinha um encontro profissional (a profissão sendo a minha e também dela) não apareceu.

Bom. Depois: safei-me de uma multa de cento e setenta euros e graças à senhora não ter aparecido passei um bocado bastante agradável com um casal amigo.

Por fim venho jantar a um dos sushis da minha rua. Não é grande coisa. Para começar aprecio sushi menos do que medianamente: em todo este tempo só encontrei duas casas onde comer as coisas decentemente: uma no Estoril e outra - um sushi train, imagine-se - em Genebra. Como nunca fui ao Japão e não como isto quando vou a japoneses decentes (salvo seja) o meu conhecimento é limitado.

Por isso decidi vir aqui: talvez fizesse do dia um pedaço de tempo medianamente aceitável.

Fez.

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Isto dito: um gajo entrar no P. e cheirar-lhe a tinta nova paga as misérias e mediocridades todas do dia.

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(Mas não apaga a exaustão).

23.9.18

Estátua

Uma estátua de sal num jardim, frente ao mar, de costas para a montanha. Se falasse diria "Amo-te" e logo uma chuvada imensa cairia, dissolvê-la-ia e arrastá-la-ia vale abaixo.

É por isso que a estátua fica muda no seu canto, a olhar o mar de costas para a montanha: não se quer dissolver numa chuva impossível.

Comparação complicativa

Quem pensa que o verbo "amar" é complicado devia conhecer "amar-me".

22.9.18

Excelência, mundo

Manhã toda a trabalhar com S. Passámos os cabos no mastro. Isto não tem nada a ver com competência. Tem a ver com excelência, com excelência elevada à potência dez, com o prazer profundo quase orgásmico da descoberta de pormenores de que desconhecia até a existência, com o prazer - este simples - de saber que a electricidade e a electrónica do P. estão nas melhores mãos do mundo, do meu mundo - que apesar de tudo não é assim tão pequeno -.

O pódio e as pragas

"Me cago en Dios". De entre as excelências que o mundo deve à Argentina - Borges, Mujica Lainez, Casares, as empanadas (de muito longe as melhores de todas), a Patagónia, Astor Piazzola, Gardel (que não conheço tão bem com um dia conhecerei), alguns vinhos, a arte de grelhar carne como ninguém, Buenos Aires - avultam, quanto a mim, as pragas.

Esta oiço-a agora pela primeira vez, a beber Mojitos mais do que decentes e a comer empanadas enquanto dou voltas ao tempo.

Lembro-me com deleite do "hijo de una reputa madre" e do "hijo de una cola de putas" que ouvia ao R. Mas "me cago en Dios" por causa de un telefone roubado vai directamente para o primeiro lugar do pódio.

21.9.18

A Arte de Ser Português

Comparo o Procópio e o 13. O Procópio é infinitamente melhor e o 13 tem produtos infinitamente melhores.

É um resumo da Arte de Ser Português.

Aventuras, amor e novidades

Um bom whisky enche a boca e a alma ao mesmo tempo. Não tenho esta sensação desde os dias distantes da descoberta do Auchentoshan, Talisker, Laphroaig et al. Hoje foi com o Spice Tree, um blend. Meu amor, estamos prontos para novas aventuras?

Generalidades e cães de caça

A bordo dos navios da Marinha Mercante Portuguesa aprendi que "mais vale um gajo da Cova qu'a Gala toda"; ou que "Alentejanos, Algarvios e cães de caça é tudo a mesma raça" (apresso-me a esclarecer: a) estou simplesmente a reproduzir o que ouvi; b) sobre Alentejanos e Algarvios há uma mil vezes pior).

Devo certamente às minhas raízes duplamente alentejanas e algarvias esta qualidade de cão de caça que, nos dias em que estou de bem comigo penso ser uma das minhas qualidades (de tão poucas não sofrem com a analogia aparentemente pejorativa). A verdade é que sou cão de caça, daqueles que não largam a pista até darem de frente com o urso.

Tudo isto para dizer que encontrei os painéis de isolação sonora. Toda a gente me dizia que não os havia na ilha, era preciso trazê-los de Barcelona, não chegariam antes de quarta-feira na melhor das hipóteses. Estão a bordo, lindos, ignífugos, con capa de alumínio e pins de fixação, prontos a serem cortados e colocados. Alentejanos, Algarvios e cães de caça não largam a taça enquanto não lhe puserem as garras em cima.

Depois disto o dia até parece normal.

P., meu querido P. Para a semana estás na água, ou eu deixo de ser cão de caça e passo a animal decorativo (no meu caso particular isto seria talvez uma promoção, eu sei. Falo na generalidade).

20.9.18

Um dia na vida quotidiana de um skipper durante um refit, atabalhoadamente contado, caoticamente vivido (parte zero vírgula um)

Um gajo chega a casa exausto. Derreado. Desfeito. Pensa no dia, no P. com gente a subir, a descer, a trabalhar, a discutir ideias, a coordenar trabalhos, a porra da isolação sonora não vai chegar a tempo, esta proposta do A. é boa para o barco ou para ele? (Todas as ideias vindas do A. devem ser analisadas por este prisma), o cotovelo para o macho de fundo de polegada e meia devia ser macho / fêmea e é macho / emboque (como é que se diz isto em português?) tem de ser devolvido. Espero que não demorem com o outro. Este orçamento da Mercanautic é demente, a mulher pensa que vou dar mais de mil euros por cabos eléctricos? Tenho de telefonar ao David (Mallorca Batteries caso haja necessidade futura). Onde é que vamos pôr os displays? A mesa de navegação tem de proteger o computador; porra, é preciso fechar as dezenas de buracos de parafusos nas cavernas antes de pintarmos os fundos, Edisson, podes trabalhar até tarde? (Por que raio de carga de água esta merda arrancou tudo ao mesmo tempo?) A., esse recipiente para o gás não serve (terá ele percebido que eu disse "está uma merda"? Espero que sim). Dimitri, precisamos de nos ver, bolas (não é bolas, é outra coisa comecada por f, espero que ele tenha percebido). Ok, amanhã entre as quatro e as cinco. O Dimitri amanhã tem duas arvorações. Se estiver em condições de falar às seis da tarde já me dou por feliz. Agora junta-se o trabalho de fim de época com o dos barcos que atravessam em Dezembro (alguns mais cedo). Salva, tens aqui os cinco metros de tubo PVC (trouxe-o na bicicleta, felizmente não ha polícia); Salva não faz sentido seres tu a pintar os fundos, porra (este é amigo, posso exprimir-me). Eu sei que queres despachar esta merda, mas o Edisson custa um quarto do que tu custas. L., posso pôr o material que sai do barco neste contentor? Não, tens de o ir pôr ao Ponto Verde (os funcionários da marina só sabem dizer Não. Ninguém lhes ensinou Sim.

Bom, não exageres: hoje tiveste uma conversa civilizada, polida, educada, para lá do circunstancial com o director do Clube; é a primeira vez em cinco meses.

Para a semana vais para a água, P.

A grua que estava suposta vir amanhã avariou, eu sei. Mas para a semana estás na água, juro-te. E para a semana eu pensarei que hoje estava fresco que nem uma alface.

19.9.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-09-2018

Das diversas desgraças de se viver em Palma há que dizer uma coisa: todos os dias se encontra uma nova e boa. Ou mais. Hoje, por exemplo, descobri um restaurante óptimo; e no caminho de casa que há não um mas dois restaurantes japoneses, abertos à hora a que regresso e ambos com um sake aceitável (é o mesmo). A minha experiência de sake é reduzida - fiz uma prova múltipla num dos melhores japoneses de San Francisco e dela só me lembro o suficiente para saber que pode ser transcendente e este não é -. Mas tão pouco é péssimo. Não chega, por exemplo, para me impedir de parar num dos dois e beber uma garrafinha de - ou para a -  desgraça.

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O apartamento onde agora vivo - partilhado, devo dizer, com duas jovens, simpáticas e encantadoras senhoras - fica no quarto andar, tal como o anterior. A localização é diferente e é maior, mais amplo. Dá para uma avenida larga e concorrida. A sua característica principal, contudo, é o cheiro a esgoto da entrada. É um cheiro forte, mas felizmente só nos andares de baixo. Como o prédio não tem elevador a transição da zona de cheiro para a de ausência de cheiro faz-se devagar, o que é bom.

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Não ter elevador tem outra vantagem: um gajo pode atribuir, por exemplo, um sake a cada andar. Não serve para nada excepto eventualmente dar vontade de atribuir dois sakes a cada lance de escadas, tentação à qual se deve resistir.

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A minha irmã R. faz hoje sessenta anos, coisa que me traz inelutavelmente à memória que daqui a onze dias faço sessenta e um. A minha entrada na sexagenaridade foi ambígua: começou horrorosamente mal (enfim, sou injusto. Começou mal) e está a decorrer fantasticamente bem (exagero, claro). Tanta descida e subida valem mais um Sake, apesar de não ter mais andares para subir.

Só anos para descer.

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Para além dos dois japoneses (de sushi, só) há um chinês. Será que tem Mei Kuei-Lu? Espero que não, ou acabo a viver num arranha-céus.

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O trabalho no P. arrancou e agora sim, avança. Salvo grandes excepções para a semana está no seu elemento. Foi uma longa e cúrvea estrada, isso foi. Mas só a ideia de que não tarda estarei no mar transforma-a numa auto-estrada deserta como as do Alentejo, ao volante de uma viatura potente. (O P. é uma viatura potente, não tenham dúvidas).

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Serviço Público - Restaurantes Palma de Mallorca:

Champañería, Bar, Fiambrería
A Toque de Queda (quer dizer "Recolher obrigatório", se por acaso)
Carrer de Can Cavalleria, 15 b
Tel.: +34 971 21 38 10 (a esplanada é pequeníssima e convém reservar).

"A toque de queda"

A história é longa (pelo menos no seu aspecto cronológico, vem de há muito) e o restaurante chama-se A Toque de Queda.

É um restaurante pequeno, escondido numa destas vielas da cidade velha de Palma, à frente do qual passo quando me perco, voluntária ou involuntariamente. Tenho vontade de entrar, a cada vez; e a cada vez resisto, sem razão visível ou compreensível.

Hoje, instado pela A. vim cá e percebi porque até agora borreguei: é bom de mais para se vir sozinho.

PS - Exceptuando as Hierbas, que se não são Túnel são aparentadas e incompreensíveis num restaurante destes.

PPS - Recentemente no meu bar favorito (o Bar Rita) perguntaram-me se eu era ou vivia no campo. Disse que não e perguntei porquê. "Porque tu gostas das coisas de que os campesinos gostam: Palos con sífon, vermut de grifo..." Sou um campesino perdido no mar.

Antinomias superficiais

Não acontece sempre, é certo. Mas na frase "aquele idiota é extremamente inteligente" a antinomia é superficial.

(Funciona nos dois sentidos).

18.9.18

Sono, ausência

Tenho a sorte de dormir com barulho ou sem ele, com luz ou às escuras. Tenho até a boa ventura, vê lá, de conseguir dormir sem ti, se bem sem ti isto não seja bem um sono, uma noite, uma vida.

Posso, claro, imaginar-te ao meu lado: nas minhas mãos aquilo que se tem nas mãos quando se te tem ao lado, os teus densos cabelos ruivos por baixo, mesmo por baixo do nariz e dos olhos... E por aí fora. Não vale a pena imaginar-te aqui: sem ti uma noite não é noite e não há força de imaginação que transforme a tua ausência em felicidade.

É bom

Um gajo podia começar uma lista sem fim: comer é bom, ler é bom, beber é bom, ser amado, foder, navegar é bom; mas nada disto equivale a "o Verão é bom". Com a possível excepção da Noruega et simili, onde se diria "o calor é bom".

O calor é bom, venha ele de onde vier: do sol, de um copo, um livro, um corpo, um prato.

17.9.18

Subir, defeitos

"Gostar de alguém é gostar dos seus defeitos", dizia (mais ou menos) não sei quem.

É verdade: somos uma montanha que é preciso subir para apreciar devidamente. Uns mais altos, mais íngremes, escarpados; outros baixos, arredondados, tipo passeio de domingo em família. Mas ninguém escapa à subida.

12.9.18

Copos, livros e dinheiro

Prefiro gastar dinheiro em copos a gastá-lo  em livros.

Estes não nos largam, ficam connosco até ao fim; já aqueles nos largam de mão com uma dor de cabeça.

11.9.18

Família, vida

Viver é encontrar um lugar para as raízes. Viver é encontrar um lugar para te encontrar.

Solo, solidão, raízes, tu: que família tão vasta!

Luz, Panteão, filtros, pessoas

A luz agarra-se à cúpula do Panteão como um tipo a tentar não cair por ali abaixo, espalmado contra a pedra unhas e dentes, a escorregar devagar, muito devagar. A vista estanca os ruidos, barra-os, filtra-os: motas, sopradores na limpeza das ruas - hoje foi dia de feira - a conversa dos vendedores da feira na mesa ao lado. A luz faz uma almofada entre eles e mim, como algumas pessoas entre mim e a vida, entre mim e o passado.

À rola da noite

Os pescadores dizem "à rola do mar" (com o ó aberto, de rolar, que é feito dos acentos, meu Deus?)

Gosto da expressão. Não daquilo que ela designa, claro, que tanto pode ser pairar como derivar.

Já de "à rola da noite' gosto. Ir à rola da noite. Um gajo vai à rola da noite e acaba inevitavelmente no Snob e só por isso vale a pena deixar-se ir.

Não: só por isso não tem outro remédio se não deixar-se ir.

À rola da noite.

À noite, todos os gatos?

Se de noite todos os gatos fossem pardos, as noites seriam como os dias. Não são.  À noite não há gatos, isso é coisa de luz do sol. À noite há pessoas e gatas, cada uma de sua cor. Algumas - raras - são pardas, outras parvas, outras ainda escassas. Mas nenhuma é um gato e muito menos pardo.

Menos ainda igual aos outros inexistentes gatos.

À noite todas as pardas são gatas, todas as pessoas são pessoas. Mas só à noite. De dia todos os gatos são pardos e são parvos. 

Se e os labirintos

Falávamos de labirintos. A questão era "com nevoeiro um labirinto continua a sê-lo?"

Eu defendia que sim: "Um labirinto existe fora da nossa experiência sensorial. Um labirinto é inacessível com ou sem nevoeiro, tal como tu, eu ou o homem que no bar se estende ao balcão, ligeiramente bêbedo".

Ela contestava: "Um labirinto só o é se tu o souberes labirinto. Se não souberes, não passa de nevoeiro. O homem bêbedo é inacessível porque está a sonhar com o labirinto dos bêbedos".

- Imaginemos uma águia.
- Cega? Bêbeda?
- ...
- ...
- ... no centro do qual se perde um diamante, uma flor, um pedaço de nuvem, o farrapo de uma ideia, a metade realizável de um sonho, a arte perdida de adormecer ao sol numa praia com uma simples toalha por baixo e nada por cima, a imagem de um polícia sinaleiro que manda parar o trânsito para tu passares, a eterna questão "teria sido feliz se...?"

[Substituir as reticências por um eixo vertical de hipóteses.]

Vectores. Substituir os raios de sol, os movimentos compassados das formigas, a atracção inexplicável por um corpo em detrimento de outro, a noite aqui por um dia ali, a ausência de sono por um desejo irreprimível como as vagas que na praia rebentam de tristeza (será tristeza? Talvez alivio, não?)

Bom, se num grão de areia se puder ver o universo; se nos teus lábios a palavra "sim" se formar, imperceptível para todos os olhos e ouvidos menos os meus...

Se.

Se, minha querida, é a porta de abertura de qualquer labirinto e o seu fim. É nela e por ela que todos começamos, nela e com ela que desaguamos no deserto.

Mil flores florescerão. Sorrisos, esperanças, mãos e peles, futuros e até quem sabe um passado ou outro, um presente à sorrelfa.

Tudo, menos uma única e simples certeza.

10.9.18

Labirínticas

Postulado:
- Dois labirintos encontram-se numa casa que esperam um dia construir juntos.

Questões:
- Tem a certeza de que são dois labirintos? Demonstre.
- Encontram-se? Defina Encontro, neste contexto.
- Defina casa.
- Defina Construir juntos.

Kabir

"Se estás vivo
Aproveita a vida    A vida
É um desses convidados
Que não te visita duas vezes"

In O Nome Daquele que não tem Nome, Kabir, versões de Jorge Sousa Braga, colecção Gato Maltês n° 81, ed. Assírio e Alvim, 2016.

9.9.18

Estrangeiro e tempo

Não é ao Estrangeiro que me refiro: não sou estrangeiro à vida. É a ser estrangeiro, muito prosaicamente, na minha própria cidade.

Estrangeiro sem mochila mas com memórias? Ser estrangeiro tem mais a ver com o futuro do que com o passado.

Estado vs. Mercado

Entre a maldade e as boas intenções prefiro a maldade por três razões:
- Não pode piorar. Sabemos com o que contar desde o início;
- É mais fácil de contestar;
- E de controlar. As boas intenções descambam inevitavelmente.

Ouvir, viver

O café Tati vai fechar. Há muitos anos estava lá sentado a uma mesa e disse a alguém: "esta é a minha segunda casa". A jovem senhora que entāo partilhava os seus dias comigo replicou um bocadinho azeda: "Qual é a primeira?"

Ouvi aqui momentos de música extraordinários, fiz um dos piores jantares da minha vida (ter vindo de Cascais de bicicleta com cinco sacos de compras talvez tenha contribuído), ainda ontem aqui almocei com a minha filha. É a minha segunda casa, o que para quem não tem primeira é muito.

"Que cidade queremos?", pergunta-me G., responsável pela música. Eu sei qual é a cidade que quero, mas não sei o que fazer para a ter. O mercado é mau, mas o Estado é pior. Entre a maldade e a incompetência venha o diabo e escolha.

"Que cidade queremos?" Eu quero uma cidade onde possa continuar a ouvir-te, G.

(Para o G. M., e para o R., claro. E para a S., que me fez visitar o espaço na véspera da abertura).

Pairar, derivar

Um navio (ou uma embarcação) no mar, sem meios de propulsão, ao sabor portanto do vento e da corrente está à deriva se essa situação for involuntária e a pairar no caso contrário.

Deriva-se devido a uma avaria, o mais das vezes. Já pairar tem várias causas possíveis: esperar uma maré, pescar num baixio, esperar um piloto ou a luz do dia (ou a noite, nos casos em que é preferível navegar à noite).

Isto é: se eu fosse um navio (ou uma embarcação) hoje teria estado à deriva. Completa, absoluta, indiscutível. Felizmente nem todas as derivas acabam mal. A de hoje, por exemplo levou-me a bom porto.

Tão bom que se calhar vai a ver-se e não foi uma deriva. Fui a pairar de Lisboa até Sintra, ao sabor do comboio e de uma bicicleta medíocre, da ausência de planos e de camionetes e em Sintra fiz uma escala extraordinária, daquelas que nos fazem pensar que se todas as derivas acabassem assim as derivas acabariam para sempre.

(Para a A., com um beijo e um oceano).

5.9.18

Dispersas sentimentais

As mulheres que procuram um super-homem (antigamente era um Príncipe Encantado, mas os tempos e as expectativas mudam) andam quase todas à procura nos sítios errados. Mais valia irem directamente aos clubes gay.

E mesmo assim nem todos.

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"Amo Palma e ela irrita-me", penso enquanto pedalo pela Rambla, linda de se morrer.

Depois pergunto-me quantos nomes femininos, de mulheres que amo ou amei, poderia pôr no lugar de "Palma".

Todos? Noventa por cento? Metade? Actualmente é só um, mas vale por todos.

2.9.18

Diário de Bordos - Cala Santanyi, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-09-2018

As jornadas de exploração continuam. Fui injusto com Sa Rapita: tomei banho, dormi, tomei banho, bebi um mojito - por esta ordem, a boa -. Nas rochas, é certo, mas lá arranjei um cantinho mole para a toalha. Depois resolvi continuar o passeio, como fiz ontem, mas desta vez na costa SE da ilha. O princípio é simples: preferir as estradas com velocidade limitada a quarenta às que a limitam a sessenta; àquelas, preferir as de trinta; a estas, finalmente, preferir as que nem sinalização têm. Faz-me andar por sítios bonitos, chegar a lugar desinteressantes - ontem beneficiei da sugestão da L., que vive aqui vai para quarenta anos; hoje vim a olho, chego a Cala Santanyi e valeu a pena: assim não conheço só o que se deve conhecer, mas também o que se deve evitar.

Conhecer apenas o bom é conhecer metade da vida.

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Em contrapartida começa a fazer frio. Não vou poder atardar-me nesta esplanada a três metros da areia tanto quanto queria. Por um lado gosto da mudança; por outro não me aptece o inverno. O deste ano chega para muitos anos.

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Perder-se dá muito trabalho, mas é a melhor forma de encontrar. Por vezes até nos encontramos melhor depois de nos perdermos do que seguindo os caminhos traçados para nós por "quem sabe".

Diário de Bordos - Es Rapita, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-09-2018

Ao longe, Cabrera. Todas as ilhas são uma tentação, uma promessa, uma esperança.

O restaurante nada tem de especial, excepto  a vista da ilha (de que tem o nome: Balco de Cabrera), o leitão no forno e a mousse de limão (excelentes) o serviço (simpático e eficaz) e - sobretudo - a senhora da mesa ao lado que se chama Helena Maria (sei porque alguém se lhe dirigiu assim. É um nome bonito e que lhe fica bem, tem o porte altivo mas não arrogante das Helenas bonitas). Entre mim e o mar há uma estrada, um parque de estacionamento (felizmente pequeno) e rochas, só rochas. Hoje é de esquecer a sesta. Já ter a sorte de conseguir nadar um bocadinho é isso mesmo. Já verei: um café, outra hierbas secas e lanço-me.  Falar no vazio e falar a seco são a mesma coisa.

1.9.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-09-2018

À medida que se vai avançando para Leste a quantidade e o grau de nudezes aumentam. Estou na praia de Son Serra de Marina - ipsis verbis - que me faz levemente pensar num Guincho menos bonito, mais nu, igualmente ventoso e incomparavelmente mais quente, tanto o ar como a água.

Vim para Leste, claro; despi-me tanto quanto despir se pode, fui nadar e dormi uma sesta que devia ser o exemplo de todas as sestas (induzida, é certo, por um almoço que não pode infelizmente ser um exemplo. Fica como excepção e fica muito bem). Acordo com um casal de "vestidos" que se vem pôr ao meu lado, com a parafernália toda. O sol desapareceu, o vento caiu, a temperatura baixou e readormeço em paz. Todas as praias deviam ser assim.

Não que goste particularmente de me exibir nu. Mas aplico-me os mesmos critérios que me fizeram optar por ter um blog aberto a quem o quiser ler, quando há quase quinze anos criei o Don Vivo: a) há piores e b) só o lê quem quer.

O problema é que ninguém quer, com excepção deste casal que se vem pôr a dez metros de mim. Enfim, vinte.

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Re-adormeço, re-acordo, re-banho. Afinal os vizinhos estão vestidos como eu.

Vou-me embora, aproveitar o pouco que resta de dia para ir conhecer a praia ao lado. Todas as praias deviam ser assim e os fatos de banho só serem obrigatórios para quem gosta deles.

O restaurante onde almocei opiparamente e com boa música tem agora uma de merda. "Nada dura para sempre, excepto sempre e o meu amor por ti", canta o Willie Nelson. Tenho a certeza de que tem razão. Quem me dera poder provar que tem.

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Aprendi a usar o Google Maps, mais ou menos. Hoje a senhora que me dá as instruções não se chateou comigo. Normalmente ao fim de um bocado amua e cala-se, porque não faço nada do que ela diz. Devo dizer que para mim é um progresso: quando estava casado os únicos temas de discussão com a senhora que fez de mim um homem casado eram relacionados com os trajectos. Esta agora não discute; farta-se e deixa-me ir por onde quero. Hoje levou-me até ao fim, educada e pacientemente.

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Gigantesco passeio pelo Nordeste da ilha, que só conhecia visto do outro lado. É fantástico como se pode passar de um mosteiro do século XIX para uma espécie de versão melhorada do Algarve em meia dúzia de quilómetros.