28.2.19

Livros, cama

Um post no Facebook faz-me procurar referências a Alejandra Pizarnik aqui no DV.  Não ter os meus livros comigo é como estar apaixonado e sozinho na cama.

Mais lágrimas, um Pai e uma Senhora

Mais uma história de choros: cada vez que entro na Galileu, em Cascais, desfaço-me em lágrimas, que consigo mais ou menos conter, esconder, disfarçar. Hoje pedi para me reservarem um livro, a senhora pergunta-me o nome, digo-o e ela responde "Ah, o senhor Serpa. Era tão boa pessoa! Um doce", referindo-se, claro, ao meu Pai. Tive de fingir um súbito e avassalador interesse pelos livros que me faziam virar costas ao balcão.

Há pouco menos de quarenta anos - muito pouco - resolvi que os meus conhecimentos de poesia portuguesa eram insuficientes e fui à Galileu (na altura a única livraria de Cascais) comprar livros de poesia. Comprei um monte deles, não sei quantos. Lembro-me contudo perfeitamente da conta: vinte e seis contos de réis. A senhora (que na altura ainda não sabia, mas se chama Caroline Tyssen, a quem estarei para sempre grato e reconhecido, tanto mais que à pilha sugeriu eu acrescentasse Pedro Tamen) ficou surpreendida e perguntou-me se queria pagar em duas ou três vezes. Não me conhecia; se aquela não foi a primeira vez que entrei ali terá sido a segunda ou terceira, não mais. Eu acabara de chegar da Suíça e estava a trabalhar em Aveiro, numa draga de sucção holandesa onde trabalhava setenta e duas horas por semana. Não ia frequentemente a Cascais. Disse-lhe que não, obrigado e ela insistiu. Voltei a agradecer e a dizer que não era preciso. Depois deste episódio disse ao meu Pai "a Bertrand não é a única livraria do país, contrariamente ao que tu pensas: há uma em Cascais à qual deves ir". O meu Pai - como de resto qualquer pessoa que goste de ler - passou a considerar Caroline a melhor livreira do Universo: "Não há um único livro que ela me sugira de que eu não goste, percebes?" perguntava-me frequentemente.

Percebo, Pai, percebo perfeitamente. Ainda hoje não consigo lá entrar sem pensar em ti e sem pensar na quantidade de autores que descobri graças à Caroline.

"É prá poncha"

Aposto que vos acontece a todos: um gajo volta para casa, tranquilamente na sua bela pasteleira (ou na veloz Vitus). O dia foi bom, mau, assim assim ou não cabe sequer nessas categorias. A noite está fria ma non troppo, ou cálida ou mesmo quente. Um gajo vai pensando no dia de amanhã, evitando pensar no dia de hoje ou vice-versa e quando chega ali a Santos salta-lhe um bar ao caminho. Isto pode parecer uma fórmula retórica, mas não é: o bar salta-lhe literalmente ao caminho, oferece-lhe uma árvore para amarrar a bicicleta ("oferecer" não é o verbo adequado. "Impõe-lhe" está mais perto da verdade) e que pode um homem fazer se não descer da sua burra, amarrá-la à dita árvore e entrar no bar?

Chama-se É prá poncha e pertence ao meu amigo Elmano e ao seu irmão Manuel, que também é meu amigo mas que conheço menos. Com o Elmano fui a La Rochelle, cidade conservadora s'il en est.

Não falo do bar: não é por isso que lá vou. Falo da Poncha, um cocktail que rivaliza com o Painkiller do Soggy Dollar em Jost van Dyke, com o Alexander do Luís do Procópio (e só com este; os outros não são bem Alexanders), com o Dry Martini do Sr. Miguel do Pavilhão Chinês ou com o medronho que neste momento bebo, dádiva do Nuno: todos eles são provas de que Deus existe, escolhe caminhos inesperados para se manifestar e não se importará muito se acabarmos por Lhe preferir as manifestações à existência.

O caso da poncha tem um bónus: ver o Elmano fazê-las. Há uma forma de beleza no trabalho bem feito e esta é particularmente difícil de atingir: gestos rápidos, precisos e por conseguinte belos não estão ao alcance de todos. Uma poncha demora mais tempo a fazer do que qualquer das bebidas que citei, o que lhe demonstra a superioridade. Feitas pelo Elmano ou pelo Manuel não são bebidas: são obras de arte sacra.

27.2.19

Elogio da desobediência

Esta história de que "Um homem não chora" é uma violência imposta aos homens, uma injustiça que as feministas - e, sejamos justos, a maioria das mulheres - esquece de incluir na conta.

Felizmente há homens corajosos, desobedientes, que fazem o que querem quando querem.

Incluindo chorar.

Uma grande porra!

O meu telefone portátil, que há dias me enviava sinais por via onírica ficou insatisfeito com a minha assumidamente equívoca reacção e resolveu desaparecer. Desaparecer de todo, misteriosamente, sem um som, um aviso, um adeus. Num momento tinha-o na mão e cinco minutos depois chego a bordo e não o tenho. Se tivesse sido abduzido por marcianos o desaparecimento seria assim, mas ter-se-ia visto uma luz qualquer, quiçá verde pairar sobre a minha pobre cabeça.

O abençoado Nokia, que resistiu à passagem dos automóveis não resistiu à do tempo e foi, de certeza, para o céu dos telefones portáteis.

26.2.19

Pergunta

Que diriam as palavras se falassem? O mesmo que o silêncio ou o contrário?

25.2.19

Sonhos, telefones e automóveis

Ontem sonhei com seis ladrões muito estúpidos. Não me lembro dos pormenores do sonho, mas lembro-me da conclusão jungiana a que cheguei: os ladrões personificam as diferentes formas da minha estupidez. Só não sabia que eram tantas.

Já o sonho de hoje foi mais fácil e não recorri a Jung para o interpretar: uma viagem pelo Tejo acima com o telefone no bolso dos calções. Ia a pé e estava sempre a chafurdar na água (devia estar muito longe da foz, tinha pé em todo o lado): preciso de comprar um telefone portátil novo. O meu (o real) desta vez não caiu ao mar, caiu em terra, estava a consultar o Google Maps na bicicleta e o maldito telefone saltou-me das mãos sem razão nenhuma (pelo menos aparente), um carro que vinha atrás de mim passou-lhe por cima. Ainda funciona (isto passou-se em Palma) mas dá alguns sinais de desconforto. Deve ter alguma ferida interior.

Gosto deste cuidado que os meus sonhos tiveram: primeiro uma introdução ao tema, depois a explanação. Pergunto-me qual será o desfecho, já que para mim comprar telefones é ainda mais difícil do que comprar roupa, derivado aos números.

Uma coisa é certa: vão ser necessários muitos mais sonhos para trocar este, magoado ou não. É um Nokia barato mas resistente à passagem dos automóveis.

24.2.19

Calamidades

Amar é uma calamidade, mas não amar é outra, maior ainda.

Diário de Bordos - Ericeira, Portugal, 24-02-2019

"Are you talking to me? Are you talking to me?" Não sei a quem dirijo a pergunta. A minha esquizofrenia, tão apregoada (por mim) é virtual. Não oiço vozes, a menos que as crie eu.

Estou ao sol, na esplanada de um australiano (sei pela lista). O vinho é óptimo, a empregada bonita e o calor embala-me, pega-me ao colo, acaricia-me, envolve-me e pergunta-me quem sou. Deve ser a ele que respondo se é comigo que está a falar.

.........
Isto foi há pouco. Agora como na Mercearia da Amélia (ou coisa que o valha), uma garrafa de Baga do Luís Pato, presunto, chouriço e paio, uma empregada que é uma delícia, lá fora o calor e em breve a sesta.

Vou amanhã para Lisboa, directamente daqui. Quarenta e três quilómetros e uma pergunta: "Are you talking to me?"

É que se é a mim que estás a falar, antes dizeres de uma vez o que queres, quem quer que sejas.

23.2.19

Dispersas do dia

A minha Vírus Velox (designação dada por mim, mais do que merecida) é leve e rápida. Basta-lhe não estar a subir para me fazer pensar que estamos a descer.

Pensar em qualquer coisa - uma situação, um projecto, um problema, a vida - tem similitudes com pedalar numa estrada: há subidas, descidas, pequenas contrariedades, grandes alegrias.

Este fim-de-semana é dedicado a pensar num dos aspectos da minha vida. Não digo qual, pouco importa. Mas é algo que precisa de atenção e reflexão.

Pedalar ajuda o cérebro a funcionar. Sugiro fortemente que adaptem este método: uma bicicleta veloz, um bom almoço, dois ou três incidentes desagradáveis (há demasiado trânsito automóvel, porém tive poucas manifestações de simpatia da parte dos condutores: as razias e buzinadelas escassearam. A esmagadora maioria dos veículos afastava-se amplamente. No incidente do cruzamento, o condutor do veículo que estava atrás do da jovem saiu do carro e vociferou qualquer coisa durante muito tempo, mas não percebi o que era ou a quem se dirigia).

Esta mistura de muito prazer e poucas chatices é frutuosa, profícua, prenhe de resultados.

Tal como uma boa refeição tem efeitos positivos num vasto arco de sentimentos, mas principalmente no tempo: torna-se mais gentil, mais lento, como se também ele estivesse a digerir.

Na Ericeira fui jantar ao restaurante Gafanhoto, um clássico daqueles em que numa mesa está um senhor parecido com François Hollande, noutra um homem gordo vestido com umas calças de fato de treino cinzentas e um sweat shirt cor de rosa e noutra ainda uma jovem mãe muito bonita acompanhada por uma criança. É visivelmente o seu fim de semana com a filha.

Come-se bem e barato, mas aquilo de que mais gostei foi da simpatia do serviço. Há tanto tempo que não vejo tantos sorrisos e tanta amabilidade num restaurante... Para quem vem de Palma, habituado a ser servido com duas pedras na mão e três no sapato, isto parece outro planeta.

Longa e interessante conversa com T., ontem. Apetece-me continuá-la por escrito. Talvez seja tarefa para amanhã, vá lá saber-se. Esta ausência de plano é um campo de tiro sem limites e sem alvos. Há um objectivo, mas não há um itinerário traçado para lá chegar. Como diz aquele estafado e algo chato verso, "o caminho faz-se caminhando".


Ericeira, emoções, planos e outras coisas insignificantes

Ou seja: cheguei à Ericeira. O cozido à Portuguesa do ex-café do Zé não se revelou um obstáculo, muito antes pelo contrário: pôs-me asas nos pés.

Já sobre a aguardente "especial de corrida"  é legítimo ter dúvidas. Tive um pequeno incidente com uma jovem condutora num cruzamento e se bem seja difícil (e totalmente supérfluo) atribuir culpas é inegável que um pouco de atenção da minha parte teria evitado o dito incidente.

Do qual, claro, fui eu a vítima: o pedal esquerdo desapertou-se e vi a minha ausência de plano seriamente posta em risco. Mas isto das bicicletas é como as embarcações de vela: um gajo acaba sempre por encontrar uma solução (a diferença sendo que no mar essa solução é interna e nas burras externa). Uma chave sextavada interior número oito (que os íntimos conhecem por chave Allen) encontrada quatro ou cinco quilómetros depois do acontecimento, no armazém de um senhor que carregava um veículo com destino ao Porto resolveu o assunto. (Quinhentos metros depois comprei um pequeno jogo de chaves Allen, só para deitar a língua de fora ao diabo.)

Depois destas vastas emoções foi só voar, chegar à Ericeira, beber uma água, reservar um quarto num hotel onde em 1974 dormi (e ainda há quem pense que eu sou um homem volúvel, dado a repentismos) e cair numa sesta abençoada.

Ele há não-planos que se revelam melhores do que muitos sim-planos.

Obstáculos e preocupações de um dia de Verão

Preparo-me para afrontar a segunda parte dos obstáculos entre mim e meu não-destino: a Ericeira. Os excessos cozídicos (pequenos, é preciso dizê-lo) foram compensados por um semi-frio de pêssego (semi-bom) e por um "especial de corrida", enternecedora, correcta e adequada designação da aguardente caseira do estabelecimento.

Há coisa de vai para quarenta anos vinha aqui jogar snooker. Mudou pouco, prova indubitável de que eu mudei muito. (As doses são mais pequenas).

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Há um livro do Beckett que começa com a personagem principal a ser corrida de um prédio sem o seu chapéu, coisa que o preocupava mais do que o pontapé que recebera e fizera cair pelas escadas abaixo. Não me lembro do título. Textos para nada, será? Não sei.

Mas sei que estou preocupado com o meu chapéu e considero seriamente a possibilidade de deixar de o usar quando uso a Vitus Velox, desprovida de cesto.

Diário de Bordos - Fontanelas, 23-02-2019

"É preciso ter um plano, se quiseres não o respeitar" diz a máxima. Hoje provo que se pode não respeitar um plano inexistente. Almoço no café do Zé (Coreto, para os não íntimos) em Fontanelas e duvido fortemente de conseguir chegar à Ericeira: o almoço é cozido, coisa que tragicamente não como há pelo menos uma semana.

Está um calor insuportável: fui obrigado a pôr o chapéu na mochila, coitados (ele que sofre e eu que o paguei).

(Dizer "está um calor insuportável no dia 23 de Fevereiro é um luxo, não é? É)

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A minha ausência de plano consistia vagamente em vir pedalar para a zona de Sintra, com a vaga possibilidade de chegar à Ericeira, se nada se interpusesse entre ela e mim. O primeiro obstáculo apareceu agora na mesa. Venham os próximos.

Retratos inexistentes

Mulher bonita, inteligente acima da média. Portuguesa, claro: há mais sexualidade numa das suas células do que numa excursão de duzentas norueguesas com cio a um país africano. Usa e abusa dela, como um queniano usa e abusa das suas fibras musculares para ganhar maratonas: com um objectivo pensado e explícito, definido, legítimo.

É difícil resistir a esta combinação até se encontrar a chave, momento que se passará a amaldiçoar até ao fim dos tempos.

22.2.19

Sim

"... and then I asked him with my  eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes."

"Sim" é indubitavelmente a palavra mais bonita de todas as línguas faladas no planeta; e estas linhas a mais bonita homenagem que jamais lhe foi feita.

Boa noite, que se lixe

Dizer boa noite à vida, cordial e educadamente. O resto que se lixe.

Capacidades, possibilidades e vontades

É forçoso reconhecer que talvez, quiçá, um dos grandes prazeres de se estar grosso seja simplesmente poder-se estar grosso. Isto é: poder financeira, física e intelectualmente.

Lisboa, superlativos

Escrever independentemente na Comida Independente; escrever devagar na Ler Devagar; escrever por aqui na Ler por Aí (em breve); escrever em tijolos no Brick Lisboa; ouvir música no Irreal; viver na Cossoul. Beber ponchas no Number Two. Comer chamuças nos Primos.

(Só falta o Tati. Café Tati).

Escrever-te, Lisboa, sem saber onde nem porquê nem quando nem quem. Escrever-te simplesmente, a tua desordem na desordem do papel. Talvez.

Se te descrevesse, Lisboa: haveria adjectivos no léxico? A havê-los, teriam graus suficientes? Bom melhor óptimo não chegam para ti, Lisboa. Teríamos - se quiséssemos descrever-te, o que está longe de ser garantido - de inventar novos adjectivos e novos graus para eles. Um superlativo lisboeta, superlativo ad Olissipo.

21.2.19

Notas do Irreal

1 - Falta humor à música electrónica. (Com excepção do Swayzak, claro). Mas isso sabe-se desde as capas dos Kraftwerk.

2 - O não-verbal dos músicos (bonito, não-verbal dos músicos) diz tudo: dobrados sobre os seus instrumentos como um artesão sobre a sua mesa de trabalho. Não tocam música, fazem sons.

3 - Quatro músicos, dos quais dois são DJ (se percebi bem, coisa que raramente acontece). O único cujo som claramente perceptível (isto é, percebia-se o instrumento que o produzia) era o sax. O concerto termina e oico-os conversar. O saxofonista está zangado porque o seu micro não estava a funcionar. Isto é, a sua música não era parte do conjunto. Era clara.

........
4 - És tão boa, Lisboa. Na mesma noite ouvi música de Cabo Verde (Funaná, mas qué vaya), electrónica e agora na Poncha do meu amigo E. música de merda, enquanto bebo o melhor cocktail à face da terra (depois do Alexander, claro). A saber, uma Poncha à Pescador. A vida é uma sequência de certezas intercaladas de dúvidas.

Quanto mais certezas e quanto mais dúvidas melhor é a vida.

5 - Acabo de perceber (oh tão tarde) que existencial e palhaçada são sinónimos.

A dúvida era: devo pedir mais uma poncha? O existencial: se pedires, vais grosso para bordo.

A palhaçada: o caminho para bordo, felizmente longe.

No fundo, palavras

Dizer das palavras fundas como fodas como aquele aparelho para atirar pedras como a fossa das Marianas, fundas como os sentidos todos que cada uma delas tem, mesmo as mais simples. Sim, por exemplo. Não: o mundo derruba-se. Está vento: vamos chegar depressa. Palavras que se me afundam na carne: quero amar-te, amor Lego construído peça a peça, umas por cima das outras, impacientemente. Palavras fundas como este sono em que te afundas, reparador, justo como a nega da senhora a quem há muitos anos prometeste não amar, sono de sentidos: ulmeiro, por exemplo. Tu não sabes como é um ulmeiro, sabes que é uma árvore, tem raízes fundas que buscam na terra o que tu buscas nas palavras, num ou outro corpo que te recebe, num dia de tempestade no mar. Palavras fundas, por muito leves ou lisas que te pareçam, lisas como notas de banco, elusivas e fugazes como o sorriso da mulher no metro ao homem que a acompanha.

Palavras fundas que em ti afundo por essa pele sem carta, por ti espalho, por ti invento como se me habitasses, como se em mim vivesses.

No mais fundo de mim.

20.2.19

Venham mais

Compro café (mistura Arábica) na Pérola do Chaimite, almoço na Versailles. Para um homem da minha idade, fazer parte do decile mais jovem da clientela de uma loja ou um restaurante é uma fonte de esperança, tanto quanto um privilégio, sorte ou prazer: venham mais vinte, que eu pago já.

PS - Mas não venham de uma assentada. Venham devagar, um a um.

19.2.19

Concorrência

- A mulher colonizou-me a memória, percebes? Monopolizou-a. Não há espaço para mais nenhuma. Deixou-me há cinco anos e ainda hoje quando fodo é ela que fodo. - Silêncio. Silêncio. Silêncio.

António é padre e usa-me como confessor, incluindo a gestão dos silêncios. Ao fim de uma longa pausa continua.

- Não te choca que eu vá para a cama com mulheres, eu sei. Sabes que por vezes tenho crises de consciência avassaladoras. Mas estes últimos anos têm sido terríveis.  Sinto-me como se estivesse a enganar a ela e a Deus.

Silêncio. Silêncio. Silêncio.

- Antes de a conhecer não tinha muitos problemas com o sexo. Sempre fui contra o celibato dos padres e sempre quis ser padre. Deixei de confessar as fodas que dava, tão pouco me pareciam pecado.

- Não era dela que tu dizias que concorria com Deus?

Silêncio. Silêncio. Silêncio.

- Sim, mas estava enganado. É Deus que concorre com ela.

18.2.19

O tempo e os genes

Jantar com a fratria. É o tempo que nos une. Não há fonte de amor mais poderosa, mais perene, mais profunda do que esta conjugação mágica de tempo e de genes.

17.2.19

As diferentes formas da riqueza

Há duas maneiras de se ser rico: a primeira (e melhor) é ter muito dinheiro; a outra é não ter dinheiro nenhum.

Universos

Sou tão imperfeito, não sou? Todos os dias acordo e me arrepenho com tanta insuficiência que vejo em mim, tanto defeito.

Só me espanta é como ainda consigo, ao fim destes anos todos, descobrir asneiras novas por fazer. O Universo deve ser um catálogo ilimitado de disparates.

Pelo menos o meu.

Aflições

Vi - tantas vezes! - poetas aflitos de dinheiro. Já um banqueiro aflito de poesia é  raro.

Nome, véu de

Se tu quiseres imaginamos um véu. És tu quem decide: se quiseres pensar noutra coisa pensamos. Por mim, é um véu muito amplo, claro, transparente, leve como se não tivéssemos nada por cima. Nem história nem - muito menos - futuro. Imaginemo-nos assim, nus de tempo, sem ontem nem amanhã. Nus, tu e eu num planalto, daqueles que se vêem nos filmes sobre o Tibete ou a Mongólia.

Um véu cobre a paisagem. Que nome lhe daremos?

16.2.19

Retratos do quotidiano imaginário

Era um casamento algo assimétrico: ele dava-lhe amor, ela retribuía com amizade. O que o mantinha era a esperança de cada um deles de que um dia o outro trocaria.

Princípio, fim

O que me desagrada nas trotinetes não é vê-las abandonadas pelos passeios. Essa é uma irritação minúscula, passageira.

Tenho pena é de que elas anunciem o fim das Segway, esse prodígio da técnica, inefáveis e bonitas.

Exclusões matinais

I
Amar-te e amar esse amor não se excluem mutuamente. Antes pelo contrário: completam-se.

II
Voltava ao amor como um jogador de rugby ao jogo, depois de uma placage particularmente violenta: com determinação e desconfiança.

15.2.19

Geografia

Uma noite começa por um pequeno riacho chamado desejo e acaba numa ampla planície chamada vida.

14.2.19

Tentativa de definição

No fundo a boa música é isto: acertar as notas com o tempo e tudo isto com as emoções.

12.2.19

Um desejo chamado tempo

Que se lixe o tempo, que se lixe o rio que por ele corre sem margens. O tempo é o rio e ambos não passam de uma insuficiente cópia do desejo, onde desaguamos cada dia ao nascer, cada noite quando chega: tu em mim e eu em ti, sem margens nem para dúvidas nem para mais nada. Somos um rio sem limites que se espraia pelo tempo.

Às escuras, ADN, dupla hélice

É sempre assim, não é?

Não. É sempre mais ou menos assim: deixamo-nos escorregar pela vida e deixamo-la escorregar por nós, como um miúdo escorrega num escorrega que é ele. Somos um, dois e muitos. Somos as palavras que fazemos e o que elas fazem de nós, dizem-nos para onde apontar o olhar porque para lá olhámos quando as dissemos. Talvez por isso o ADN seja uma dupla hélice: fazemos a vida que nos faz ser o que somos.

Talvez no fundo seja isto o amor: esta vontade de ser o outro e sermos nós, feitos pelo outro. Dupla hélice: tu e eu juntos e separados, enredados e livres, soma para sempre incompleta e para sempre única. O dia chegará em que diremos "Amo-te" e o eco não dirá "Tenho medo", em que diremos "Não tenhas medo, eu amo-te" a duas vozes.

Amor, medo: dupla hélice. Amor, vida: outra dupla hélice. O amor não se enrola em si próprio, precisa do outro. Amor: outro, vida, medo. Num pacote, foi assim que veio da loja. Amor, amo-te, temo-te, tenho-te, temo-me, vivo, vivo-te, vivo-me, vida. A hélice não é dupla: é múltipla, infinita. É o universo. Somos um universo.

Metade desse universo pensa em ti, como se tu o pensasses: processo borgesiano, biblioteca de espelhos, Alephes um do outro: contigo e por ti reifico o mundo que em mim recrias, que comigo recrias. Fazemos, refazemos: fazemo-nos, refazemo-nos fazendo e refazendo. Duas agulhas fazem uma camisola de lã. E duas vidas, que fazem? Que tecem?

Acontecem, como ontem e hoje fazem um amanhã que não é um nem outro, mas é um e outro. Uma vida vive-se a dois, duas vidas a um. O mesmo se poderia dizer da noite, de resto: uma noite faz-se a dois. Se não, não é noite: é o tempo a passar às escuras.

Palavras magnéticas

Talvez "Ritual" seja um bom ponto de partida. As palavras são magnéticas, já to disse tantas vezes. Procuram o Norte. Não: indicam o Norte. É por elas que sei o caminho. Poderias talvez troçar e dizer-me "O teu caminho é tão ondulante"; eu responder-te-ia "As palavras enganam-se". Ou "O Norte magnético das palavras não coincide com o Norte verdadeiro". Ou: "Estás desnorteado?"

Nada disto interessaria. Falamos de uma palavra que te busca como eu te busco. Na verdade, todas as palavras apontam para ti, todas as palavras te buscam, como eu te busco.

(Para a R., com um beijo).

11.2.19

Stendhal e o amor, a virtude e os demónios

"Fora-se-lhe a virtude, agora que se lhe eclipsara o amor", diz Stendhal algures no Vermelho e o Negro. A citação é duplamente traiçoeira: de memória e de uma tradução não sei de quem.

Pouco importa: esta oposição entre o amor e a virtude é muito bonita, mas só é possível no séc. XIX. No XX o amor é desvirtuoso por natureza e no XXI virtuoso porque os demónios regressaram à esfera pública, de onde tinham sido escorraçados.

No séc. XXI o amor é virtuoso. Todo ele: o amor, o poli-amor, as relações abertas, as relações fechadas, as relações tout court... tudo banha em virtude. O amor lava mais branco, como o Tide, o Omo ou os sabonetes artesanais.

O amor de hoje tem asas brancas resplandecentes e cai do céu, tal Gabriel a anunciar à Virgem que não tardaria um fósforo deixaria o ser.

10.2.19

Diário de Bordos - Lisboa, 10-02-2019

Dia oblíquo...

"O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol..."

(Chuva Oblíqua, Fernando Pessoa)

Para mim é o contrário: o dia é sombrio e pálido e eu sonho com portos cheios de sol.

II
É tão fácil ser piegas, não é? Tão tentador. Que se lixe a pieguixe. O dia começou oblíquo mas acabou bem, vertical, fixe, com o Gonçalo Marques no Mercado de Campo de Ourique, um bocadinho mais terno do que é habitual mas sempre bom, sempre um prazer, uma viagem para portos cheios de sol e de luz e de miúdas giras.

..........
Um abade e um filósofo combinam encontrar-se para almoçar. Espargos, de que um (o abade) gosta com azeite e o outro com molho. Acordam que fica metade com azeite e a outra metade com molho. Antes do almoço o abade morre de apoplexia, o filósofo salta do seu lugar na mesa, sobe as escadas a correr e grita para a cozinha "Façam todos os espargos com molho! Todos os espargos com molho!"

Leio a história num livro chamado Comimos y Bebimos, Notas de cocina y de vida, de Ignacio Peyró, ed. Libros del Asteroide, Barcelona 2018. Sugiro forte e intensamente que o leiam, é uma pérola, uma jóia, uma obra de fineza e finura, amor e humor, uma declaração à comida e à bebida. Ou seja, à vida.

.........
Lisboa, irritante Lisboa, impossível amar-te e mais ainda não te amar. Velha gaiteira a prometer as melhores sopas em panelas novas e vai a ver-se as panelas não são nada novas, são as de sempre só que limpas e areadas, ao contrário das ruas e das paredes, pareces um mictório gigante a céu aberto.

........
Dia oblíquo.

"Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho... "

Lisboa?

Esta Lisboa toda grafitada, taggada, cagada que já não conheço e ainda amo, já não amo e ainda desejo, amor antigo revisto passada uma vida: que dele ficou do que dele amámos?

3.2.19

Revigorante / aconchegante

Fazer-lhe amor era como chegar num dia quente a uma sala com ar condicionado, não como entrar num quarto aquecido num dia frio.

Aterragem

Estava receptiva como uma pista de aterragem à noite, aquela longa linha de luzes a indicar o caminho, a direito até ao fundo.

2.2.19

Transformações

Poucas coisas excitam mais um homem do que uma mulher independente, senhora dos seus afectos e do seu corpo, livre e soberana.

O problema é que muitos deles não sabem o que fazer de tanta excitação, coitados e transformam-na em medo.

Aventura ferroviária

Outra vez no aeroporto. Sonho com o dia em que ir para a estação de comboios de Carcavelos seja uma aventura.

Mecânica newtoniana, infinito

Um puzzle do qual todas as peças encaixam como um corpo noutro, pelo qual está apaixonado; e os dois no universo, porque o amor é retribuído. Uma física que deixou de ser quântica e é agora arrumada, newtoniana, mecânica da qual se sabe o lugar de cada peça, de onde vem para onde vai. Não sabemos quanto tempo vai durar este estado, mas sabemos que é bom como se fosse infinito.

Por muito caro que tenhas de pagar. Cada segundo destes vale uma hora de inferno.

Complementaridade, diferença

O que une as pessoas não é o que têm comum. É o que têm diferente e se complementa.

São duas condições e não uma, eu sei, quase contraditórias: se se complementam não são assim tão diferentes.

1.2.19

Funâmbulo, vida

É como a arquitectura, no fundo: linhas e planos que se cruzam, se interpelam, se juntam para criar sentido.

A diferença está no funâmbulo que se passeia com a sua enorme vara sobre essas linhas e planos. É ele que transforma tudo aquilo em vida. Nem sequer precisa de cair para insuflar emoção naquele árido quadro. Olha: é impossível não o veres. Está no espelho mesmo à tua frente.

Cheguei

Espera. Não tenhas pressa. Calma. Há um corpo que te espera no palco. Há um palco que te espera no corpo. Não hesites: podes ter os dois, o corpo e o seu palco. Vai mostrar-se, vais mostrar-te, vais ver-te no outro corpo, no outro palco. Se tiveres sorte reconheces-te, o palco aceitar-te-á, o corpo também. Somos palcos com pernas e braços, dois olhos e dois ouvidos, um ventre e uma mente. É neles, no ventre e na mente, que se desenrolam as peças todas: dramas, tragédias, comédias e sobretudo - sobretudo - farsas. Tem calma. Espera. Vê primeiro qual a próxima peça e só depois te deixas arregimentar. Shangaiar, dirias.

Fecha os olhos, procura um corpo e respectiva mente. Quando os encontrares diz: "este sou eu. Estou em casa. Cheguei".

Puzzle, paciência

Como se fossem as peças do puzzle a dizer-te qual o lugar delas. Encaixam-se sozinhas, sem qualquer esforço teu. Pensas: "já estive aqui", mas não é totalmente verdade. A estrada é a mesma mas o puzzle mudou, os cruzamentos são outros, tu és diferente do que eras.

Pensas: "o cenário também é outro" mas sabes que isso é irrelevante. So há um cenário: tu. És o campo de batalha das guerras todas que viveste, o cenário não tem nada a ver com a história. As peças encaixam umas nas outras e lembras-te do nome português para puzzle: paciência.