28.2.04

Pequena nota à margem

Ao contrário do que frequentemente se pensa, uma embarcação de vela não anda mais depressa quando tem o vento por trás. Com vento fraco, um barco anda mais depressa contra o vento; à medida que este vai crescendo, a velocidade aumenta com o ângulo que a embarcação faz ao vento - mas só até certo ponto. A partir de ângulos de 130 - 140º a velocidade decresce - até que aos 180º (isto é, com o vento completamente por trás), se torna mínima, frequentemente mesmo inferior à velocidade na bolina.

"Tal como as pessoas, os barcos gostam de sentir uma ligeira resistência para atingir o seu melhor".

Tejo

Lisboa ainda não acordou da noite de sexta-feira, e eu passeio pela margem do tempo, do vento, do sol e do Tejo.

27.2.04

Classificados

Cruzeiro nas Caraíbas - ainda há lugar para duas ou três pessoas, de 02 a 17 de Abril (as datas podem mudar ligeiramente), para um cruzeiro à vela nas Caraíbas (Grenadines), partida e chegada de St. Vincent. Dois barcos: um Bénéteau de 50' e um Gibsea de 48' (isto para os entendidos) - não é necessária qualquer experiência de vela.

Informações aqui e aqui. Estes cruzeiros são organizados numa base no cost, no profit para mim.

26.2.04

"Tarde", "Prece"

Tarde
"O que eu queria dizer-te esta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas."

Prece
"Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas."

S. de M. B. A., No Tempo Dividido, Edição Definitiva, Ed. Caminho, 11/2003

O prazer do texto

Limava um texto como acariciava uma pele: sem fim, e sem lassidão.

Assim, não há dieta que resista

Um magnífico Cozido ao meio dia e um sublime Polvo à Lagareira ao jantar. Meus caros quilos, não vos preocupeis, estais para ficar. (A propósito, quem é que disse "belo como uma frase sem adjectivos")?

O contraste entre os dois restaurantes é saisissant, uma perfeita imagem do Portugal de hoje: uma tasca, bonita de tão feia, com uma cozinha que nem sequer é tradicional - é o que há, é a da casa (mas tem personalidade, tem uma "individualidade" - e eu aconselho-o, sem hesitar: "Beira-Rio", avenida 24 de Julho 84); e um restaurante bonito ("Nariz Apurado", rua da Esperança 100, tel. 213 960 653), com uma decoração cuidada, boa música, serviço perfeito por uma senhora que sabe o que é Fernet-Branca (se bem que o não tenham); a lista é parca e fraca de pouco imaginativa - mas o que lá está deve ser bom, a julgar pela sopa e pelo polvo, que estavam ambos francamente próximo do melhor que já comi - mas ao fim e ao cabo trivial, igual a milhares de outros por esse planeta fora (não me perguntem como, nem porquê: a objectividade não é o meu forte, nem o meu objectivo).

A mesa ao lado era um aniversário, com cerca de 22 ou 23 pessoas. Todas brancas, todas portuguesas, todas com um facies (ou melhor, uma aparência) totalmente desinteressante. Onde, no mundo ocidental, teríamos uma mesa assim? Em Espanha não: haveria duas mulheres lindas, dois monstros e três ou quatro que disfarçariam a sua banalidade com roupas idiotas; em França sim, sem hesitar; em Genève, a mesa teria pelo menos cinco nacionalidades e duas beldades, masculinas ou femininas; nos Estados Unidos sim, desde que não fosse Nova Iorque ou S. Francisco, Chicago ou New Orleans; na Alemanha... who cares? Porque havemos de passar o tempo a definirmo-nos em oposição aos outros? Qué vaya, hombre, !no jodas!

Um dia banal? Não, de modo nenhum. Comprei dois livros de Sophia de Mello Breyner Andresen, e os dois custaram-me menos do que muitos livros cem vezes piores. "E a porta da cidade é feita de dois barcos"; "Toma-me ó noite em teus jardins suspensos"; "Não te ofenderei com poemas /... / O teu mundo era simples e difícil / Quotidiano e límpido"; "Eu contarei a beleza das estátuas / ... / E falarei do rosto dos navios"; "Pelas tuas mãos medi o mundo". Versos destes, mesmo que misturados por vezes com outros mais datados, salvam um dia.

E depois há esta alergia, que deve ser a única coisa que me separa do homem de Neanderthal. Só com anti-histamínicos e vodka a rodos lhe consigo pôr cobro (mais uma aliada da dieta, sem dúvida).

Hannah pacienta, num canto. Sabe que não vai morrer (pelo menos para já), mas não sabe ainda se vai matar e safar-se, impedir um assassínio, ou acabar, tranquilamente, o seu caso com Daniel. Os filhos continuarão, serenos (menos Helena, claro, que é alerta, isto é, inquieta) a aprender vela; em breve começarão a namorar, e perceberão de que falam os pais quando falam de certas coisas cujo sentido até ali lhes escapava; Daniel juntará Hannah ao seu tableau de chasse, sem ver que naquele jogo quem ganha é quem perde, ganhar é empatar, perder é ganhar - nada é o que parece, e só um tolo toma o que é, ou parece, por significativo.

Ao som do Uri Caine, a alergia temporariamente debelada, o dia transita. O sol não imagina que passou uma linha, o meu figado pergunta-se porque llhe dou tanto trabalho, a "Creoula" continua à frente da minha janela e não sabe porquê, nem para quê. Lembram-se de como começa o "Homem sem Qualidades"? (Para a citação, fui ao Google - em francês, infelizmente):

"I. D'où, chose remarquable, rien ne s'ensuit.

On signalait une dépression au-dessus de l'Atlantique; elle se déplaçait d'ouest en est en direction d'un anticyclone situé au-dessus de la Russie, et ne manifestait aucune tendance à l'éviter par le nord. Les isothermes et les isothères remplissaient leurs obligations. Le rapport de la température de l'air et de la température annuelle moyenne, celle du mois le plus froid et du mois le plus chaud, et ses variations mensuelles apériodiques, était normal. Le lever, le coucher du soleil et de la lune, les phases de la lune, de Vénus et de l'anneau de Saturne, ainsi que nombre d'autres phénomènes importants, étaient conformes aux prédictions qu'en avaient faites les annuaires astronomiques. La tension de vapeur dans l'air avait atteint son maximum, et l'humidité relative était faible. Autrement dit, si l'on ne craint pas de recourir à une formule démodée, mais parfaitement judicieuse : c'était une belle journée d'août 1913.[...]"

Pois: a situação não é exactamente como a que Musil descreve, mas não deixa de ser comum, e de ter poucas consequências sobre o que se seguirá.

Lisboa moderniza-se, e Portugal imita-a, provavelmente. Uri Caine re-interpreta Wagner mas não me enche as medidas, e, três anos antes de eu nascer, Sophia de Mello Breyner perguntava: "E agora ó Deuses que vos direi de mim?" - Já tudo foi dito, meus caros, basta ir às boas livrarias, ou seleccionar os bons fornecedores. E o Cristo-Rei, coitado, aprova, amarelo e idiota - não pode, nem sabe, fazer outra coisa.

Um dia (7)

O café, o sumo de laranja e as crianças chegaram ao mesmo tempo. Tomás e Helena tinham desaparelhado os barcos, passado escotas e cascos por água doce, dobrado as velas; posto a secar tudo o que havia para secar, arrumado os barcos, mudado de roupa. "A vela é um desporto em que a arrumação das coisas e do equipamento demora tanto tempo como a sua prática", pensou Bruno, que tinha, em tempos, sido um velejador razoável.

- Na primeira bolina foste para terra e devias ter ido para o mar, seu burro - dizia Helena, que andava sistematicamente à frente de Tomás;
- Pois, mas com a maré a vazar pensei que era melhor ir para a terra - respondeu ele.
- E não se via logo que em terra havia menos vento?

Na verdade há tantos parâmetros, é preciso ter atenção a tantos pormenores, a velocidade de um barco, qualquer que seja o seu tamanho, é tão sensível a distâncias e movimentos tão pequenos, que fazer vela deixa, muito rapidamente, de ser um desporto para se tornar um englobante. "É por isso", pensava Hannah, "que é tão chato estar com pessoas que navegam: não sabem falar de outra coisa". E não são temas de conversa que lhes faltam: é simplesmente a noção, quando dois navegadores se juntam, que o universo é o mar, e tudo o resto não passa de apêndices - os livros, o trabalho, a política, os homens (para as mulheres) ou as mulheres (para os homens).

(Pequena lição de afinação de velas para neófitos):

Uma embarcação de vela avança devido à diferença de pressões que há entre a face interior da vela (a que está voltada para o lado do vento) e a face exterior - exactamente o mesmo princípio que mantém um avião no ar (mas não que o faz avançar: é por isso que o avião precisa de motores e um veleiro não). Um veleiro não é, portanto, empurrado pelo vento, erro comum: ele é aspirado pelo vento, como eu e duas ou três pessoas que me foi dado conhecer. Uma vela latina (chama-se "latina" apesar de ter sido inventada pelos árabes, que nos legaram igualmente o harém, que infelizmente não aproveitamos, e o zero) tem três lados, e um "saco" (o saco é a curvatura da vela. Uma tábua de passar a ferro não tem saco, nem o tampo de uma secretária. Hannah tem pouco saco para alguns dos seus alunos. Um saco de batatas, a minha barriga e certas peças de lingerie têm "saco").

Se uma embarcação avança devido à diferença de pressões nas duas faces da vela, é legítimo deduzir que, quanto maior fôr essa diferença de pressões, mais depressa o barco anda. Para optimizar o rendimento de uma vela, o trimmer (a pessoa responsável pela afinação da vela) pode agir nos três lados do pano (vamos, se não se importam, chamar as coisas pelos seus nomes) e no saco. Comecemos por este, que é o mais difícil: o saco é o que fornece a potência a uma vela (tal como num carro há uma diferença entre "força" e "velocidade"); quando é que precisamos de potência? - quando há vagas, por exemplo. Num mar chão preferimos a velocidade; ou em condições de vento instável. Em que parte do pano deve estar o saco? De uma maneira geral, o saco quer-se na parte da frente (à vante). Mas, se o vento fôr fraco, eu posso ser tentado - e devo ceder à tentação - de puxar o saco um pouco para ré. Um pouco, claro, muito pouco - quanto mais para ré estiver o saco, mais para o lado se orienta o vector resultante das forças, e menos para a frente o barco avança.

Para aumentar ou diminuir a potência de uma vela agimos portanto sobre o saco - o seu "volume" - e a sua posição, e agimos também sobre os lados do triângulo (o que vai influenciar, na maioria dos casos, a forma do saco): quanto mais forte é o vento mais plana eu quero a vela: e para isso estico ("caço") dois dos lados (o vertical, que se chama testa, e é caçado por meio da adriça, e o horizontal, a esteira); se o vento continua a crescer tenho que tirar ainda mais potência à vela - e para isso deixo bater a valuma, que é a hipotenusa do triângulo, caçando o backstay - ou, se fôr uma genoa, puxando para trás o carrinho de escota.

Imaginemos portanto uma situação típica do Tejo: mar chão, vento médio muito irregular. A vela quer um pouco de saco, que eu controlo com a posição dos carrinhos de escotas, e tensões médias na adriça e na esteira. Em Cascais, onde o vento é mais regular e o mar menos chão, eu mantenho o saco da vela mas recuo-o um pouco (repararam que "recuar" e "ré" têm a mesma raiz?). À medida que o vento vai crescendo, eu avanço o saco até o tirar por completo.

Resumindo: para maximizar a diferença de pressões entre as duas faces da vela (uma bandeira bate porque a pressão é igual dos dois lados - e é por isso que o pau de bandeira se aguenta muito tempo no mesmo sítio), o trimmer deve controlar a posição e a forma do pano. Para a forma, dispõe da adriça, do boom - jack , da esteira, do cunningham, do backstay (e, em certos casos, dos running backstays, ou brandais volantes, em português), dos leach lines e dos carrinhos de escotas. Para controlar a sua posição - que é a afinação pincipal de uma vela - dispõe das escotas. Uma vela plana tem mais velocidade mas menos potência; esta obtem-se aumentando o saco. Um bom trimmer é alguém que consegue "ver" o vento como se fosse azul, que consegue visualizar o percurso dos filetes de ar ao longo das velas, e que sente uma dor cada vez que apercebe um escoamento menos linear desses filetes de ar, um turbilhão. Os marinheiros gostam das coisas lineares, fluidas, ordenadas.

Claro que isto é um breve, muito breve, resumo da afinação das velas; a velocidade do barco também varia com a forma e superfície da área molhada - controláveis por meio de pesos, seja de tripulantes, de lastro ou do equipamento de bordo - com a afinação do mastro, e com a maneira como o homem do leme "governa".

Para além da velocidade, há ainda que maximizar a capacidade de navegar contra o vento (a orça) - e depois, uma vez optimizadas a velocidade e o ângulo de bolina (o mesmo que "orça"), há que fazer as boas opções tácticas - de nada serve ter uma embarcação que anda muito se o trajecto não fôr bem escolhido.

Hannah achava as conversas entre velejadores aborrecidas, ou confusas; e fora um pouco por causa dela que Bruno parara de navegar. Ela sabia, contudo, que o mar é um vírus, e perguntava-se quanto tempo resistiria ele.

Chantagem

A chantagem é o único crime que coloca o criminoso ao nível da vítima (ou: não vamos submeter a pobre Hannah a um chantagista qualquer...)

25.2.04

Restaurante

Uma palavrita muito rápida para aconselhar o restaurante Barriga de Anjo, na rua Manuel Bernardes, 5 A (perto da Praça das Flores) em Lisboa. O restaurante é bom, e a companhia excelente.

24.2.04

Os fins e o Fim supremo

§1
"Quando a experiência me ensinou que tudo o que geralmente ocorre na vida trivial é vão e fútil, quando vi que todas as coisas pelas quais eu temia não continham em si nem bem nem mal a não ser até onde o espírito era movido por elas, decidi então indagar se existiria alguma coisa que fosse um verdadeiro bem capaz de se comunicar e pelo qual só, rejeitando tudo o resto, o espírito fosse afectado; ou antes, se haveria alguma coisa através de cuja descoberta e posse, eu fruisse para todo o sempre uma alegria contínua e suprema.


§3
... Na verdade, aquelas coisas que na vida vêm com mais frequência ao espírito, e que os homens, como se pode concluir das suas acções, consideram como bem supremo, reduzem-se a estas três, a saber: riquezas, honra e volúpia. A mente é partilhada a tal ponto por estas três coisas que quase não pode pensar em outro bem.


§12
... Para que isto seja rectamente compreendido, é de notar que o bem e o mal só se dizem de maneira relativa, a tal ponto que uma e a mesma coisa se pode dizer boa e má, segundo os diferentes aspectos (porque é encarada).


§84
Por consequência, nós distinguimos a Ideia Verdadeira das outras percepções e mostramos que as ficções, as ideias falsas e outras têm a sua origem na imaginação, isto é, em algumas sensações fortuitas..."


Bento de Espinosa, "Tratado sobre a reforma do entendimento", Livros Horizonte, 1971(?), Trad. António Borges Coelho. (Os negritos são meus)

"Riqueza" e "honras" ainda dispenso. "Volúpia" já é mais difícil...

Incompreensões

Ha momentos assim, de incompreensível felicidade, de inexplicável bem-estar. Inexplicável no sentido primeiro do termo, repare-se. A "Suonata à violoncello solo del signor Vivaldi" é parte integrante desse sentimento, e dessa incapacidade em explicá-lo.

"Vivaldi, suonata à violoncello solo" Bruno Cocset - Les Basses Réunies - Alpha 902 / Cataloge 2003

A memória e o esquecimento

"Detesto a memória. Gosto de me esquecer das coisas" (M. H. R.) Esta frase resume uma vida - ou melhor, a aspiração de uma vida, a minha.

"Solo una cosa no hay. Es el olvido.
Dios, que cria el metal, cria la escoria,
y cifra, en su profetica memória,
las lunas que seran, y las que han sido".

Jorge Luis Borges, (citado de memória - não se fiem na ortografia).

Vou começar a preferir a primeira citação.

Mentirita

Mentirita era o nome que se dava, na Venezuela, ao Cuba Libre. Um nome adequado, reconheçamos.

A melhor Mentirita de La Guaira e arredores era preparada por um italiano, fascista até à medula ("No tempo do Mussolini os comboios andavam a horas!" - nunca percebi este fascínio dos fachos italianos com a pontualidade dos comboios no tempo do Benito). O Cuba Libre era francamente bom - mas Paolo não dava a receita a ninguém, por muito que todos nós lha pedíssemos.

Um dia o meu pai saíu de casa depois de jantar, mais decidido que o costume: "Hoje vou conseguir a receita do Paolo", garantiu-me à porta. Conseguiu: voltou às quatro da manhã, completamente bêbedo. Só me disse "Tenho-a!" antes de se deitar.

No dia seguinte explicou-me que passara a noite a beber e a oferecer bebidas ao Paolo - que finalmente cedeu e lhe deu a receita com uma condição: na Venezuela, não a dávamos a ninguém, a ninguém! Fora da Venezuela estávamos autorizados a dar a receita a quem quiséssemos. Aqui vai:

Uma porção de Rum Anejo - aconselho o Cacique ou o Habana Club;
Um quarto (ou um terço, no máximo) de porção de Gin;
Duas ou três gotas de Bitter Angostura;
Uma rodela de limão,
Um copo alto cheio de gelo
Coca-Cola - recém aberta. Revoltem-se se vos fizerem um Cuba Libre com Coca Cola de litro aberta há duas horas (na melhor das hipóteses - por vezes são de ontem!).

A partir desse dia, todos os amigos e colegas do meu pai começaram a juntar-se em nossa casa para as Mentiritas do final do dia.

África

Pedro Mexia tem hoje, como de costume, um magnífico artigo no DN - este sobre a descolonização. Se bem que esteja de acordo sobre o fundamental da crónica, gostaria de fazer duas ou três observações:

Do lado de lá, os africanos tiveram as mesmas experiências, mas com um acento quase exclusivo no lado doloroso que todos estes períodos históricos trouxeram - Colocar o acento quase exclusivamente nos aspectos negativos da descolonização faz parte desse argumento falacioso, ou melhor, fraudulento, que consiste em escamotear os factos positivos, e irrefutáveis, da colonização: coisas com a esperança de vida, a taxa de mortalidade infantil, a educação, etc. O PIB per capita no Gana em 1960 era mais elevado que o da Coreia do Sul!

fomos aguentando uma guerra que nunca seria ganha militarmente - isso é discutível: a guerra estava ganha em Angola, empatada em Moçambique e perdida na Guiné. Nada mau, para um pequeno e pobre país da periferia da Europa, a lutar em três frentes a milhares de quilómetros de casa; o que era de todo impossível seria ganhar politicamente as guerras;

Podia ser doutro modo? Pelo que tenho lido, acredito que sim. Bastava que - não podia, e não "bastava que". Para que a descolonização (a qual, de resto, como muito bem diz, ainda não acabou) seria preciso toda a série de condições que enumera (e já são muitas e nada fáceis), e mais uma, sine qua non: um exército em estado de combater. Ora o nosso, por motivos óbvios, não estava;

O tema da descolonização interessa-me, evidentemente - mas não tanto quanto seria de esperar. Estou muito mais interessado com o futuro. "Que fazer?" parece-me uma questão mais importante, mais pertinente, mais adequada do que "Que deveríamos (ou poderíamos) ter feito?" A resposta é: "não sei". Penso, contudo, que o primeiro passo deve ser olhar para a situação em Africa da perspectiva correcta - a saber, que o problema é político e não económico. Por isso sou contra as soluções de ordem económica, do tipo "um dólar por dia salva 250 crianças de uma morte certa" (talvez seja verdade, mas chega a adolescência e vão para soldados?; ou assim que deixam de ser crianças e ter "direito" a protecção morrem de fome?). Claro que é difícil explicar a um zimbabweano hoje que não lhe dou dinheiro porque acho que não resolve o problema, mas isso é outra história. E por isso duvido muito das ONGs, com a sua tendência para colocar as culpas todas na "colonização" - ou nas colonizações, se preferir: apesar de não ver grande diferença entre elas, ou pelo menos entre os seus resultados.

Um dia (6)

Ao contrário de Bruno, e como todos os imbecis, Daniel era muito ambicioso. E pensava que a sua relação com Hannah o ajudaria nas outras cadeiras do curso. Enganava-se, claro, redondamente.

Mas antes de prosseguir, sintetizemos e fixemos:
Hannah é uma senhora de quarenta anos, alta, magra, de cabelos castanho claro, encaracolados. Olhos: verdes, grandes e bem abertos. Dá aulas de História Judaica numa Universidade local. Tem um amante; para além do nome, só o sentido de humor, a sensualidade e um nariz muito ligeiramente adunco traem as suas origens. Não sabe se o marido sabe, mas suspeita que ele suspeita, da sua relação adúltera.

É casada com Bruno, sensivelmente da mesma idade - talvez um pouco mais velho. Decidamos agora que tem quarenta e dois anos, e foi recentemente nomeado director de um jornal diário de prestígio. É bonacheirão, pouco ambicioso, mas extremamente inteligente. Ganhou peso (ele prefere dizer "densidade"), pois gosta de comer e beber - aliás, a cozinha é o seu hobby.

Daniel é o amante de Hannah: tem vinte e poucos anos, é magro, não é muito bonito e é burro. Inscreveu-se em História Judaica porque tinha poucos alunos, e ele julga-se talhado para vôos altos - menos concorrência, pensava, facilitar-lhe-ia o acesso a notas mais altas. Mas Daniel era aquilo a que os franceses chamam um coureur de jupons; e caíu direitinho no habitual jogo de sedução de Hannah - que, desta vez, não teve vontade de o interromper e decidiu levá-lo até ao fim. Ela não percebe bem porquê; Daniel não percebe de todo; e eu próprio tenho algumas dúvidas.

Hannah e Bruno, um pouco contra a vontade do autor, tiveram dois filhos: Tomás, de doze anos (não confundir com Tomás, de quinze, meu filho) e Helena, de dez (idem com Helena, minha filha, de doze). Livremo-nos deles: inscrevem-se numa escola de vela - o que tem a vantagem dupla de justificar a presença dos pais num restaurante "marítimo" de Cascais por uma tarde chuvosa de sábado, e de os afastar das nossas preocupações, pelo menos por agora. Resisto à tentação de os colocar internos num colégio da Suiça, por exemplo: isso implicaria telefonemas, e-mails, webcams, viagens, lágrimas e suspiros, grandes abraços e deslocações frequentes ao aeroporto de Lisboa (de resto bastante bonito, e onde gosto bastante de chegar).

Hannah e Bruno têm uma vida sexual "saudável", como se dizia nos anos sessenta; ela diz que ele faz o melhor cunnilingus do hemisfério norte - tendo uma certa prática pré-matrimonial do assunto podemos acreditar nela. De facto a sensualidade requer inteligência: sem esta aquela não passa de lascívia. E os dois completam-se bem.

- Devias aprender a fazer um cunnilingus decente -, disse um dia a Daniel (se fosse com Bruno, teria utilizado o termo "minete", que achava muito mais bonito. Contudo, não gostava de estragar palavras bonitas com o amante). - Já te expliquei que "suave" é a palavra-chave.
- E tu, pensas que és uma rainha do sexo? - retorquiu ele, zangado.

(Aproveito para dizer ao simpático leitor e explorador que todos os dias utiliza o seu Satphone, nas profundezas da Amazónia, para me ler, que os hábitos sexuais e alimentares das tribus rivais Guaranápati e Guaranápraqui me interessam pouco. Já a leitora de Heidelberg, simpática vila da qual tive um dia oportunidade de conhecer uma digníssima e fogosa filha, me pode mandar, por favor, uma fotografia e um número de telefone, que prometo não divulgar).

- Ora aqui está o meu ursinho todinho zangadinho coitadinho, chincalhava ela. E chupáva-lhe o dedo grande do pé, técnica aprendida em Amsterdam com um vago conhecimento asiático, que o punha imediatamente com uma erecção indesejada, por vingança. Hannah troçava de Daniel. Uma das suas "piadas" favoritas era fazê-lo terminar muito depressa. Ele enchia-se de má consciência e ela dizia-lhe que não fazia mal - enquanto pensava "meu burrinho, um homem só ejacula quando está farto, e eu limito-me a fartar-te depressa." O que não era difícil.

Um dia (5)

O autor tem mais tarde ou mais cedo que decidir quem vai morrer, quem vai matar, e porquê: um romance, um conto, uma novela ou uma história sem mortes não são naturais; ou se antes de morrer alguém alguém nascerá. Os leitores também têm a sua palavra a dizer: um pede-me que inclua receitas de cozinha na história; outra, cenas de sexo ("daquelas que tão bem sabes descrever" - aqui fica o competente agradecimento e registada a ironia fina). Mas, por enquanto, Hannah e Bruno estão sentados num restaurante em Cascais, um restaurante muito bonito, decorado com temas náuticos.

- E tu, serás uma boa mãe? - Bruno não sabia se queria ou não ter filhos e tentava fugir à questão. Para ele, qualquer decisão era fácil de tomar, desde que fosse Hannah a tomá-la. Progredia na sua carreira profissional apesar de uma total falta de ambição. Mesmo o impulso que o levara a ajudar a rapariga que à sua frente tropeçara não proviera dele. "Foram as hormonas", explicava-lhe.

Foi assim que decidiram ter um filho: Bruno porque se as hormonas o tinham levado para aquela "grande perche", também saberiam fazer dele um pai. Hannah lembrou-se que de qualquer forma "não estava à altura" de nada na sua vida, e isso não a impedia de ter feito uma tese brilhante e provocatória (sobre Masada), de ter uma série de livros publicados - e, muito mais difícil - regularmente citados, de ser querida pelos seus alunos (sem jogo de palavras, por favor) e invejada pelos colegas - sinal seguro de sucesso na Academia.

"Que saberá ele de Daniel?", perguntava-se. Quinze anos após o tropeção mágico, como ela lhe chamava, doze depois do casamento e dez do nascimento do seu primeiro filho (e único, o segundo foi uma rapariga), Hannah ainda se espantava com a quantidade de coisas que Bruno sabia - dela, e do mundo em geral. "Tenho um marido que sabe tudo, e um amante que mal pode escrever o nome".

- Andreia, traga-me um café, por favor, - pediu Bruno.
- E um sumo de laranja, - acrescentou ela.

23.2.04

Um dia (4)

Hannah era professora de história judaica na Universidade, já o dissémos; tinha um marido jornalista (agora director de um diário) e um amante que era seu aluno. Terá filhos? O autor não sabe ainda. Por um lado teme o esforço suplementar de ter que descrever as crianças, educá-las, quase; por outro, pergunta-se se a vida de Bruno e Hannah faz sentido sem crianças. Eles também, de resto. Já não são muito jovens, e se querem tê-los é agora. Mas a perspectiva da maternidade assusta Hannah: tem medo de não estar "à altura". Toda a sua vida tivera medo de não estar à altura - que "altura" não sabia ela, e não saberemos nunca.

Objectivamente, Hannah queria um filho, ou dois de preferência: a "escolha do rei", gostava ela de dizer nos jantares dos seus colegas de faculdade, que já não ligavam muito ao que tomavam por provocações. A "escolha do rei" é ter primeiro um rapaz e depois uma rapariga. Hannah, que era grande e bela, imaginava-se facilmente a passear no jardim com o carrinho de bébé. Bruno via-a menos facilmente a dar de mamar à criança em vez de ir a uma aula, ou assistir aum congresso.

Ela partilhava as suas dúvidas com Bruno:
-Achas que vais ser um bom pai?

Talleyrand

Café: "Brûlant comme l'enfer, noir comme le diable, pur comme un ange, suave comme l'amour."

Cognac: "Ces choses-là, Monsieur, on les verse, on les tourne, on les regarde et on en parle."

"Voyage Atlantique" (Transdisciplinarité / Transversalité)

"La chose va peut-être sembler étrange, mais je voudrais me porter garant de ce qu'il y a beaucoup de poètes cachés parmi les innombrables nomenclateurs des sciences descriptives de la nature".

Ernst Jünger, "Voyage Atlantique", Ed. de la Table Ronde, Paris 1952, tradução de Yves de Chateaubriant

Uma palavra

O seu sonho era escrever um livro com uma palavra, uma só.

Método

Detesto aqueles que se embebedam sem método, sem rigor.

Mais N., mais "Ecce Homo"

"Estar o menos possível sentado; não confiar em ideia alguma que não tenha surgido ao ar livre e quando caminhamos, em nenhuma ideia na qual os músculos não tenham festiva parte. Os preconceitos nascem dos intestinos" (sublinhado meu; ou: porque gosto tanto dos franceses?).

Porque é a filosofia alemã irracionalista, e a francesa racionalista? Algo está errado, aqui.

Nietzsche e os capitães

Abro o "Ecce Homo", ao acaso, e encontro sublinhado, há muitos anos, esta pérola: "Não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece".

E penso numa frase - (de quem? - creio que de Joshua Slocum, o primeiro homem a dar a volta ao mundo em solitário): "Sao os capitães demasiado seguros de si que perdem os navios. Aqueles que têm dúvidas nunca encalham".

Mais Zen e manutenção de motocicletas

"It's not the motorcycle maintenance, not the faucet. It's all of technology they can't take. And then all sorts of things started tumbling into place and I knew that was it. Sylvia's irritation at a friend who thought computer programming was "creative." All their drawings and paintings and photographs without a technological thing in them. Of course she's not going to get mad at that faucet, I thought. You always suppress momentary anger at something you deeply and permanently hate. Of course John signs off every time the subject of cycle repair comes up, even when it is obvious he is suffering for it. That's technology. And sure, of course, obviously. It's so simple when you see it. To get away from technology out into the country in the fresh air and sunshine is why they are on the motorcycle in the first place. For me to bring it back to them just at the point and place where they think they have finally escaped it just frosts both of them, tremendously. That's why the conversation always breaks and freezes when the subject comes up.

"Other things fit in too. They talk once in a while in as few pained words as possible about "it" or "it all" as in the sentence, "There is just no escape from it." And if I asked, "From what?" the answer might be "The whole thing," or "The whole organized bit," or even "The system." Sylvia once said defensively, "Well, you know how to cope with it," which puffed me up so much at the time I was embarrassed to ask what "it" was and so remained somewhat puzzled. I thought it was something more mysterious than technology. But now I see that the "it" was mainly, if not entirely, technology. But, that doesn't sound right either. The "it" is a kind of force that gives rise to technology, something undefined, but inhuman, mechanical, lifeless, a blind monster, a death force. Something hideous they are running from but know they can never escape. I'm putting it way too heavily here but in a less emphatic and less defined way this is what it is. Somewhere there are people who understand it and run it but those are technologists, and they speak an inhuman language when describing what they do. It's all parts and relationships of unheard-of things that never make any sense no matter how often you hear about them. And their things, their monster keeps eating up land and polluting their air and lakes, and there is no way to strike back at it, and hardly any way to escape it."


Um dia (3)

Hannah era feliz. "Tenho um marido inteligente e um amante idiota; - como deve ser: o contrário seria uma pena. Tenho um trabalho de que gosto, uma casa bonita, e vivo num país que não sabe bem o que é o anti-semitismo" (ou pelo menos não sabia, ao tempo desta história). Dava aulas de história judaica numa universidade não muito longe de casa deles, o que lhe permitia ir a pé para o trabalho, e vir a pé para o adultério.

Desculpava as notas horrorosas - e merecidas - de Daniel com a "exigência extraordinária" que a situação deles exigia. Daniel acreditava, e agradecia-lhe. Isso dispensava-o de se esforçar - por muito que trabalhasse nunca passaria de medíocre, pensava. Não sabia que Hannah era obcecada pela justiça, e que se tivesse de lhe dar boas classificações não teria aquela relação.

Hannah apreciava: o rapaz era um verdadeiro pau mandado; bastava olhar para ele para que o pau se pusesse em movimento. Era burro, e a admiração sem limites que sentia pela professora chegava para o calar. "Que sorte", pensava ela, "um marido com quem posso falar, e um amante que não sabe senão calar-se".

Zen and the Art of Motorcycle Maintenance (Cecil Taylor no CCB)

"The porcelain inside this first plug is very dark. That is classically as well as romantically ugly because it means the cylinder is getting too much gas and not enough air. The carbon molecules in the gasoline aren't finding enough oxygen to combine with and they're just sitting here loading up the plug."

É curioso: ando pela "esfera" dos blogs há não sei quanto tempo, e ainda não vi referência nenhuma ao Zen and the Art of Motorcycle Maintenance.

""Substance" and "substantive" really corresponded to "object" and "objectivity," which he'd rejected in order to arrive at a nondualistic concept of Quality. When everything is divided up into substance and method, just as when everything's divided up into subject and object, there's really no room for Quality at all. His thesis not be a part of a substantive field, because to accept a split into substantive and methodological was to deny the existence of Quality. If Quality was going to stay, the concept of substance and method would have to go. That would mean a quarrel with the committee, something he had no desire for at all. But he was angry that they should destroy the entire meaning of what he was saying with the very first question. Substantive field? What kind of Procrustean bed were they trying to shove him into? he wondered. "

E será que ninguém foi ouvir o Cecil Taylor ao CCB? Como diz um outro blog, sobre Kleist, (mas com muito mais piada) isto anda tudo ligado.

(Procrustean bed para não-especialistas).

Um dia (2)

Anos mais tarde, sentados num café em Cascais, falaram naquele dia. Passava um reggae ligeiro, a vida profissional corria-lhes bem, e chovia. As gotas de chuva escorriam pelos vidros como caracóis apressados. Bruno era jornalista, e Hannah historiadora.

- Ambos explicamos o que aconteceu, você há mil anos e eu ontem,- dissera-lhe ele;
- Está enganado: se estudássemos o antigo Egipto baseados no que nos contariam os jornalistas da época, ainda saberíamos menos dele do que sabemos. - Hannah sentia-se incomodada com o sorriso berlusconiano do rapaz alto e bonito que a levava nos braços, e com a situação no seu conjunto: era ridículo tropeçar à saída do eléctrico, era ridículo ter aquele homem visivelmente encantado com a situação mesmo atrás dela, e era ridículo não poder ir dar a aula. Hannah era professora universitária, e sensível ao ridículo.

"Tem o sentido de humor de um bloco de basalto antes de ser trabalhado pelo Cutileiro", pensou Bruno. Enganava-se, claro. Depois de ter passado pelas mãos do Senhor João, o basalto não ganha em humor; e Hannah tinha-o para dar e vender. Aos poucos foi apreciando estar nos braços do jovem - sobretudo desde que se apercebeu do seu cansaço. Esperavam um táxi.

- Naquela altura não havia telefones portáteis...
- De qualquer forma não terias podido utilizá-lo, tinhas os dois braços ocupados; e os olhos também, não paravas de me olhar para as mamas. - Hannah era rude, ou directa. - Já não sabia onde metê-las.
- Não me pareceste muito incomodada.
- Estava furiosa, vexada, envergonhada, humilhada. E o teu sorriso! Parecia que te saíra a sorte grande, e aproveitaras para lavar os dentes.

Hannah era grande, quase da altura de Bruno. Tinha o cabelo encaracolado, olhos verdes, e um magnífico par de seios, "maiores que a mão de um homem honesto", dizia-lhe ele.
- Não é preciso ser honesto para lhes mexer, basta eu querer.

Olhavam os dois para a chuva, ouviam distraídos o reggae, e Hannah pensava no que lhe diria Bruno se soubesse que tinha um caso com um aluno quinze anos mais novo, e quinze quilos mais leve, que ele. Decidiu não lhe dizer nada. "Há coisas que não se dizem, nem a um marido", pensou.

22.2.04

Errata

Num post abaixo, confundi a "Guerra e Paz" com a "Anna Karenina". A sorte de ter poucos leitores é esta: só a Maria Helena, do Digitalis, deu pelo erro. Aqui fica o meu obrigado. Tenho, decididamente, que reler o Prokofiev...

Rabindranath Tagore

"Tu es venue pour un instant à mes côtés, et tu m'as fait sentir le grand mystère de la femme qui palpite au coeur même de la création"
...

"Où les routes sont tracées, je perds mon chemin.
Sur la vaste mer, dans le bleu du ciel, il n'y a point de lignes marquées.
Le sentier est caché par les ailes des oiseaux, le feu des étoiles, par les fleurs des saisons différentes.
Et je demande à mon coeur: ton sang ne porte-t-il point la connaissance de l'invisible chemin?"

Poemas 56 (extracto) e 6, "La corbeille de fruits", in "L'Offrande lyrique suivi de La Corbeille de fruits", Poésie/Gallimard, 1975. Traduções de André Gide (L'Offrande Lyrique) e Hélène du Pasquier (La Corbeille de Fruits)

20.2.04

Lettre d'amour

J’ai déjà, tu le sais, eu beaucoup de femmes dans ma vie. Certaines plus belles, d’autres plus laides que toi. Quelques unes plus sensuelles, d’autres moins; ou plus féminines, ou plus froides. Ce que je n’ai jamais eu, à part toi, est une femme qui sache qui je suis réellement.

Et cela n’a pas de prix.

L.

Depois da noite...

...e antes do sono, foi deitar-se. Já tudo tinha sido dito: para ele a solidão, para outros a juventude.

A Mesma Velha História

Lembra-se certamente, meu caro Joaquim, que nessa altura os liberais americanos diziam: "Comprem carros japoneses, é a melhor forma de ajudar a indústria automóvel americana".

Um dia...

... ela desceu do eléctrico, e tropeçou; a sua vida mudou, para sempre e para melhor.

Gibraltar

Um dia falarei de Gibraltar, do bar mais sórdido (segundo bar mais sórdido, o primeiro foi em Cape Town) onde jamais pus os pés: e da vontade que tenho de lá voltar, sabendo que nada será a mesma coisa. Nem mesmo a alegria de encontrar Coca-Cola à venda, e Crunchies.

Porque não há redescobertas: há a primeira vez e as outras.

Caro Rui,

esqueci uma coisa, importantíssima: a impunidade.

Voilà

Foi o meu momento de patriotismo.

Mudança (no singular):

a verdade é que o país muda. Quem, há vinte anos, diria que os condutores portugueses parariam numa passadeira de peões? Lembram-se quando eles nos gritavam: "pensas que estás na Europa?"

"Playtime"

A sequência do restaurante (ou sequências, mais apropriadamente) é uma magnífica alegoria do Portugal de hoje. E da França de ontem. We're not alone.

In praise of older...

... companies, and other stories.

Ainda não acredito: a PT pôs-me isto a funcionar em quatro ou cinco dias. Quanto aos Correios, esqueçamos. Uma imagem do Portugal que avança aos soluços: aqui bem, ali menos. A Via Verde e o burro a puxar uma carroça de lenha - como vi recentemente na auto-estrada (por cima da, ao cair do dia, uma imagem, uma visão de outros tempos).

Um país do terceiro mundo no primeiro, ou do primeiro no terceiro? Por mim, não tenho dúvidas: hoje é um, amanhã outro.

No restaurante

Não há no mundo nada, mas nada, mais bonito, mais potente, do que o olhar de uma mulher apaixonada. Ou pelo menos lúbrica.

Insulto

É quase um insulto, tanta juventude.

16.2.04

Internet, telefone e mudanças

Mudamos de casa, e apercebêmo-nos de quão recentes são estas tecnologias: no fundo, quanto tempo decorreu entre a descoberta da electricidade e a sua divulgação, a sua utilização numa base diária? O mesmo com o vapor, os caminhos de ferro, a aviação. Ainda me bato com a falta de telefone fixo, a incapacidade de pôr o portátil a servir de modem - e a tralha por arrumar.

Ainda me bato, sobretudo, com o facto de nada, mas nada, ser fluido em Portugal. Uma tarefa qualquer, por simples que seja, encontra sempre um obstáculo, seja ele um papel que falta, uma pessoa incompetente, um horário que se desconheça. E não se pode atribuir a culpa a uma pessoa, uma coisa, uma lei, a nada especificamente - nem sequer se pode dizer que haja "culpa": há razões, para tudo; há sempre razões, sempre.

Temos que redescobrir a diferença entre uma explicação e uma justificação.

Estas duas últimas semanas dariam um excelente esqueleto para um livro sobre a vida quotidiana em Portugal no dealbar do século XXI. Uma "Guerra e Paz" cujos personagens seriam a Dra. Mariana e o Sr. Silva (não encontrei nada que se parecesse com "Vronski").

Claro que não é nada que acordar e ver o Tejo, ou ter a "Creoula" à frente da janela, não redima - talvez seja esta a raiz do problema - Deus, dá-nos frio, neve, chuva, intermináveis invernos e verões a fingir, cobre-nos a paisagem de chaminés da Revolução Industrial e de prédios reconstruídos sobre as ruinas dos que a segunda Guerra Mundial destruiu, tira-nos esta luz magnífica e redentora, dá ao Tejo a côr do Reno (mas não dês ao Reno o fedor do Tejo, os desgraçados dos alemães já têm com que se entristecer); tira-nos este environment no qual é tão fácil e tão bom refugiar-nos quando as coisas não vão bem. Faz tudo isso, Deus - mas temporariamente...

7.2.04

Bancos & Burocracia

Sobre um post no Cataláxia:

Caro Rui,

com o seu post você toca em dois pontos mágicos da minha relação com Portugal. Permita-me umas observações:

a) Burocracia - Ando há muito tempo para fazer uma compilação das coisas que me foram feitas pelos diferentes Institutos Marítimos com quem, ao longo dos anos, fui lidando. Coisas indescritíveis - não porque sejam difíceis de descrever, nas porque não sei como as tornar credíveis. Paradigmática, para mim, foi uma exigência feita por pessoas inteligentes e respeitáveis de pôr chumbo num catamaran para lhe reduzir a estabilidade - com o objectivo, honorável, de a tornar conforme aos parâmetros legais (a lei foi feita para monocascos, e os multis têm, naturalmente, muito mais estabilidade).

Tão pouco conheço a razão de ser desta palhaçada (seria o termo, se não tivesse as consequências que tem): não penso que haja uma só; deve haver várias. A preguiça é uma delas - muito recentemente o director de um dos departamentos do Instituto aconselhou-me a registar um barco (mais um caso difícil) em França, porque ele depois o registaria em Portugal. Se o fizesse directamente em Portugal "arriscava-me a que [fosse] muito difícil": Quando, à beira da apoplexia, eu lhe disse que é em Portugal que pago os meus impostos e que tenho o direito de exigir de funcionários públicos portugueses que façam o seu trabalho, ele limitou-se a sorrir. Outra causa são os benefícios financeiros: aquela gente ganha muito dinheiro - colocam-nos obstáculos intransponíveis, e depois constituem sociedades com parceiros a quem nos aconselham a entregar o processo. A questão do poder também tem a sua quota-parte: a nossa sociedade é muito hierarquizada, muito atenta aos aspectos formais do poder - e os funcionários descarregam a sua frustração e exercem a sua vontade de poder no elo mais fraco da cadeia; - o que nos leva a perguntar: porque é o consumidor o "elo mais fraco"? Como sociedade rural que somos, as relações pessoais são importantes - não somos exigentes porque aquele senhor conhece o meu pai, é amigo da tia e trata por tu o papagaio da avó. Não sei como é no sector dos health club - imagino que seja semelhante - mas as histórias do sector marítimo são africanas, não são de um país europeu.

Uma coisa interessante: o funcionário que fez exigências marcianas (gosto demais de África para a chamar aqui) no caso do catamarã que acima menciono (o barco era novo. Fez uma época de trabalho em França e veio trabalhar para Portugal. Demorou três anos, três anos, a ser homologado cá para fazer aquilo que fazia perfeita e legalmente em França - e levou a custos equivalentes a mais de vinte por cento do preço do barco (sem contar o dinheiro não facturado; refiro-me apenas a custos directos, "fornecimentos e serviços terceiros"), esse funcionário, dizia eu, foi promovido a chefe de um departamento. Sim, promovido. A explicação que me deu o sócio privado de uma das empresas que atrás referi, a quem entreguei "o processo", claro, é que tinha sido promovido para "se tornar inofensivo". Isto abre algumas pistas sobre o funcionamento da funcão pública portuguesa - e abre uma avenida de cepticismo sobre as reformas da dita cuja.

b) Bancos: começo com uma pequena anedota - o primeiro empréstimo bancário que tive na vida foi obtido Suiça - e foi-me feito sem garantias porque "os portugueses pagam sempre as suas dívidas", como me explicou o gerente bancário a quem apresentei o projecto (reconheço amargamente que deixou de ser verdade: a burocracia portuguesa ganhou mais uma batalha na sua guerra contra a actividade produtiva e deixou-me incapaz de pagar o empréstimo nos termos acordados).

Os bancos portugueses têm uma grande explicação para a sua ineficiência: a falta de um quadro jurídico adequado, a falta de um sistema jurídico que funcione. É verdade. Mas fale com um quadro superior de um banco, e ele mostra-lhe por A mais B que está perfeitamente a par dos disfuncionamentos do sistema e dá razões para todos eles:
"Só ligam a nomes, não ligam a projectos": é verdade - a razão é que no caso do projecto correr mal eles têem uma alavanca na família que pode facilitar o reembolso do crédito;
"São avessos ao risco": é verdade - mas a) nâo podem mexer nas taxas de juro e exigir taxas mais elevadas para projectos mais arriscados, como qualquer banco em, por exemplo, Inglaterra faz (esta não verifiquei: o que é que os impede de aumentar a taxa de juros?); e b), se ganham dinheiro com créditos imobiliários, porque se hão-de maçar com taxas de risco mais elevadas, que nem sequer são mais remuneradoras?

O que me traz à memória uma história gira que liga os bancos e os centros de decisão nacional. Ou duas histórias, semelhantes: numa, uma empresa da construção civil que pertencia a uma grande empresa francesa foi comprada pelos seus quadros - e no dia segunte tinha telefones de todos os bancos com quem mantinha relações a informá-la qe as linhas de crédito deveriam ser saldadas e seriam suspendidas. Outra, muito semelhante mas ao contrário: uma grande empresa também da construção civil que havia sido informada pelos bancos (o plural é propositado, foram vários os bancos envolvidos) que as linhas de crédito iam acabar recebeu, logo a seguir à sua recente aquisição por uma empresa espanhola, telefonemas desses bancos informando que afinal as linhas de crédito continuavam abertas...

E assim por diante. Eu também não sei, e gostava de saber, quais as razões históricas que nos levaram a esta situação - mas confesso-lhe que estou extremamente céptico sobre a possibilidade de mudança. Não porque sejamos mais estúpidos do que os outros, evidentemente, mas porque as raízes são tantas, tão diferentes e antigas, a resistância à mudança tão imbricada na maneira de ser, que me parece difícil, muito difícil, mudar seja o que fôr. De pacotes Delors em fundos estruturais lá nos vamos aguentando...

Cordialmente,

Luis


PS - um político moçambicano com quem comentava a burocracia do seu país (uma das heranças lusas), dizia-me: "Luis, todos nós sabemos que a burocracia está a empatar muito o desenvolvimento de Moçambique. Mas não podemos fazer nada agora, porque acabar com a burocracia exigir-nos-á que tripliquemos os salários da função pública, e não temos dinheiro para isso". Terá havido cálculos semelhantes por cá? Penso que não: um dos problemas é que nem toda a gente na função pública é corrompível. Seria muito melhor que fosse: pelo menos as coisas far-se-iam, e o seu amigo já teria os health clubs a funcionar.

6.2.04

Mudança

Não há separações fáceis, e não há mudanças fáceis.

Imagens do mar

Entrar no Vieux Port de La Rochelle à vela;

Uma noite de Tramontane durante o Tour de France (neste site, a visualisar absolutamente - enfim, quem gosta de vela - o diaporama do Tour 2002): três Sélections lado a lado, paus de spi a tocar nos brandais do do lado, a cara do gajo do meio, branca fosforescente a gritar para o que estava a sotavento: "Não orces, não orces", e para o que estava a barlavento: "não arribes, não arribes". Os três a 14 nós, a bigodeira um metro acima da balaustrada - até que a formação se desfez, cangocha após cangocha.

Mais uma imagem do Tour: sete barcos em fila; o primeiro toca e vira de bordo. O segundo não vira logo: vai até onde o primeiro tinha tocado, toca por sua vez e só então vira - e os que vinham atrás fazem a mesma coisa.

O Piano Pub em La Rochelle, e os primeiros contactos com o whisky de malte. A generosidade do proprietário, enorme, jogador de rugby, bigode "republicano", que teve a paciência de me inciar e de me ensinar a distingui-los uns dos outros. E que revejo, no dia da largada para os Açores a correr no pontão, uma garrafa de Auchentoshan em cada mão - fiz marcha a ré para as ir buscar;

Um jantar que não comi em Boulogne, creio: estava tão cansado que adormeci à mesa, e a senhora só à hora do fecho conseguiu acordar-me; muito zangada - tinha-me chamado a noite toda, sem sucesso, e parece que mesmo sentado ressono muito...

As saídas no Tomcat, um micro de Dunkerque que foi a minha primeira experiência de vela num barco muito performante;

Os pequenos almoços delirantes do Raoul, em La Rochelle: ostras e champagne em quantidades industriais à 10 da manhã - tive que lhe dizer para parar, porque não conseguia fazer mais nada o dia todo;

O dia em que nos Açores me atirei à água porque vi uma barbatana de tubarão a 50 metros do barco - queria perder o terror primário que tenho pelos bichos e testar a terapia de choque (não funcionou);

O tubarão ao largo de S. Jorge - a descrição que a S. faz é: "ele disse-me para voltar já para o barco, num tom de voz muito calmo - mas ao qual era impossível não obedecer imediatamente";

Chegada a Lisboa com uma lestada muito forte - um dia inteiro a fazer bordos para cima e para baixo, porque o "Aquarelle" não bolinava.

Passagem da Roca no "Scarlett", vindo de St. Malo, sozinho, e a vontade que tive de não entrar, de continuar para as Canárias - o que devia ter feito, de resto.

O peixe que os pescadores nos davam, espontaneamente, nos Açores - tinha um gato a bordo que passou os primeiros meses de vida a comer espadarte.

La Rochelle, La Rochelle, La Rochelle;

Île de Ré, Île de Ré, Île de Ré;

A tromba de água a desfazer-se em cima de Fort-de-France - uma chuva que não era chuva, era como estar debaixo de uma cascata caindo do céu. A cidade ficou inundada em minutos;

As três dourades coriphènes que nos acompanharam desde o princípio dos alízeos até à Martinique;

A discoteca em Fort-de-France onde fui dançar com o pé no gesso. Quando pedi ao DJ um slow ele ficou tão impressionado que disse ao microfone que só ia passar slows, "pou wemewcier le Monsieur qui est là avec le pied dans le plâtwe";

O corpo da S., uma controladora de tráfico aéreo que fez a travessia, cheio de cicatrizes das quedas de mota, de pára-quedas, de parapente - e os seus cabelos encaracolados, o seu sentido de humor, o sorriso que vinha da criação do mundo;

Ainda durante essa travessia, a S. e a A. nuas (era o traje oficial de bordo) a coserem o spi - estava tão podre que no fim já usávamos os windbreakers; tive durante muito tempo uma fotografia delas concentradas na costura, parecia a capa de um disco do Leonard Cohen;

Os Ti'Punch no Abri Côtier, em Fort-de-France;

(Continua)

5.2.04

Haiku

Pour celui qui part
Pour celui qui reste
Deux automnes

Yosa Buson

4.2.04

Português e economia

Magnífica lição de português, e de economia, num só artigo:

As tarifas executivas nos voos de longo curso podem, por vezes, ser 10 vezes mais caras do que as tarifas económicas mais baratas, porém, são muito mais lucrativas para as companhias aéreas.

Que faria se elas fossem 10 vezes mais baratas, e as vírgulas colocadas como deve ser!

Mudança

Quem não gosta do Expresso não muda de casa há muito tempo.

3.2.04

Lubutu

Estrictamente falando, Lubutu não era da nossa jurisdição. Não tínhamos nada que fazer lá, portanto. Mas o Governador (auto-intitulado "La Force Tranquile du Manyema") queria absolutamente visitar o sítio, e começava a fazer pressões cada vez mais pesadas; uma dessas pressões era proibir (ou pelo menos dificultar) a saída de víveres, ou ficar com uma parte cada vez maior "para os soldados: também são seres humanos, também merecem assistência". O facto singelo e irrefutável de os nossos estatutos, que ele conhecia melhor do que muitos de nós, proibirem explicitamente a assistência a soldados no activo deixava-o indiferente.

Um dia cedemos: alguém nos dissera que a situação em Lubutu estava insustentável, e, mesmo sabendo que não podíamos fazer nada, decidimos ir ver in situ o que se passava. Avisámos o Governador, um gordo enorme, detestável, que se deslocava numa liteira artesanal transportada por quatro, ou seis, desgraçados; ele reuniu a sua comitiva - tínhamos sempre que limitar o número de pessoas que queria trazer consigo: a ideia que o avião tinha uma quantidade limitada de lugares, mesmo que ainda houvesse espaço, era-lhe totalmente incompreensível - e lá fomos, no Dakota, um avião mítico, justificadamente.

Comecei logo por me aborrecer com a Força Tranquila porque o chefe da segurança dele vinha armado, e nós tínhamos-lhe pedido - e ele acedido - que não haveria armas a bordo. Depois, aborreci-me porque ele nos disse que ia fazer uma visita à área, e eu sabia o que isso significava: sua majestade (como qualquer gestor português que se preze, de resto) gostava de se fazer esperar.

O quadro que nos tinham descrito também não era muito animador: 120,000 pessoas alimentadas por um Dakota diário que vinha, se não me engano, de Kisangani, e que não chegava a carregar três toneladas de alimentos - o que para 120,000 pessoas é pouco, muito pouco. A "pista de aterragem" era um bocado de estrada alcatroada com quatro metros de largura e com 1,200 metros de comprido - exactamente, ao metro, a distância necessária para o Dakota àquela altitude. Para além do avião diário, operado já não sei por quem, havia uma presença reduzida dos MSF - e era tudo. Estávamos portanto preparados para o pior - isto é, muito, muito tensos.

Quando chegámos à vertical da pista não queríamos acreditar no que víamos: ela era recta, sem dúvida, mas não era plana; fazia uma espécie de V invertido. Numa das extremidades (aquela onde devíamos aterrar) havia árvores de 30 metros de altura. E sobretudo, as pessoas, alertadas pelo barulho de um avião que lhes era familiar, e onde normalmente vinha a comida, começaram a aglutinar-se ao longo da estrada. E como os nossos pilotos nunca faziam uma aterragem numa pista que não conhecessem sem a medir primeiro, ainda tiveram mais tempo para se aproximar, esfomeadas.

A técnica de aterragem era simples: passadas as árvores deixar cair o avião o mais possível na vertical. Eu estava sentado no lugar do engenheiro de vôo, entre os dois pilotos. A estrada, ou pista, ou o que lhe quiserem chamar estava completamente atulhada de gente, com a primeira linha a tentar resistir aos empurrões dos de trás. A poucos metros do solo, o co-piloto, Andy, disse-me nos interfones:
- Luis, já viste um co-piloto a borrar-se de medo? - O Andy era forte, jogador de rugby, orgulhoso (uma vez utilizei o termo braai - Afrikaans para "churrasco" - e ele perguntou-me com que direito é que eu usava aquela palavra. Tive que lhe dizer que tinha vivido em Moçambique para o acalmar, e para ele me aceitar. Depois tornámo-nos quase amigos).
- Não, Andy, nunca.
- Então olha para mim agora. Já imaginaste quantas pessoas matamos se um pneu rebenta ao aterrarmos?

Não respondi: imaginava facilmente o que nos fariam se aquilo acontecesse. Mas enfim, lá aterrámos, numa pista da qual só víamos metade, o Andy e o piloto (creio que se chamava John, mas não tenho a certeza) quase de pé nos travões, os flaps a saltar das asas, o reverse no máximo, e nós a avançar sem vermos metade da pista; depois vímo-la e pensámos que nunca pararíamos a tempo - mas acabámos por parar, mesmo no fim, a meia dúzia de metros da areia onde nos tinham avisado para não ir porque ficaríamos enterrados.

Saímos todos do avião: o Governador para a sua volta - avisámo-lo que tinha 15 minutos 15, ele pediu 30, dissémos que não - e que partíriamos sem ele se ele não estivesse lá; os pilotos ficaram perto do avião: as pessoas não queriam acreditar que não tínhamos comida e os Dakotas eram iguais. Eu fui falar com a tenda da MSF, no alto do V invertido, cume de uma pequena colina de onde se via o espaço todo à volta - pelo menos até à floresta. E até onde se via só via cabeças, e mais cabeças, eram milhares, aglutinados como só os africanos sabem, a ponto de me interrogar como fariam eles para respirar.

A situação descrita pelas duas enfermeiras - pode ser que esteja enganado, mas creio que não havia médicos - do MSF correspondia à que nos tinham descrito em Kindu: três toneladas por dia era obviamente insuficiente para 120,000 pessoas; não havia medicamentos; elas não aguentariam muito mais tempo porque temiam pela segurança; e as pessoas morriam como peixes num rio poluído - depois fizeram-me uma lista de pedidos para a qual seriam necessários cinco ou seis Dakotas; de qualquer forma Lubutu ficava muito longe de Kindu - a capacidade de carga seria mínima; além disso, precisávamos do avião para as operações que tínhamos em curso; e eu lamentava muito mas não havia absolutamente nada que pudesse fazer.

Vinte minutos passaram e do Governador nem a sombra. O outro Dakota, o da comida, estava quase a chegar, e nós queríamos sair antes dele aterrar - as chegadas a Kindu à noite eram desagradáveis porque tínhamos que pedir, explicar de onde vínhamos, uma litania chata e humilhante - além de que era perigoso, e proibido, andar na cidade à noite. Mas o Governador não aparecia, e o T., que era o chefe da operação em Kindu / Shabunda, opôs-se terminantemente a que saíssemos sem ele. O Andy e o John foram falar com o outro piloto, e chegaram à conclusão que ele conseguiria aterrar - bastava empurrar o nosso avião um bocadinho para trás, mesmo para o limite da pista.

O que se passou a seguir foi, como tantas vezes, indescritível, e precisaria de um talento muito superior ao meu: o nosso avião, já de volta dada, nariz todo empertigado, numa das extremidades da pista; o outro depois de fazer a mesma aterragem que nós, mas com a massa de gente ainda mais compacta, a avançar contra o que estava parado; ninguém sabia se pararia a tempo: haveria pouco mais de cinco ou seis metros entre os dois aviões quando o segundo parasse. A minha conversa com as enfermeiras esmoreceu até parar de todo, e creio agora, mas é provavelmente imaginação minha, que o mesmo aconteceu a todas as conversas à beira da pista. A verdade é que só ouvia o barulho do avião, eu imaginava a força que os pilotos estavam a fazer nos travões e a tentar manter o avião direito, e via os dois aviões cada vez mais próximos, a olhar de alto um para o outro.

- Est-ce qu'il va s'arrêter, ce con? - perguntou uma das raparigas. - Est-ce qu'il va s'arrêter?

Parou. À distância prevista - mas agora ficávamos condicionados à saída dele; o Andy e o John, que tinham sido reféns do John Garang no Sudão, durante meses, estavam cada vez mais nervosos; o Governador não aparecia - e não havia mais nada para fazer ali. Acordei uma hora limite com os pilotos, à qual descolaríamos com ou sem Força Tranquila do Manyema; e mandei alguém buscar o gordo, ou pelo menos avisá-lo que nos iríamos embora sem ele (coisa que ninguém lhe diria, porque toda aquela gente tem um medo danado da autoridade).

O outro piloto acabou a descarga; os nossos foram para o avião pôr os motores a trabalhar para o aguentar no sítio quando o colega descolasse; dentro de 10 ou 15 minutos descolaríamos nós. Como nos filmes, o Governador aparaceu no último segundo do último minuto - mas trazia alguém com ele que queria, a todo o preço, embarcar. Os pilotos recusaram; o chefe da segurança começou a dar sinais evidentes de impaciência; o John e o Andy recusaram positiva, obstinadamente, embarcar uma pessoa a mais que fosse; o Governador tentava puxar o outro para dentro do avião; eu tentava fechar a porta - disse-lhes para arrancarem com a porta aberta, que a fecharia a tempo da descolagem, o que era impossível, claro. A confusão era total - e finalmente, ajudado pelo co-piloto, que deixara a cabine e viera cá atrás, conseguimos fechar a porta. Corremos os dois para os nossos lugares, com o avião já a rolar. A descolagem foi muito mais impressionante que a aterragem porque agora avançávamos em direcção a uma parede de árvores - para a qual avançávamos a descer e que passámos a rasar, a rasar.

Semanas depois soubémos que a MSF tinha deixado Lubutu, e que os IDPs tinham recomeçado a marcha para Sul; para a morte, a maioria deles.

Selecção natural

Quatro filhos, e os quatro bem sucedidos: podia matar-se; conseguira, pelo menos, enganar a selecção natural. "Não é muito, como sucesso, mas sempre é melhor que nada", pensava, a caminho da ponte.

Megalomania

Para ele, aspirar a ser uma pessoa normal era sinal de megalomania.

2.2.04

Memória

De súbito, deu por si a querer apagar-lhe da pele as memórias, e escrever outras, melhores.

Rouille de Calamars

Do livro "La Cuisine d'Amour", de Odile Godard, Ed. Actes Sud, 1985:

1 kg de lulas;
8 batatas;
1 cebola;
3 tomates;
3 colheres de sopa de azeite;
3 dl de vinho branco,
2 malaguetas,
Tomilho, louro.

Para o aïloli:

2 gemas de ovo;
2 dentes de alho;
1/3 litro de azeite.

Cortar as lulas aos bocadinhos, alourá-las ligeiramente em azeite; juntar a cebola picada, e o tomate cortado aos bocados. Quando tudo está bem refogado, juntar o vinho branco e igual quantidade de água a ferver. Temperar com sal, pimenta, malaguetas, louro e tomilho.

Deixar cozer 30 a 40' em lume brando. As batatas começam por se cozer à parte e juntam-se a este preparado para acabar de cozer.

Fazer o aïloli (é uma mayonnaise à qual se junta alho picado - se bem que também se possa fazer com batata cozida em vez das gemas de ovos); juntar 2 colheres de sopa por pessoa, depois de se certificar que as lulas não têm líquido a mais. Não voltar a levar ao lume. Deve ficar onctuoso.

Há quem faça mais complexo.

Não gosto muito de navegar no Mediterrâneo: ou não há vento ou há vento a mais, as transições são bruscas, violentas e sem pré-aviso; no verão os portos são caros e estão cheios, e no inverno estão vazios, mortalmente vazios. Mas, do Sul de Espanha ao Norte de África, passando pelo Midi, pela Itália, pela Turquia, pelo Líbano, sobretudo o Líbano, a cozinha das margens do Mediterrâneo é a melhor do planeta. Desta receita, prefiro a versão simples da Odile Godard à versão mais tradicional, com legumes, de que dou um exemplo.

Em Sète, de onde é originária. Com um Brassens nos ouvidos, a pele no sol, e um pastis na mão.

Música

"Le Musiche de Bellerofonte Castaldi"
Guillemette Laurens - Mezzo soprano
Le Poème Harmonique
Vincent Dumestre

Alpha 900

Alpha 2002

Mudar de casa

Mudo de casa, outra vez. Quem me dera fosse a última, antes da última.

Tarde demais?

Uma notícia na rádio "informa-nos" que no Iraque não há armas de destruição maciça. "Tarde demais para os Iraquianos", comenta a locutora. Claro, estavam sem dúvida muito melhor com o Saddam...

Prazeres da vela

Há cerca de ano e meio decorria uma regata em solitário, com escalas, à volta do mundo (Around Alone). Em primeiro lugar ia um suiço chamado Bernard Stamm, que passou as passas do Algarve para construir o barco e para conseguir um sponsor; em segundo ia uma rapariga inglesa chamada Emma Richards; em terceiro estava o Simone Bianchetti, que viria a morrer 3 meses depois da regata, felizmente longe das câmaras de televisão.

To cut short: pouco depois da largada o Simone partiu o mastro; o Bernard deu-lhe o mastro de reserva que tinha e a Emma pôs-lhe à disposição a logística para que ele conseguisse recomeçar a regata o mais depressa possível.

É como no futebol, não é?

1.2.04

A primeira vez

Hoje ia sendo, mas não foi, a primeira vez que um dia passava sem que um post fosse enviado para o Don Vivo.

Isto traz-me à ideia um problema no qual pensei muito: qual a data que marca, verdadeiramente, o início de uma relação afectiva? Claro que quando se trata de um casamento, é fácil; no tempo em que se pedia namoro, também: "começámos a namorar no dia tal, quando lhe pedi namoro e ela disse que sim, Benjamin"; mas nos nossos tempos isso é mais difícil.

Por mim, cheguei à conclusão que a data do verdadeiro início de uma relação devia ser a da primeira noite em que se dormiu com o ser amado e não se fez amor. É o dia (ou a noite) em que não só sabemos que aquilo está para durar (sem jogo de palavras), mas também damos provas disso.

Claro que vão dizer que não passo de um calvinista asceta, o que não é de todo verdade...

Prazeres da vela

Ao menos nós, quando morremos, não temos milhares de pessoas a ver-nos, televisões a filmar e a repetir as imagens ad nauseam.

Fazêmo-lo em sossego, longe de tudo (e de todos quando navegamos em solitário).

Eric Tabarly, Loïc Caradec, Alain Colas (a lista é muito longa).

(Retiro o Joshua Slocum: no tempo dele ainda não havia televisão...)