30.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 30-10-2020

Saio de casa «cedo» (aspas porque oito e meia é tudo menos cedo). O dia está lindo, azul menos claro, azul a meio caminho do escuro. A temperatura é de nove graus, estimulante, eléctrica. Consigo andar a um passo quase normal. Ainda não é o passo estugado do costume, mas é suficientemente rápido para me deixar pensar que a tendinite acabou. Vou para a outra margem do Ródano: um passeio de vinte, vinte e cinco minutos durante o qual revejo ruas que me são bastante familiares (de resto tenho-as visto ultimamente, andei para aquelas bandas). O fecho éclair do passado e do presente abre e fecha-se, levado pela mão da memória. São as zonas ricas da cidade, as ruas das Prada, dos Boss, dessas marcas que tão pouco ou nada me dizem. A moda infantil deve estar virada para vestir as crianças como se fossem adultos em miniatura. É abominável. Todas as modas o são, de resto. Só o mau gosto - ou a sua ausência - precisa da bengala da uniformidade. O bom gosto não muda, ou então muda devagar, quase imperceptivelmente. 

Ontem entrou em vigor a norma das máscaras na rua, mas poucas são as pessoas que as usam.

À tarde, outro passeio: fui buscar a cadela ao «cabeleireiro» canino. Esta antropomorfização dos animais repugna-me, mas pouco há a fazer. Fica para o outro lado da cidade, mais popular. São duas da tarde, a temperatura está «acima da média da estação», como dizia ontem o senhor da meteorologia na televisão. Fico contente: não é todos os dias que o aquecimento global está onde eu estou. Infelizmente, fica pouco tempo: para a semana voltam as temperaturas da época e a chuva.

Estou no fundo de um poço fundo, mas por milagre a luz chega até onde estou. Por quanto tempo? Este aquecimento local e interno acabará em breve, eu sei. Iremos para outras bandas mais obscuras, a maré baixa e eu. Que se lixe. Há que aproveitar, como vamos aproveitar este fim-de-semana, como aproveitamos estes momentos. Não se pode adiar o presente nem antecipar o futuro nem reviver o passado, mas pode-se fazer pontes entre eles, por breves, frágeis e incertas que sejam.

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Foi a vez de o namorado da H. ficar doente. Ao contrário dela, tem os sintomas todos, está mal, cheio de tosse e de dores de cabeça. «É um homem«, explica-nos a jovem com um encolher de ombros (implícito, ao telefone não se vê).

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Amanhã é dia de mais um passeio ao Jura. O maldito poço tem mesmo muita luz, desta vez.

28.10.20

Pergunta

Terão sido os media a trazer a política para a arena emocional? Ou pelo contrário foi essa deslocação que os fez começar a vender emoções em vez de vender factos?

Medo reconfortante

Perguntei a S. o que pode levar pessoas que presumivelmente não ganham nada de tangível com isso a instilar medo. No FB há vários, cheios de títulos, que se comprazem a assustar quem os lê. Usam informação truncada, números descontextualizados, modelos errados. O objectivo claramente não é infomar, é enformar.

Resposta: "há várias razões, mas a principal, provavelmente, é  que o medo cria dependência. Essas pessoas angariam uma corte de fiéis seguidores apavorados, que quanto mais medo têm, mais precisam de confiar em quem lho fornece." (Cito de memória.)

27.10.20

Conversa de café - Genebra, 27-10-2020

Os pequenos cafés de bairro são lúgubres, deprimentes, tristes, feios em todo o lado; Genebra não é portanto uma excepção. La Fleur de Champel, no bairro epónimo (um bairro chic, convém dizer) não foge à regra, com alguns predicados mais: o dono é mais antipático do que uma gárgula e como é espanhol tem a casa cheia de máquinas de jogos e uma vitrine com doces e salgados (esta é bem vinda, apresso-me a esclarecer: o folhado de salsicha é excelente, mesmo frio e a esta hora). O vinho da casa é Dão e bom, passe a redundância.

Ao meu lado, um senhor explica convictamente a uma interlocutora telefónica que «está no escritório» e «não, não está a mentir».

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 A sorte já me bateu à porta mais vezes do que eu acredito, quando penso nelas; apresenta-se como uma miúda gira, sorridente, mamalhuda, sexy como a Monroe e inteligente como a Basset (que também é sexy, de passagem seja dito. Talvez até mais do que a outra. Pouco importa. Isto não é uma crítica de misses). Escancara-se-lhe a porta e os braços e transforma-se imediatamente numa velha bruxa, desdentada e montada numa vassoura. Que fazer?

O melhor é empurrá-la para um quarto e fechá-la, sem nos assustarmos. Ela e o tempo lá se entendem, com altos e baixos. Ele não teme a fealdade. Às vezes fazem uma partida a três com o azar: «O tempo, a sorte e o azar encontram-se num quarto e fazem uma orgia» podia ser o começo de muitas biografias. Todas...

De tempos a tempos convém abrir a porta do quarto para o arejar, espreitar lá para dentro, entusiasmarmo-nos um bocadinho com as mamas da sorte ou as carícias do tempo. Bebe-se um bom rum, um bom absinto, olha-se bem para o quarto e deixa-se os três à solta. Eles lá saberão o que fazem. E não deixarão de no-lo dizer.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 27-10-2020

O Outono está aí, mai-las respectivas cores: azul claro, castanho, cinzento, verde, encarnado, amarelo, cinzento outra vez, azul claro... as temperaturas sobem e descem com as cores, pas de deux a muitos. A esta hora devia estar a navegar no meu P. e estou aqui, varado (no melhor dos varadouros possíveis, verdade seja dita). Mas o melhor dos varadouros não vale o pior dos mares, essa é que é essa.

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H. testou «positiva» ao Covid. Dez dias em casa a partir do aparecimento dos sintomas, o que significa seis ou sete dias agora. Os que me desejavam ter um familiar «doente» ficarão contentes. Eu continuo onde estava: nas tintas. A rapariga tem vinte e oito saudáveis anos (e belos, mas isso é outra história). Tudo o que espero é que a Covid passe depressa à categoria «vírus da gripe» e que não se passe o contrário: os diferentes vírus gripais passarem à categoria «Covid».

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Hoje o Sol apareceu e tenho de fechar os estores para escrever. Deve haver poucas contradições que me irritem mais, depois das contradições dialécticas de Marx, que esta: excesso de luz em Genebra. 

E ainda há quem duvide de que isto é uma cidade mediterrânica, disfarçada de calvinista para um Carnaval invisível.

26.10.20

Viagem pelo Mediterrâneo

Oiço Eleni Karaindrou, leio Goliarda Sapienza - L'art de la Joie é a melhor coisa que me passou entre as mãos em muitos muitos anos (pelo menos sob a forma de livro) - penso na minha Palma, tão longe e no meu P. que nela espera e digo-me que só o Mediterrâneo pode produzir esta mistura de arrepios, de sensualidade e de mistério, de profundidade e ligeireza. Da Eleni Karaindrou passo para Evanthia Reboutsika, penso em Pietra Montecorvino, no Gattopardo, Ezra...:

And then went down to the ship,
Set keel to breakers, forth on the godly sea, and
We set up mast and sail on that swart ship,
Bore sheep aboard her, and our bodies also
Heavy with weeping, and winds from sternward
Bore us out onward with bellying canvas,
Circe’s this craft, the trim-coifed goddess.
Then sat we amidships, wind jamming the tiller,
Thus with stretched sail, we went over sea till day’s end.
Sun to his slumber, shadows o’er all the ocean,
Came we then to the bounds of deepest water,
To the Kimmerian lands, and peopled cities
Covered with close-webbed mist, unpierced ever
With glitter of sun-rays
Nor with stars stretched, nor looking back from heaven
Swartest night stretched over wretched men there.
The ocean flowing backward, came we then to the place
Aforesaid by Circe.
Here did they rites, Perimedes and Eurylochus...

Nunca li os Cantos inteiros, mas cada vez que pego neles encontro qualquer coisa de que não me lembrava, ou que se adequa perfeitamente à situação, ou sei lá, me traz de volta à realidade e me faz pensar que nunca os lerei de fio a pavio e tenho a Modesta à minha espera na cama. 

Gostava de voltar a Atenas e às ilhas, tenho de ir à Sicília - o Princípe e a Modesta esperam - quero beber vermutes atrás de ouzos e à frente de pastis, comer moussaka e polenta e coniglio com azeitonas verdes acompanhado por Nero d'Avola. Quero tudo, menos outra vida. Esta chega-me.

Reedição - Irracionalidade (02-02-2008)

É mais fácil compreender (e frequentemente aceitar) a irracionalidade do que lidar com ela.

...........(26-10-2020)

Dois posts com alguns anos que vêm mesmo a calhar, nestes tempos de irracionalidade dominante.

Reedição - Irracionalidade II (02-02-2008)

A esmagadora maioria das pessoas é, obviamente, inteligente - mas é igualmente óbvio que essa mesma maioria é pontualmente capaz da mais total irracionalidade (infelizmente, a minoria em que a irracionalidade é permanente também é esmagadora).

Essa irracionalidade temporária, pontual, episódica tem várias origens: a facilidade (é mais fácil reagir cegamente a uma situação qualquer - agradável ou desagradável - do que tentar percebê-la); a ignorância (se se ignora a lógica que está por trás de um determinado comportamento e o percebe como "estúpido" - isto é, desprovido de razão - tende-se a reagir irracionalmente); ou o simples facto de sermos humanos - Edgar Morin, no volume 6 do "Método" (A Ética), diz "a compreensão racional objectiva, desumaniza*".

Se bem haja aqui um problema de lógica: o que é humano é a razão. Ser homem é pensar; não pensar é mais fácil, certo, mas porque será "mais humano"? Porque associamos a humanidade ao erro, à emoção, à irracionalidade, quando é justamente o sermos capazes de nos libertarmos deles que nos define como homens? Estamos mais perto da verdade quando igualamos um comportamento irracional a um comportamento animal.

- a citação é de memória, será verificada posteriormente.

25.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 25-10-2020

Tínhamos previsto ir ao Jura e fomos. Não pensáramos foi ir a Bassins, onde vivemos até eu decidir que estava intoxicado de clorofila, alérgico à fotossíntese e daltónico ao verde e que na cidade é que se respira bem. Dois anos, findos os quais peguei numa carta de Genebra, tracei-lhe o centro geométrico, desse ponto desenhei um círculo que delimitava uma distância de dez minutos a pé e disse «É dentro deste círculo que vamos viver». A proposta foi aceite e voltámos para a cidade, a cerca de três minutos a pé da universidade onde S. uns anos depois daria aulas, a cinco da Plaine de Plainpalais, a dez do Bâtiment des Forces Motrices, que então ainda não era o teatro de ópera que hoje é.

Não sei que dizer. Quando é que o passado e o presente se separam, como os dois lados de um fecho éclair ou uma folha de papel que se rasga em dois, após cuidadoso vinco feito com uma régua?

Bassins foi dos sítios mais bonitos onde até hoje vivi. A casa era ao lado do templo, um velha quinta reconvertida, com uma vista de tirar o fôlego para o lago e para os Alpes. Do outro lado, começa o Jura, que prefiro aos Alpes. Estávamos a oitocentros metros de altitude, acima do banco de nuvens que no Inverno cobre Genebra: era raro o dia em que tínhamos nevoeiro. Quando íamos para Genebra, sentíamo-nos como quando de avião se desce para o aeroporto depois de uma viagem ao sol. A H. foi baptizada no templo da aldeia - tenho um filho católico e uma filha protestante, réplica nem totalmente voluntária nem completamente involuntária do casamento. (Encontrar um padre que aceitasse casar-nos foi um sarilho...)

Há uma doçura, uma paz, uma plenitude nestas paisagens jurassianas que são difíceis de descrever. A terra é fértil e exala tranquilidade. No Outono basta andar um pouco e sentimo-nos no Canadá. Bassins é o princípio do Jura (do lado Sul) e o seu flanco Leste. Para oeste fica a Franche-Comté, terra de orgulhos e de lutas, passagem preferida para a Suíça durante a guerra. Perder-se no Jura é a mais pacificadora das experiências. Os Alpes são agressivos, estimulantes, excitantes. São o café. O Jura é o chá.

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O governo federal está a deixar os cantões tomarem as medidas que entendam. A comunicação social acusa-o de moleza, de intervir tarde e por aí fora. Mesmo assim, é muito mais comedida na distribuição de pânico do que a nossa. Pelo menos aqui na Suíça-francesa. Nas outras não sei o que se passa, nem quero saber. Só espero que isto acabe depressa e encontrar-me no meio do Atlântico a bordo do meu P. do meu coração.

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É lamentável que tantos casais divorciados se zanguem de morte. Não sabem o que perdem: a amizade pós-conjugal é fascinante e complexa. Fica algures no meio de um triângulo composto pelo amor que foi mas não desapareceu, a amizade que o substituiu e a cumplicidade que nasceu do encontro dos dois. 

Felicidade, melancolia

- Doutor, tenho a felicidade melancólica e a melancolia feliz. É grave?

- Se não se misturarem não é.

24.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 24-10-2020

Já aqui falei várias vezes da rouille de calamars e até já deixei uma receita.  A de hoje ficou perfeita no mais difícil (equilibrar o sabor do alho e das outras especiarias) e imperfeita no molho, ligeiramente líquido de mais. Ninguém notou, excepto eu. Vale que éramos só dois. Já a açorda alentejana ficou melhor, apesar de o pão ser genebrino e não alentejano. Fi-la pilando os coentros e o alho, como fazia a minha avó Carlota, que era de Estremoz e para além de cozinhar bem fazia uma excelente ginginha (pelo menos creio. Não tenho a certeza. Já lá vão mais de cinquenta anos). Pilava aquilo (coentros a que tinha retirado os caules, alho, um bocadinho de azeite, sal) e pensava que a porcaria das máquinas estragou tudo. Dão-nos tempo e tiram-nos o gosto, o prazer de mexer na comida com as mãos, o olfacto e os olhos. A comparação é velha, eu sei, mas não está gasta: fazer amor só é melhor do que cozinhar porque a comida não fala (bom, reconheço que haverá mais meia dúzia de terminações nervosas envolvidas, mas isto é uma litote e que se lixem as terminações). As lulas e a açorda estavam felizes e quem as comeu também e as analogias páram aqui.

A parte líquida da coisa tão pouco deixou a perder: absinto Artemisia antes, Dôle Blanche durante e rum Damoiseau depois. A bebida está para a comida como a inteligência para o amor: pode fazer-se sem, mas com é melhor. (Hà uma diferença: a inteligência nunca é de mais.)

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Depois das compras hebdomadárias fomos passear ao campo. Foi um passeio curto, local. Amanhã vamos ao Jura vizinho. Antigamente, o passeio semanal era ao domingo. Escolhíamos o destino alternadamente. O meu era sempre o mesmo: a beira lago. As crianças detestavam, mas eu não me deixava impressionar porque também detestavam o campo e uma vez fora de casa gostavam de tudo o que viam. Hoje escolheria estes campos limpos, arrumados, lisos. Estávamos no fim do dia e a Lua já estava bem visível. Quarto crescente muito claro, límpido. O campo em Genebra está em Genebra, ou quase. Não há arrabaldes nem longas estradas cheias de fábricas e de casas horríveis antes de lá chegar. Genebra é uma vasta planície entalada entre os Alpes e o Jura e víamos os dois. Ao longe, o Monte Branco, mais perto o Salève, no meio nós esta lisura monocromática que a cadela percorria aos saltos e a galope, atrás de hipotéticos ratos. As propriedades não têm muros, pode-se atravessá-las a pé, a cavalo, de bicicleta. Não há barulho e a Lua diz-nos que amanhã estará maior, mais tarde menor e pode substituir-se um e outro por melhor e pior que o resultado é o mesmo: hoje estamos bem, amanhã pior, depois de amanhã melhor e por aí fora, sem fim. Mudam as marés, nós não. 

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Mesmo não estando de acordo com o que se passa na Suíça em relação ao vírus, é difícil não apreciar a diferença de atitude com Portugal, Espanha e França. As televisões apresentam sistematicamente os dois lados da questão, mesmo estando claramente enviesadas para a narrativa oficial. Mediática também, é preciso dizê-lo: esta narrativa é dos media antes de ser dos governos. São eles que nos dirigem, no fundo. Histeria mediático-facebookiana e os governos são obrigados a reagir. Será possível retirar um bocadinho de poder ao quarto poder? Só ensinando as pessoas a ler e a ouvir, mas isso é complicado porque elas pensam que já sabem.

22.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 22-10-2020

Tenho encontro com a G. nos Bains des Pâquis, onde no Verão de antigamente as miúdas vinham mostrar as mamas e os maricas o peito. Não sei como está no Verão de agora. Hoje, Outono, o lugar está medonho de melancólico, tão medonho e tão triste que não consigo impedir-me de gostar disto, desta luz que não sei bem se é luz se claridade, deste silêncio sepulcral, destas janelas que estupidamente cortam a vista para fora com um desenho de vagas e gaivotas a traços brancos - "Se fossem de cor seria pior", penso. Quando trabalhava no Intermaritime vinha muitas vezes aqui, não só por causa das mamas das miúdas mas também porque parecia o estrangeiro. G. (que entretanto chegou) diz-me que o lugar lhe lembra Cabanas de Tavira, coisa que só demonstra o poder mnésico dos opostos. Diametral, visceral, ontologicamente opostos. Mas não há dúvida de que os Bains têm qualquer coisa de fora do tempo, fora do espaço. Há uns anos queriam demoli-los e foram salvos por um iniciativa popular. A democracia directa tem inegáveis vantagens. 
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Chove outra vez. Vai chover o resto da semana, vai chover o resto da vida. Infelizmente não é desta chuva que preciso, é da outra.

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Um vírgula três litros de vinho, dois pratos de carne seca dos Grisons e um prato de queijo mais tarde (as comidas foram divididas por um vírgula um, G. a comer parece uma daquelas máquinas debulhadoras nas planícies americanas) volto para casa, à sombra da mesma chuva miudinha com que fui para lá. Há muito que não passo tanto tempo em Genebra e saio pouco: o passeio de hoje foi uma visita ao passado, o reencontro com o prazer de andar à chuva quando ela é comedida, suíça - e uma interrogação: quantas cidades há no mundo nas quais me reencontro? Comigo, com a arquitectura, com o passado em carne viva? Lisboa, Genebra, Palma; uma parte da cidade do Panamá, três ou quatro arrondissements em Paris, idem em Londres; S. Luís do Maranhão, a agora Maputo, Cape Town, Bujumbura, Lubumbashi... Caracas, Rio estão demasiado longe, não reconheceria nada. Isto não é um vida, é um caleidoscópio partido e espalhado pelo chão. Não admira que passe a vida a olhar para trás, a reconstituir isto tudo.

Como se fosse passível de reconstituição.

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 A Suíça prepara-se para um «semi-confinamento». Sabê-lo-emos de hoje a oito. Isto é desesperante. O que varia são os graus de loucura, não a loucura em si mesma. Arrependo-me de não ter ido para a Suécia há quarenta anos, quando uma miúda loira e bonita (e americana) me desafiou. «És o homem mais extraordinário que até hoje conheci», dizia-me numa carta que reencontrei - tantos reencontros - há pouco tempo. 

Não acreditei e não fui (além de que era ainda mais frio do que a cidade onde então estava, que já o era bastante). Mais extraordinário ou mais cobardolas? Talvez simplesmente mais estúpido, mas ela confundia tudo e eu não percebia nada.

21.10.20

Breve tratado de teologia insomníaca

Porque é que todas as religiões precisam tanto de culpabilidade e de auto-flagelação? É um dispositivo da submissão: somos culpados, temos de nos redimir. Seja com a jihad, seja com a penitência ou com o desapego, temos de mudar o homem que há em nós.

As novas religiões seculares herdaram esses mecanismos. Sem eles não seriam religiões e nao atraíriam fiéis. A antropogénese das mudanças no clima - uma coisa  que muda desde que existe e existe muito antes de haver humanidade (e mesmo que seja fruto do nosso pecado, a ideia de que talvez seja melhor adaptar-nos, como a humanidade tem feito desde que existe, é ela mesma pecado); a santa igreja dos terraplanistas da Covid, que "conseguiu" aplanar a terra e pensa que consegue fazer o mesmo ao vírus, com o êxito que está à vista; a santa igreja da natureza - cujo Livro não é, infelizmente, La Méthode, de Morin; o comunismo, que tem na propiedade privada o seu pecado orginal e se propunha criar o homem novo e dar-lhe amanhãs radiosos (esta resolveu abolir todas as outras, chamando-lhes ópio, porque é contra a concorrência)

Este dispositivo de auto-ciliciação coabita com uma húbris de tamanho igual e sinal contrário: o homem pode tudo, desde mudar-se a si próprio a mudar a natureza. Somos deuses, que diabo! (Ou imagens Dele, para alguns.) Para que serve sermos deuses se não conseguimos sequer mudar o clima, parar um vírus ou proteger a natureza?

Ainda me hão-de ver a acender velas na igreja. Não que me tenha convertido, mas para que a Igreja Católica Apostólica Romana, os Adventistas do Sétimo Dia ou as duzentas e cinquenta e quatro fomas de protestantismo recuperem as suas "ovelhas" (aspas porque cito).

(Já todos ficaríamos a ganhar - ou pelo menos manteríamos as cabeças em cima dos pescoços e não ao lado - se uma das religiões do Livro perdesse alguns fiéis, mas isso é outra história.)

O ateísmo - paradoxalmente, sem dúvida - é a única "religião" (aspas porque ironizo) que não faz mal a nada nem ninguém e põe o homem no seu lugar: a periferia do universo.

18.10.20

Anarquia, álcool e eleições

Fiz uma eleição interna para escolher a melhor bebida polivalente, todas as categorias incluídas. Como tenho andado a beber um absinto extraordinário, produção artesanal, daquele que fica verde quando se lhe põe a primeira pedra de gelo, 68º - sim, leram bem, sessenta e oito graus - tenderia a escolher este: Absinto Angélique, produzido por Artemisia, Distillerie Artisanale no Val-de-Travers, Suíça.

Na realidade o exercício é filho do ócio, claro. Precisaria de pelo menos um milhão de eleitores para ter uma resposta válida. Os três ou quatro que trago em mim não chegam. Runs, vinhos - a família toda, dos verdes brancos aos eiswein -, whiskies, aguardentes - vínicas ou de frutas, mirabelle à cabeça, ex-aequo com o medronho - vermutes, cervejas, tequilas, vodkas, liquores, bebidas regionais - ouzo, pastis, Très Caires, raki, arak, o Mei Kwei Lu... A única coisa que nunca consegui beber - ou melhor, de que nunca consegui gostar - são aqueles destilados e fermentados africanos e as aguardentes chinesas com cobras e lagartos lá dentro. (Já de mezcal sou fã, incondicional e para sempre, apesar da monumental, histórica e vergonhosa bebedeira que com aquilo apanhei em Jo'burg.)

Como eleger uma? Bebe e cala-te.

Reedição - Vinte mil vezes, 25-04-2007

 “Take any bird and put it in a cage
And do al thyn entente and thy corage
To frostre it tenderly with mete and drinke
Of alle deyntees that thou canst bithinke
And keep it al-so clenly as thou may
And be his cage of gold never so gay
Yet has this bird by twenty thousand fold
Lever in a forest that is rude and cold
Gon ete wormes and swich wrecchedness.”

Geoffrey Chaucer, Maunciples Tale


(Pega em qualquer ave e mete-a numa gaiola
E usa todo o teu empenho e todo o teu coração
Para ternamente a nutrires com alimento e bebida
De todas as requintadas iguarias que consigas imaginar
E mantém-na também tão limpa quanto possas
E não possa a sua gaiola de ouro ser mais alegre
Mesmo assim vinte mil vezes preferirá essa ave
Voar numa floresta inclemente e fria
Comer vermes e tais porcarias)

 in Ultramarina, Malcolm Lowry, col. Dois Mundos, ed. Livros do Brasil. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues, com esta nota:

 “Sem ter a pretensão de traduzir poesia, nem tão-pouco de ser entendida em inglês medieval, atrevo-me no entanto, para esclarecer o leitor na medida do possível, a dar uma tradução aproximada dos versos de Chaucer, penitenciando-me, desde já, de possíveis inexactidões.”

Da pulhice e do autoritarismo

Faço parte daquele grupo de pessoas que pensa que se Salazar tivesse organizado eleições tê-las-ia ganho todas. Na minha opinião, isso não deixa de fazer do homem um governante autoritário. Já para o nosso Primeiro-Ministro não é assim. Salazar não era autoritário. Era um democrata. 

António Costa é um pulha. Política e - cada vez o suspeito mais - pessoalmente..

17.10.20

Vingança?

Ao contrário do que todos pensávamos, a comunicação social não está morta e para o provar resolveu matar meio mundo.

Ontem, hoje, amanhã

Nunca acreditei muito nessa coisa de a vida ser o dia de hoje. Let's forget about tomorrow é uma linda canção - sobretudo quando cantada por Peggy Lee - mas é isso mesmo: uma canção. Viver cada dia dia-a-dia é simultaneamente um objectivo bonito, impraticável - excepto pelos muito ricos e pelos muito pobres - e uma tanga zen, exequível num mosteiro ou nos livros de autores californianos.

Sem ontens não há hoje que se aguente; sem amanhãs não há hoje que faça sentido.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 16-10-2020

O Outono já aí está, depois de muitas hesitações. Dias "quentes", nublados e limpos, Sol ora sem a máscara das nuvens ora com ela posta até aos cabelos. Às vezes pinga, outras chove - chuva mansa, não se sente, não se vê, não molha; hoje foi dia de bise. Amanhã vai cair, diz o meteorologista.

O mais extraordinário apresentador da meteo que vi numa televisão: há meia dúzia de dias mostra uma carta cheia de sóis e diz:

- Isto é o que todos gostaríamos de ter amanhã de manhã. Infelizmente, não sabemos se é o que haverá ou se nuvens  altas virão cobrir o Sol. Só amanhã saberemos. 

Que honestidade! Que beleza! Que belíssima admissão da incerteza das previsões meteorológicas. Era do dia seguinte que ele falava não do tempo dali a uma semana (não sei se por ele se pelo previsor de Météo Suisse, mas pouco importa), 

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A Arte da Alegria, de Sapienza Goliarda, parece uma continuação do Leopardo. Uma espécie de "o Príncipe veio à cidade". Ou "o Príncipe ressuscitou quarenta anos depois da mais bonita valsa da história do cinema". O livro é extraordinário, mas como ainda nem a meio estou (é um calhamaço de oitocentas páginas) reservo-me e espero para ver. Daria uma fantástica série de televisão, isso é seguro.

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A Suíça - até a Suíça - cede à histeria dos «casos». Mas sendo o que é, cede calma, reflectidamente. Ontem na televisão (canal principal, telejornal) até um crítico - em Portugal seria um "negacionista" - (aspas para assinalar o escárnio com que uso este termo) entrevistaram. A curiosidade é que é a pessoa que dirigiu a luta contra a pandemia até há bem pouco tempo. Entretanto, o governo federal cria uma célula para centralizar as coisas e os cantões opõem-se. Na televisão, a presidente da Confederação diz "O nosso modelo negativo é a França. Não queremos fazer aquilo que eles estão a fazer, porque prejudica a economia e não resolve a pandemia" (a citação não é verbatim).

Isto dito, a Covid também aqui tem contornos políticos curiosos. Há uns tempos o cantão de Zurique queria obrigar as prostitutas a tomar nota do nome, número de telefone, morada e duração das "operações" de cada cliente. Duvido que tenha passado - a verdade é que continuo a ver televisão só muito esporadicamente - mas depois ficou a saber-se que aquele delírio foi o resultado de uma luta entre o governo cantonal e o principal partido da oposição. 

Luta antiga - os zuriquenses (?) herdaram mais calvinismo do que Genebra. No princípio dos anos oitenta a cidade era praticamente governada por uma Frauengesellschaft (ou coisa que o valha. Significa "Sociedade de senhoras") que punha e dispunha em tudo o que era diversão e vida nocturna. As discotecas, por exemplo, não podiam vender álcool. Era preciso comprar-se as bebidas no exterior e para entrar pagava-se uma "rolha".

Escusado será dizer que em termos de luta contra o consumo excessivo de álcool não funcionava muito bem: pelo preço de uma bebida comprava-se uma garrafa, que alguns bebiam pelo gargalo para não pagar os refrigerantes ao balcão. O ambiente era horrível, as bebedeiras alastravam como a carga de uma manada de bisontes, o cheiro insuportável - mas mesmo assim foi preciso uma série de iniciativas para pôr fim às garras das senhoras na vida de cada um.

(É um fenómeno generalizado nas crenças, semelhante ao dos apóstolos da Igreja de S. Covid dos Dias do Meio: dão mais peso àquilo em que acreditam ou ao que gostariam que fosse do que à realidade. Infelizmente a praga da histeria não vai lá com iniciativas populares.  Se em Portugal houvesse um referendo, ficaríamos todos presos em casa, escolas fechadas, comida distribuída e rendas pagas por Santo Estado até pelo menos dez anos depois do aparecimento das primeiras vacinas. "Os portugueses são hipocondríacos",  diz-me S. - Os psicólogos são falhos em vocabulário. Não têm a palavra cobardes, por exemplo. Para dizerem burrice, em contrapartida, usam um eufemismo bonito: inteligência concreta.)

Hoje não vi as notícias. Deixemos para amanhã o que não podemos resolver hoje ou o que herdámos de ontem. Dito de outra forma: amanhã que se desenrasque.

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O P. continua a avançar à velocidade de uma gota de água numa tortura chinesa, pingo a pingo. Espero que a chuva venha depressa.

Isto dito, na verdade estes dias em Genebra têm sido um bênção. Mal saio de casa e com excepção de semana e meia de cadela agarrada aos tornozelos, tenho avançado em várias frentes. A tendinite parece que cedeu, mas não quero deitar foguetes antes da hora.

Sinto-me como se estivesse a jogar um puzzle em que as peças fossem magnéticas e se atraíssem caoticamente. Mas aos poucos vão encaixando correctamente umas nas outras, sem que se perceba porquê. 

(E muita sorte tenho eu. Olha se fosse uma das peças e não o jogador... 

Na verdade sou uma das peças, mas enfim. Fiquemo-nos por aqui que ficamos bem.)

16.10.20

Os dias do dia

Dias suíços: tranquilos por fora, uma ebulição por dentro. 

15.10.20

GENEBRA NO OUTONO - Gazeta Rural nº 372

    Genebra outonal está como sempre esteve e estará pela próxima centena de anos: chuvosa e branca, não de neve mas porque a luz aqui é cinzenta e acinzenta tudo o que ilumina. Escapam as árvores que mudam de cor e passam dos verdes para todos os tons na faixa dos encarnados e alguns parques, cujo verde beneficia com a chuva. O resto é cinzento. 
    Superficial, verdade seja dita. A Suíça em geral e Genebra em particular fazem-me lembrar aquelas pessoas pudicas, castas, tímidas em público e que na intimidade se revelam outras. O problema na Confederação é encontrar-lhe a intimidade. Os suíços são hospitaleiros, recebem bem os estrangeiros – as iniciativas xenófobas perdem mais vezes do que ganham, não há país que eu conheça onde seja mais fácil ser estrangeiro – mas só até certo ponto. A partir do qual é preciso querer, escarafunchar, procurar. Uma vez lá chegados, encontra-se um mundo fervilhante, aberto, curioso e – não despiciendo - com dinheiro para o ser. 
    Cheguei a Genebra em 1983. Inscrevi-me numa associação que disponibilizava equipamento vídeo, actividade a que me dediquei quase seis meses. Deu-me poucos e irregulares proveitos, diverti-me bastante, fiz um vídeo policial – péssimo, mas o argumento defendia-se; fui trabalhar para um café «diferente» (as aspas servem para explicar que não sei explicar o que é «diferente», apesar de ser capaz de o descrever.) Foi nesse café (o Marchand de Sable, que ainda existe mas deixou de ser «diferente») e nessa associação de vídeo – o Videographe de Genève – que comecei a ver Genebra por dentro. Já conhecia parte da Suíça: passara dois anos em La Chaux-de-Fonds - uma cidade da indústria relojoeira que atravessava uma profunda crise devido ao quartzo dos japoneses - e seis meses em Zurique. Mas durante esses tempo todo estava de passagem, por assim dizer; à superfície: entre 1979 ( o ano da minha chegada a la Tchaux, como é conhecida) e 1983 (quando cheguei a Genebra) vivi um ano em Aveiro, fiz uma viagem de ida e volta a Moçambique num navio da marinha mercante, passei uns largos meses em Atenas e ia frequentemente (mês sim mês não) a Itália, onde passava o tempo necessário para gastar o dinheiro que tinha ganho no mês anterior. Ausentava-me para fazer regatas ou transportes, vivi uns meses em Dunquerque... Acabava sempre por regressar à Suíça, mas o que me fazia regressar não era nenhum sentimento especial pelo país – era o facto singelo de ali ter sempre trabalho, fosse ele qual fosse. Trabalhei numa quinta, limpei neve dos telhados, fiz limpezas, lavei pratos, trabalhei num albergue de juventude (hoje seria um hostel), mudei casas – enfim, o recheio – e convivi um pouco com essa Suíça subterrânea, a Suíça dos marginais, dos alternativos, dos «artistas» em potência. 
    Mas foi em Genebra – e no amor que ali encontrei e me levou ao casamento e à paternidade – que comecei real e seriamente a perceber a Suíça. Um país mais pequeno do que Portugal dividido em vinte e seis países com governos, polícias, sistemas fiscais, quadros jurídicos, sistemas escolares diferentes; um país onde quatro vezes por ano há votações, seja para referendar as propostas dos diferentes governos, seja para fazer aprovar iniciativas populares; um país, enfim, onde quatro línguas (em teoria. Na prática são três) coabitam e se entendem melhor do que em muitos outros mono-idiomáticos. É preciso imaginar a Suíça como um quadro inflexível e rígido dentro do qual há enorme liberdade. Para quem, como eu, vive de e para a liberdade pode parecer estranho, inicialmente. Depois torna-se atraente. Basta envelhecer. 
    Mas voltemos a Genebra, cidade calvinista com um bairro católico (ou freguesia, para os mais picuinhas), cidade de camadas como um mil folhas, dos restaurantes de todo o mundo... Isso é por causa das «Organizações», como são colectivamente designadas a ONU, respectivos apêndices, ONG e tudo o que lhes gira em torno. Feche-se os olhos e aponte-se ao acaso para um mapa-mundo. Ponha-se de parte o facto irrefutável de que se tem mais probabilidades de cair no oceano do que num continente. Pois bem: se o dedo cair em terra, há muitas probabilidades de Genebra ter um restaurante do país no qual o dedo aterrou. E quem diz restaurantes diz mercearias, cabeleireiros, igrejas ou cafés. Portugueses então nem se fala: somos o maior grupo de imigrantes, com aproximadamente quarenta mil pessoas, vinte por cento dos estrangeiros. Uma viagem de autocarro ou eléctrico nesta cidade é uma espécie de volta ao mundo linguística. Quando cá vivia, gostava de experimentar restaurantes desses países menos conhecidos: Etiópia – por cuja cozinha  viria mais tarde a apaixonar-me, no Burundi, porque havia um grupo de Etíopes que trabalhava para nós como condutores e me convidava para as suas festas – Coreia e por aí fora. Hoje sinto menos a falta dessas expedições culinárias, mas continuo a gostar destas ruas babelianas, da sobriedade da arquitectura, do desinteresse polido que marca as interacções pessoais. 
    E da oferta cultural, da quantidade de livrarias, da música das Rues Basses ou dos cafés de Carouge, de ir passear nas margens do lago, da suavidade dos eléctricos, da pontualidade e da riqueza dos transportes públicos... Genebra é uma cidade arrumada (apesar de ser provavelmente a mais «desarrumada» da Suíça, a mais «mediterrânica»). Quando se chega a esta cidade gosta-se dela por umas razões e anos mais tarde o que nos seduz são outras, completamente diferentes mas mais profundas, mais verdadeiras. Não é uma cidade de sentidos, é uma cidade de razão. Não é de paixões, é de amor. 

14.10.20

Põe uma pedra / uma pedra nessa infância [1] (23-09-2005)

De repente são oito e meia da noite, está escuro lá fora e apercebes-te de que tudo acabou: o Verão, o nosso amor, os planos que fizéramos para o inverno, as carícias de uma – e numa – noite quente. O vento é frio, cortante, estimulante e finalmente puseste uma pedra nesse passado. 

[Adenda, 14-10-2020: Tantos passados, tantas pedras. Podias fazer um muro à volta da tua vida, com elas.]

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[1] (Manuel Gusmão).

 

12.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 12-10-2020

Hoje ao jantar bebemos a garrafa de Haut Marbuzet que o Th. e a A. me ofereceram há meia dúzia de meses. Um dia, uma amiga perguntou-me «Como curas as tuas depressões?» «Farto-me delas», respondi. Desta vez seria mais correcto dizer que me farto de não fazer nada, ou de não fazer o suficiente, como há mais de uma semana não faço. Só lamento não poder celebrar  sempre a partida da cadela negra com este vinho, mas enfim. Não se pode ter tudo. «Pode ter-se muito», não me canso de repetir-me. «Mas não se pode ter tudo. Contenta-te com o muito, por muito que te pareça pouco ou nada.» 

Esta luta com a cadela não terá fim, eu sei. Tem intervalos, pausas mais ou menos longas, desvios. Mas fim não terá. Pelo menos aprendi a viver com ela, vá lá. É como se a tivesse amestrado, cadela bem educada, au pied e ela vem, à ta place e vai-se embora. Deliro: não sou eu quem a chama. Nunca chamei. Que se lixe a malvada da bicha. Amanhã desata-me as mãos e as ideias, vai passear para outras paragens, urinar outras relvas. Deixa de ser ela a passear-me, ou imobilizar como se quem precisasse de fazer xixi fosse eu e não ela.

Estou em Genebra como no meio do Atlântico, ou sozinho numa alpage, com um diferença: aqui tenho o passado mobilado. Um bocado desorganizado, é certo, mas mobilado. Tenho de arranjar tempo para pôr isto tudo em ordem. Uns anitos chegarão, de certeza.

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Não vejo os «miúdos» todos os dias, mas pelo menos estou perto deles. Não-ver de perto é melhor do que não-ver de longe. Curioso que tenha precisado de uma vida para perceber esta verdade tão simples, não é?

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Tenho dois peitos de frango a assar no forno a cem graus. Calculo que quando a garrafa acabar  estejam prontos. Receita mais ou menos inspirada numa coisa que vi no NYT e não reli. Retive o açúcar castanho, os orégãos e a paprika. Já estava a marinar em sumo de limão, alho, sal e sálvia. Espero que isto tudo resulte equilibrado. Os contrários encontram-se, etc. Vem no Livro dos Desencontros, que um dia escreverei. Quando me encontrar?

[Enganei-me: a garrafa acabou e o frango não dá sinais de vida.]

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Os meus dias começam todos com o P. Nunca são bons começos, mas apesar disso estou-lhe grato: antes maus começos do que nenhum.

9.10.20

Reedição - Vive la France! III - Joseph de Maistre (23-04-07)

Os reaccionários têm, sobre os revolucionários, a vantagem de nunca se desactualizarem. 

«Je n'y comprends rien, - c'est le grand mot du jour. Ce mot est très sensé, s'il nous ramène à la cause première qui donne dans ce moment un si grand spectacle aux hommes: c'est une sottise, s'il n'exprime qu'un dépit ou un abattement stérile. 
(...) 
On a remarqué, avec grande raison, que la révolution française mène les hommes plus que les hommes ne la mènent. Cette observation est de la plus grande justesse; et quoiqu'on puisse l'appliquer plus ou moins à toutes les grandes révolutions, cependant elle n'a jamais été plus frappante qu'à cette époque.
(...) 
Chaque nation, comme chaque individu, a reçu une mission qu'elle doit remplir. La France exerce sur l'Europe une véritable magistrature qu'il serait inutile de contester, dont elle a abusé de la manière la plus coupable. Elle était surtout à la tête du système religieux, et ce n'est pas sans raison que son Roi s'appelait très chrétien: Bossuet n'a rien dit de trop sur ce point. Or, comme elle s'est servie de son influence pour contredire sa vocation et démoraliser l'Europe, il ne faut pas être étonné qu'elle y soit ramenée par des moyens terribles.» 

«Les scélérats mêmes qui paraissent conduire la révolution, n'y entrent que comme de simples instruments; et dès qu'ils ont la prétention de la dominer, ils tombent ignoblement. Ceux qui ont établi la république, l'ont fait sans le vouloir et sans savoir ce qu'ils faisaient; ils y ont été conduits par les événements: un projet antérieur n'aurait pas réussi

8.10.20

Eu somatizo, tu somatizas, nós borramo-nos de medo

Jantar com duas psicólogas genebrinas, não exactamente da parte de baixo do cesto. Habituadas a lidar com pacientes portugueses - uma delas até fala a nossa língua, vá lá saber-se como - e por via disso teve durante muito tempo dezenas de famílias portuguesas sob o seu olhar competente. Perguntam-me como está a situação da Covid em Portugal. Respondo: "Do ponto de vista regulamentar é parecido com a Suíça, mas há muito mais medo do que aqui. As pessoas têm medo." Resposta de ambas: "Os portugueses somatizam imenso."

6.10.20

Maldade, miséria e cobardia

     - Porque é que quanto mais se anda para norte, menos se anda de máscara, menos as pessoas têm medo?
     - Porque quanto mais se anda para norte, menos emocionais são as pessoas.
     Talvez seja uma questão de razão versus emoção, embora se saiba que essa clivagem nem sempre acerta.
   O problema quanto a mim tem mais componentes e não pode ser analisado em bloco. Seja como for, à mistura de razão, emoção, pânico e histeria há que acrescentar a maldade. Aquilo que em Portugal estamos a fazer às crianças, aos velhos, aos doentes e aos pobres não pode ser explicado se não se incluir na explicação a maldade. A maldade dos miseráveis, dos tesos, dos cobardes, dos que têm uma vida de merda e de repente se vêem com a possibilidade de exorcizar as suas merdinhas quotidianas torturando quem não se pode defender. 
       Viu-se agora com o episódio da "infecção" no Conselho de Estado. Alguém foi posto em quarentena forçada? Não. Transponham para uma sala de aulas, para uma fábrica ou para um lar.
     Só por maldade se pode infligir às crianças o que se lhes está a infligir. Essa maldade exprime-se tanto melhor quanto tem o véu da "protecção dos que lhe são queridos" a disfarçá-la. Porque é que em Genebra, apesar de ter normas semelhantes sobre as máscaras (para adultos), a atmosfera é muito mais ligeira? Porque lhe falta a componente de maldade dos tesos. Na Suíça-alemã nem máscara se usa.                               Racionalidade e um bom nível de vida são um bom antídoto para as pequenas - mas não menos asquerosas - vinganças dos miseráveis e dos cobardes. 

5.10.20

Goliarda e os neo-vitorianos

Goliarda Sapienza caiu-me em cima por causa de um podcast que ouvi, completamente ao acaso, durante o confinamento. O mínimo que se pode dizer é que era atraente e fiquei com o título atravessado. Agora comprei finalmente L'Art de la Joie, comecei a lê-lo e vejo que o podcast, por muito panegírico que fosse, ficava aquém do texto.

Interesso-me pela biografia da autora - isto é uma novidade, mas que se lixe - e vou procurar mais informação sobre ela. Um programa - por sinal também da France Culture - apresenta-a como «Anarquista, bissexual, rebelde» (creio que a ordem é esta.) Mas que raio importa que a senhora fosse bissexual, alguém me explica? Anarquista? Mas isso faz de alguém um escritor? Fala-se de Gabriel Garcia Marquez dizendo que era comunista ou de Marguerite Yourcenar que era lésbica? Rebelde? Por amor de Deus! Tenho sorte, no fundo: comecei pelo podcast correcto. Se tivesse começado por este, é pouco provável que me tivesse interessado. 

O nosso tempo está mais obcecado pelo sexo e respectivas actividades do que a época vitoriana.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 04-10-2020

Uma das características do tempo em Genebra é não ser elástico, como em Portugal, Espanha, República Centro-Africana ou St. Vincent and the Grenadines (é este o nome do país, se por acaso). Em Genebra - onde ele é mais elástico do que, por exemplo, em Zurique - se se diz «Às duas horas vamos fazer compras», às duas horas vai-se fazer compras. Ou às duas e cinco, vá. Fomos às duas e um quarto porque estamos em Genebra - mas fomos com a consciência clara de que estávamos «atrasados». Não sou antropólogo, sociólogo nem muito menos psicólogo, mas penso que há duas clivagens entre povos, mentalidades, civilizações (chamem-lhe o que quiserem): a elasticidade do tempo e o sentido de Sim e Não. Passado o Reno (ou o Ródano, mais a Sul), sim é sim e não é não. Talvez é talvez. Duas horas é duas horas, não é duas horas e um quarto ou duas menos cinco. «Antes da hora ainda não é hora, depois da hora já não é hora», dizem os suíço-franceses. Bom, com um bocadinho de folga, é certo; e essa explica explica o apodo dos suíço-alemães: »aquela malta é estrangeira». Mais a Sul e a Oeste, essas duas clivagens esborratam-se numa amálgama de horas e de sins-nãos-talvezes. 

Bom, seja como for: fizemos as compras da semana, as compras para a fondue (de queijo, passe o pleonasmo) e à noite tivemos a filha mai-lo respectivo e a G., presença obrigatória nas fondues. Faço-as sem Maizena, como «as da minha infância», repete a cada vez. Não foi a minha fondue favorita, mas estava boa. Fica.

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O que me prende a Genebra, por ordem crescente: a língua francesa, S., os meus filhos. Há algo de estranho, paradoxal, transcendente (no sentido de mágico) nesta coabitação amical. Viver o que vivíamos antes mas num estatuto diferente. A única coisa que muda é o lugar onde durmo e mais um ou outro pormenor por agora desinteressante. O que não deixa de ser fascinante: um amor que evoluiu em amizade. Uma amizade tão forte porque deu a volta toda, percorreu e balizou os caminhos todos, dos atalhos às auto-estradas.

Penso-o há muito tempo: o amor é um acto de vontade, não o resultado de um acaso. Amo todas as mulheres que amei, porque não as amei por acaso, nem porque me cagou uma pomba na cabeça enquanto dormia (eu, não a pomba).

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J. L. dizia-me há dias que o meu texto sobre Genebra era o mais «minimalista» que escrevi para a Gazeta. Tem razão, embora minimalista não o defina inteiramente: foi o texto mais factual, aquele em que as emoções e os sentimentos estavam mais escondidos. Genebra é um amor racional e eu sei que isso existe porque todos os meus amores o são. Ou foram, mas o verbo amar não tem passado. Só tem presente e futuro.

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O amor é a justaposição de duas independências. Se não for, não é amor. É outra coisa qualquer, da qual nada percebo. Um mais um igual a três: o um, o outro e os dois.

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Objecção contra a modernidade: já não há verdadeiros loucos, excêntricos. Mijar fora do penico  hoje é dizer «maricas» em vez de gay e deslocar-se de bicicleta em vez de carro. A normalidade - ou aquilo que o devia ser - é o novo revolucionário.

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De um ponto de vista estritamente epistemológico, acreditar que a Terra é plana, que o vírus é perigoso ou que Deus existe têm exactamente o mesmo valor. Apesar disso, prefiro a igreja: tem mais sentido, mais história e menos histeria, apesar das Teresas de Ávila e das Madres Teresa de Calcutá.

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Hoje li uma explicação - vinda de alguém que aprecio e respeito - para o uso de máscaras: «é uma questão de egoísmo versus altruísmo.» Transformar uma questão sanitária numa questão moral é equivalente a transformá-la numa questão política? Intuitivamente, diria que não. É pior. Contra a política posso lutar com argumentos políticos. Contra a moral, não. Tenho de usar argumentos de outra ordem: científica, factual... Amorais. Introduzir uma questão científica na esfera moral releva da má-fé intelectual, por muito bem intencionado que seja quem o faz.

Adenda: isto para não mencionar as cinco mil pessoas que até hoje morreram por falta de cuidados, mortes às quais, se quisermos aplicar-lhes categorias morais, só podem qualificar-se de hediondas. Tal como, de resto, o desinteresse das pessoas que só vêem a Covid. 

4.10.20

Dúvida

Pergunto-me se hoje Rimbaud ainda proclamaria «Il faut être absolument moderne». Penso que não, infelizmente.

O Don Vivo encoraja

O Don Vivo encoraja vivamente (não poderia ser de outra forma, pois não?) todas as farmacêuticas a esquecerem a vacina do vírus. Tratem antes de coisas importantes, como os acufenos

3.10.20

Eterno infinito (da série Poemas para Rute)

Foi assim que acidentalmente nos cruzámos, tu saída de um cometa, eu de uma estrela cadente, à esquina de um quadro de Hopper. Qual teria sido, lembras-te? O do bar à noite, numa esquina? Provavelmente. Ambos pensámos que era aquele o nosso lugar, só depois descobrimos que o nosso lugar éramos nós, tu o meu e eu o teu. O bar fechou, fomos para aquele quarto de hotel no qual tu, sentada na beira da cama, olhas pela janela e esperas que eu me despache com a barba para sairmos os dois, ombro contra ombro, rumo a outro café. Onde foi? Perto daquele farol, não foi? Duas personagens de Hopper fugidas dos seus quadros e de dois astros de passagem.

Infelizmente iam em direcções opostas e depois daquela noite não houve outra. Só palavras, são elas que agora fazem de ombros, de mãos, de olhos, de ti e de mim. Um amor de palavras, palavras de amor, amor com palavra, dou-te a minha palavra, dou-te o meu amor e recebo de bom grado o teu silêncio, a estrela cadente caiu, o cometa foi-se, que ficou de nós se não estas palavras que te dou, este silêncio que me dás, esta luz que na escuridão os astros deixaram, deixam, nos prendem a eles e a nós, eu a ti e tu a mim? Que ficou de nós, se não o infinito, o eterno?

2.10.20

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 02-10-2020

Chove. Uma chuva suíça, compromisso entre chover e não chover. Saio de L'Ivresse para ir comprar L'Art de la Joie, de Goliarda Sapienza, à Atmosphère.

Calvin andou por estas ruas, mas ao contrário do que geralmente se pensa, não se deu bem com elas. Isto é, não se deu muito bem com Genebra, ou Genebra com ele. O catolicismo não se rendeu sem luta e o calvinismo desapareceu pouco depois da sua morte.

Não desapareceu. Genebra é uma cidade de coabitação. Não é como Palma, onde as três cidades coabitam mas não se tocam. Aqui há muito mais do que três cidades, para começar: a dos genebrinos, a dos estrangeiros ricos (expatriados), a dos estrangeiros pobres (imigrantes), a dos funcionários internacionais, a dos estrangeiros de passagem, a dos "frontaliers" e a dos estrangeiros ricos que não são expatriados. Talvez refugiados fiscais, ou refugiados financeiros: fazem um acordo com o fisco e estabelecem a sua base aqui. Alguns preferem Zurique, mas muitos ficam em Genebra ou no cantão de Vaud, cujo fisco é mais favorável.

Todas estas Genebras interagem, mais ou menos. O elo de ligação, comum a todos, são os estrangeiros pobres. Limpam casas, trabalham nas obras, servem os copos e os pratos nos cafés e restaurantes. Os funcionários internacionais - ONU, ONG, diplomatas - têm sítios mais ou menos designados, mas são frequentemente vistos na cidade: lojas, livrarias, restaurantes. Os outros todos fazem as suas vidas, cruzam-se, cumprimentam-se na ópera ou no teatro, num ou outro restaurante... Tudo isto gira como uma engrenagem bem oleada. Em Palma, as camadas estão estratificadas. Aqui não. São oleosas, como aqueles brinquedos quando éramos crianças, tinham dois líquidos de cores diferentes que se adaptavam um ao outro quando agitávamos o recipiente mas nunca se misturavam. Aqui há mais cores e mais interacções, mas as misturas são iguais: zero.

É preciso dizer, contudo, que só não se mistura quem não quer. Fui bastante bem recebido porque nunca me refugiei em nenhuma categoria. Dei-me com a alta burguesia genebrina - para quem até fiz pastéis de bacalhau (que só foram aceites depois de lhes mudar a designação para pastéis de peixe) - com artistas (alguns dos quais até verdadeiros), com funcionários internacionais, universitários, com imigrantes, okupas, com todos e mais alguns. 

Hoje, fechado no meu poço de maré baixa, penso nos amigos que vou rever quando isto passar. E penso, sobretudo, no esforço que fiz para não ser daqui, para estar de passagem.

Há lutas estúpidas, não há? Há, mas não foi o meu caso. Não tive de lutar nada: aconteceu, simplesmente porque não poderia ter sido de outra forma. Não sou mais daqui do que de outro lado qualquer. O que me prende a Genebra são os meus filhos e a minha ex-mulher (e presente amiga).

Não são estas ruas, de que agora admiro a sobriedade, mesmo quando são imponentes, a suavidade, a fluidez. Nem mesmo a França vizinha, onde vou quando preciso de ir à fonte, à desordem.

Nada me prende a lado nenhum, para além deles. Espero que nunca saiam de Genebra. 

Gazeta Rural - Genebra, cidade do Sul

 O meu texto para a Gazeta Rural nº 371:


GENEBRA, CIDADE DO SUL

 Genebra aparece regularmente no topo das listas das melhores cidades do mundo para se viver. Não é difícil ver porquê: tem todas as vantagens de uma cidade pequena e todas as vantagens de uma grande, sem as respectivas desvantagens. O Cantão de Genebra conta cerca de meio milhão de habitantes, dos quais duzentos mil vivem na cidade propriamente dita. Desses quinhentos mil, quarenta por cento são estrangeiros – se bem um quarto do total de estrangeiros tenha nascido na Suíça: como é fácil e pouco penalizador ser estrangeiro, muitos não se dão ao trabalho de se naturalizar, um processo longo, penoso e caro. Em 2004 a naturalização automática de estrangeiros de terceira geração foi referendada e recusada. Em 2016, uma naturalização «facilitada» (aspas porque cito) foi aprovada, mas teve posteriormente pouca adesão.

As ruas de Genebra são limpas – tão limpas que parecem escovadas, mais do que varridas – e seguras; têm uma invejável variedade de lojas, restaurantes, serviços diversos; ouvem-se poucas buzinadelas – se bem haja algumas. Os carros não deviam ter buzinas, é a única forma de as evitar -, há ciclovias de uma largura desmesurada (algumas por causa da Covid-19...), os semáforos estão feitos para os peões. Os autocarros e eléctricos têm um horário afixado em cada paragem e por inacreditável que pareça respeitam-no (com mais ou menos dois minutos de tolerância). Isto deve-se a duas coisas: a) a quantidade de faixas Bus e b) os respectivos condutores poderem alterar os semáforos para verde quando se aproximam deles. Não é frequente ver um transporte colectivo parado num sinal de trânsito por causa disso – e geralmente quando se vê é porque há outro no cruzamento que carregou primeiro no botão. A maioria das linhas intra-urbanas tem uma cadência de oito a dez minutos, mas essa cadência aumenta para quatro minutos para algumas delas à hora de ponta e cinco durante o dia – e isto, relembremo-lo, com horários respeitados. Acresce que os transportes são confortáveis porque as ruas estão bem pavimentadas (se não estiverem cheios, o que é frequentemente o caso, pelo menos às horas de maior ocupação). As bicicletas são inúmeras, de todas as formas e feitios: eléctricas, de carga, com reboques ou avanços para crianças, caras, baratas, de corrida ou de cidade. Os automobilistas ralham com a largura das ciclovias, «sempre vazias» segundo eles (não é inteiramente verdade, mas tão pouco é falso. As bicicletas circulam por todo o lado). Os engarrafamentos são gigantescos – provocados não só pelas ciclovias mas também pelas sempiternas obras. Cheguei a Genebra pela primeira vez em 82 ou 83 e desde aí não me lembro de ter visto a cidade um dia – um que fosse – sem obras. Ele é canos, ele é aumentar as linhas de eléctrico – quando cheguei havia uma, hoje há cinco – ele é melhorar os passeios para lhe aumentar a segurança, modificar as ruas para tornar impossível a circulação a mais de trinta km/h... A lista de trabalhos não pára, mas os genebrinos reclamam e continuam. A verdade é que tudo está à distância de um voto e quando o assunto é verdadeiramente sério as pessoas recorrem a ele. Como por exemplo aquando da renovação da Place du Marché, em Carouge (uma freguesia de Genebra): a autarquia resolveu abater os plátanos da praça, que segundo ela estavam doentes e substituí-los por outros. A população da comuna disse que não, montou uma iniciativa popular e a coisa esteve em discussão, análises, contra-análises durante quase um ano. Findo o qual foi a votação. As autoridades ganharam – puderam abater os plátanos – mas foi meia vitória: o seu projecto inicial teve de ser alterado. Ganharam todos... (Isto passou-se em 2000. Treze anos depois, os novos plátanos estavam atacados por um fungo e tinham de ser abatidos, mas dessa vez não segui o episódio.)

Para mim, o sistema político suíço é o melhor do mundo pela razão simples de que os políticos não têm poder. Quem manda é «o soberano». Há dois tipos de mecanismo de consulta: a iniciativa popular e o referendo. Este aplica-se a propostas do governo; aquela a... bem, iniciativas populares, que podem ser ou partidárias (organizadas por um partido) ou ad hoc  (um grupo de cidadãos independente de partidos faz uma proposta de lei, junta-se, lança uma recolha de assinaturas e normalmente dois anos depois o tema vai a votação, se conseguirem as assinaturas, que variam em função da amplitude da iniciativa. Se a iniciativa for cantonal ou comunal é mais rápido, naturalmente). Alguns temas são de referendo obrigatório, como os impostos, por exemplo. Os governos não podem criar ou aumentar impostos sem perguntar ao povo se concorda, o que tem a vantagem acrescida de os obrigar a explicar muito bem explicadinho para que vai servir o dinheiro (e quando o motivo do imposto acaba este é directamente retirado). Ou os que exigem uma alteração da constituição, como a naturalização automática ou facilitada. É um sistema complexo e não exportável, porque a Suíça são vinte e três países com fiscalidades, leis, escolaridades, polícias, administrações diferentes; cada um desses países está, por sua vez, dividido em comunas que têm autonomia em vastas áreas da administração da administração pública. (Não mencionando as divisões linguísticas: há quatro línguas oficiais, das quais uma – o romanche – é pouco utilizada.)

Nunca consegui viver em Genebra, mas sempre gostei de cá voltar. As primeiras semanas aqui, quando regressava de uma viagem ou de uma estadia fora (normalmente África, América Latina ou Portugal) reconciliavam-me com a humanidade. Depois, chegava o aborrecimento, a previsibilidade, a rigidez (um supermercado fecha às 19h00, não fecha às 19h01), a eficácia da administração – tem coisas boas e coisas más... Era demasiado jovem: é preciso envelhecer para se gostar verdadeiramente da Suíça. Genebra, sendo a menos suíça das cidades, aceita velhos um pouco menos velhos, como eu.

Curiosamente, para os suíço-alemães Genebra é uma cidade «do sul» – todos somos sempre o sul ou o norte de alguém – desorganizada e estranha, socialista e sensual. Têm razão: Genebra está ligada ao Mediterrâneo pelo Ródano e mesmo que não seja inteiramente navegável o Mediterrâneo chega aqui. Ou pelo menos eflúvios. Há nesta cidade, para nós tão organizada, rígida, inflexível, ilhotas de vida, de alegria, de caos. Basta escavar um bocadinho (ou ir a Carouge, enclave católico no meio do calvinismo, que já pertenceu ao reino da Sardenha, oásis de paz, tolerância e boémia. Mas isso fica para depois).

 

Luís Serpa, Genebra, 28/08/2020