31.5.24

Diário de Bordos - Aeroporto de Orly, Paris, França, 31-05-2024

Não sei se escrevo porque não tenho mais nada que fazer se por ter mesmo qualquer coisa a dizer. Tendo mais para a primeira hipótese, apesar de a saber falsa: podia ler, por exemplo. Tenho a Rossetti («Somos un cuerpo herido», só o título merece respeitinho e admiração) para terminar, que já se arrasta há um bom par de meses; uma colectânea de contos do le Clézio, da qual li o primeiro, magistral; e mais meia dúzia deles. Deixei de ser um leitor compulsivo e passei à categoria de comprador compulsivo. Ou transportador compulsivo: sou incapaz de os deixar para trás (desta vez creio que deixei os Cesaire, mas não tenho a certeza. Vontade não me faltou).

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Salto de aeroporto em aeroporto com a mesma frequência com que salto de porto em porto, mas não com a mesma alegria. Oito horas metido dentro de um colete de forças voador é uma violência de longe superior às trinta que passei à saída de St.-Martin. Ou seja: estar quieto é mais penoso do que não parar de fazer a carcaça trabalhar, no meio de squalls, aguaceiros, rajadas súbitas, subidas e descidas de vento sem qualquer espécie de pré-aviso, vagas sem lógica e por aí fora. 

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Seis horas de espera em Orly. Quando acabar a De Passagem faço uma sobre os aeroportos. Ontem o de Fort-de-France estava lindo, ao fim do dia.

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Esqueci-me das injecções na Martinica. Penso que só há duas coisas de que nunca me esqueci: a cabeça, porque tenho o pescoço; e o meu nome. Mas deste não estou seguro. Esta distracção é-me cada vez mais insuportável., apesar de não ter a impressão de ela ser cada vez pior. A minha paciência para mim é que é cada vez menor.

[Adenda: esqueci-me também do programa de navegação do Quinn. Provavelmente a melhor coisa em que gastei cento e cinquenta euros nos últimos duzentos anos.]

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Faço um desvio impromptu para a analogia entre o café solúvel e os problemas insolúveis. São muito parecidos. Um problema insolúvel não é um problema e um café solúvel não é café.

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Vi (finalmente?) o Dune, no avião. O filme é longo, chato  e intrincado. Infelizmente as intricracias não prevalecem sobre a duração e a chateza. Ficam só estas: longo e chato.

Depois revi as Pontes de Madison County, que não é nem longo nem chato, muito antes pelo contrário. È magnífico. Uma lição de como fazer um melodrama sem cair na melice.  

30.5.24

Diário de Bordos - Aeroporto de Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 30-05-2024

As despedidas foram rápidas, como convém a pessoas habituadas a elas. Duas cervejas no Mango com o Stefan, almoço a bordo do T. com o respectivo proprietário e pai - que me me deram boleia para o aeroporto - mais o Ben e a Gab, adoráveis como sempre. Sesta rápida no poço do T., duche rápido no B. e aqui me eis no aeroporto de Fort-de-France com uma quantidade de dinheiro irrisória, uma descomunal quantidade de sono, quase três horas de espera e vinte mil perguntas em torno desta pobre cabeça, coitada. 

Deixei o S. D. a bordo do navio, final inglório de uma época nada diferente. Uma embarcação que estava «em condições, como nova, bem tratada» (aspas porque cito) revelou-se um poço de problemas. E não foi só por causa de mim ou das tempestades por que passei. A marca Jeanneau desceu mais um bocadinho na minha consideração, coisa que me parecia não impossível mas pelo menos difícil. Barcos para piqueniques de fim-de-semana, basicamente.

Tal como eu, que de tão desfeito física e emocionalmente me pergunto se dou para mais. Não posso sequer dizer que estou contente por ver este projecto longe. (Ainda não o está, para começar.) Estou meio contente e meio triste. Já não mereço cenas destas ao fim destes anos todos. Enfim, mais um degrau na curva de aprendizagem, que é uma escada interminável, como toda a gente sabe.

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Em breve estarei no «meu» P. Paradoxalmente parece-me a única coisa sólida nesta minha vida. Não que me faltem propostas de trabalho - tive uma ontem bastante atraente e outra hoje de madrugada menos atraente porque mais curta no tempo mas também interessante. Mas enquanto não tiver o P. a funcionar e a render não consigo olhar para mais nada. (Mentira. Consigo.)

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Não é o momento para tomar decisões. Uma das regras básicas da navegação em solitário é: gere o teu cansaço. Não tomes decisões se não estiveres em condições de o fazer. Antes pôr-te à capa, correr com o tempo ou parar num porto qualquer. Não é hora de decidir seja o que for.

Excepto, claro, que vou estar na festa da Ler por Aí. Se as linhas aéreas não decidirem outra coisa, lá estarei.

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Estou cheio de sono. Espero que ele se mantenha até ao avião.

(Cont.?)

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 29-05-2024

Uma longa cadeia de dias complicados está quase a chegar ao fim. Em breve o cansaço físico cederá o seu lugar ao cansaço emocional, que demora sempre mais tempo a dissolver-se na poeira dos dias. Até aqui têm andado os dois juntos. De braço dado, para usar uma fórmula bastante redutora. Tanto um como outro espalham-se pelo meu corpo todo como se fossem siameses. Não são.

Imobilizo-me regularmente para os ouvir sair da pele.

(Cont.)

28.5.24

Cansaço, decénios

Há cansaços bons e cansaços maus. Aprender a distingui-los é uma simples questão de tempo. 

Mede-se em decénios, se por acaso.

Multas

Devia haver multas para excesso de cansaço como as há para excesso de velocidade, por exemplo. Escapar-lhes seria a única forma de extrair prazer da exaustão.

27.5.24

Assimetrias, eixos de simetria e mulheres bonitas

Acabei de lanchar: pão feito ontem, manteiga da Bretanha, goiabada, rum Madkaud, uma ou outra rodela de chouriço daqueles de pacote. O almoço só correu bem se excluirmos o preço. Vinte e três euros por um prego e duas canecas de cerveja é demasiado.

Ainda por cima vou ter de sair para jantar (e para desanuviar). A ver, como repete o ceguinho a quem o quer ouvir.

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Comecei uma conversa sobre o tema da assimetria, mas não a prossegui. Falar de simetria nas relações - sejam elas profissionais, amicais, sociais, familiares, amorosas, desportivas ou outras - é como discutir o monstro de Loch Ness, os chemtrailers ou a vida sexual dos sete anões: só me interessa de um ponto de vista académico. Na prática nada disso existe: nem simetrias nem chemtrails nem os sete anões. 

Não há simetria em relação nenhuma, qualquer que seja o eixo de simetria que se escolha. Falemos, por exemplo, do conhecimento: eu percebo mais de navegação do que qualquer uma das pessoas que me contrata - o que é normal, porque senão não me contrataria - e menos do que qualquer dessas pessoas da sua área profissional. Se o meu proprietário (fórmula idiomática) for médico, engenheiro, contabilista ou engenheiro de foguetões eu não vou contestar aquilo que ele diz sobre essa parte do conhecimento humano. 

Já o inverso não acontece. Por uma razão que desconheço totalmente um cientista de foguetões pensa que percebe mais do que eu da pilotagem de uma embarcação de vela, por muito que só as tenha visto no cinema. 

Assimetria impossível de resolver.

Outra: um proprietário - podre de razão - pensa que nos paga para fazermos um trabalho bem feito. Acontece que ele não sabe diferenciar os vários graus de "bem feito". Para ele, o critério é binário: se partiu está mal feito, se não partiu está bem feito.

Não é preciso ser um génio para se saber que este critério não é fiável. Fittipaldi teve muitos mais acidentes de viação do que a minha querida Mãe e não passaria pela cabeça de ninguém sugerir que a senhora conduzia melhor do que o brasileiro. 

O problema numa relação, seja ela de que tipo for, não é eliminar as assimetrias. Essas existirão sempre. A questão é atenuar-lhes as consequências. O âmbito, por assim dizer.

Outra questão é saber escolher os eixos de simetria dos quais falamos. Se para o meu proprietário (figura teórica, insisto) o eixo fundamental é o financeiro e para mim o tal eixo de simetria é outro qualquer podemos discutir durante horas: não chegaremos a conclusão nenhuma. 

Por isso, para mim o tema das assimetrias é crucial. Sobretudo, a escolha do eixo de simetria sobre o qual queremos encavalitar-nos.

E do qual, mais tarde ou mais cedo, cairemos.

Derivar e pairar entre palavras

Já aqui um dia expliquei a diferença entre derivar e pairar. Ambas consistem basicamente na mesma coisa - estar no mar sem meio de locomoção - mas a deriva é involuntária e pairar não. Por exemplo: se eu arrear os meus panos, se parar o meu motor, se puser os remos em posição de descanso fico a pairar. Se o meu mastro cair, se o motor avariar, se os remos se partirem fico à deriva. No mar a diferença é clara. Na vida nem tanto. Neste rio de palavras que agora me atravessa - ou eu atravesso -, onduleante como um rio africano, eu derivo ou pairo? Deixo-me arrastar ou é ele que me leva? Do meu bote (vamos imaginar que é uma almadia, em memória das minhas aventuras no rio dos Bons Sinais) vejo as largas extensões de palavras em cada uma das margens. Não sei aonde pus a pagaia - perdeu-se? Caiu? Está no fundo e recuso-me a olhar para ele? Talvez bastasse baixar-me e apanhá-la e dar uma direcção à minha canoa. Talvez não, talvez não esteja lá. Hesito e deixo-me levar pela corrente, fraca porque o rio é largo e preguiçoso, tem demasiados meandros, arrasta muitos sedimentos. Vai pesado. As palavras olham para mim com uma indiferença notável. É como se eu não existisse. Que nome dar a esta assimetria? Eu vejo-as tão bem... Às vezes até me parece que me acenam, me chamam, dizem-me «Pára essa porcaria e vem passear para aqui connosco.» E eu ali, abúlico, sem saber se derivo se pairo, se paro ou se continuo. Penso: «Isto só me acontece com as palavras. Com o mar, por exemplo, não. Sei perfeitamente de onde venho e para onde vou. Só nesta interminável e palavrosa planície me perco.

Interminável, palavrosa e silenciosa. As palavras não falam. 

26.5.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 26-05-2024 / II

Estou numa fina linha entre "Estarei em Lisboa dia 31 ou não?" e penso que quem escolheu esta vida de ausências fui eu.

O próximo livro deveria chamar-se "A via da ausência". Ou "Uma vida de ausências". Ou: "Ausências. Uma vida".

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A puta de chuva recomeça. Nunca pensei ter tanta influência na meteorologia. 

Meteorologia? Não sejas modesto: na vida em geral.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 26-05-2024

Continua a chover desalmadamente. O dia está feio, nebulado, cinzento, paralisado. Nada nem ninguém se mexe. Sinto-me no norte da Europa mas vejo-me em tronco nu e de calções e afasto imediatamente tão funesta ideia.

Funesta? Não tenho a certeza. Aproveitei para arrumar o saco e apercebo-me de que estou com saudades da roupa de frio, que tão pouco usei durante os últimos badanais. 

Este regresso a casa de avião entristece-me. Preciso muito de umas semanas no mar.

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Também preciso de ir ao aniversário da Ler por Aí, mas ainda não sei se conseguirei. Vai ser suspense até ao último minuto. A razão e a emoção intimam-me a esperar não conseguir; as mesmas razão e emoção dizem-me "Não percas a esperança." Dou mais peso ao primeiro conjunto e deixo o segundo em música de fundo.

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Hoje aqui é dia das Mães. O Marin Mouillage está fechado, como de costume. Apanhar aquilo aberto é ganhar à lotaria; o Liv e o Kokoa também (este por ser domingo, não tem nada a ver com as Mães); o Mango só tem um menu a cinquenta e cinco paus. Acabo no Cayali, que tem música ao vivíssimo - esta malta gosta de ajudar os fabricantes de aparelhos auditivos - e também só tem menu, ao mesmo preço do outro. A foda igual vou ao Mango, a música aos gritos dá-me cabo da paciência. 

Como se a porra da chuva não fosse suficiente para me lixar o dia.

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Resumo: acabo no L'Annexe, que é uma merda como o Mango mas ao menos pode comer-se à la carte. E tem música aos gritos, vinda do lado. Chama-se a isto uma enfiada de triunfos. 

Pelo menos posso comer e retornar à normalidade, depois destas três semanas difíceis. 

Três? Não. Quase quatro.

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Estranhamente, sinto-me a sair reforçado destas provas. Continuo a dar conta do recado, com tripulação ou sozinho. Continuo a gostar do que faço. Continuo a saber que amanhã não é a véspera do dia em que mudarei de vida. Continuo a pensar que um dia bom dos meus vale dez dos maus, meus ou de outros. 

Em suma: continuo a estar grato ao conjunto de deuses e diabos que hoje me trouxe ao L'Annexe, com "frio" (aspas porque estão vinte e oito graus centígrados), céu cinzento e uma multidão a festejar as respectivas mães. 

Enquanto houver mulheres bonitas, rum e vinho tinto há vida. E mar, claro.

Variações sobre um tema

Durante muitos anos pensei que a única razão para ter saído de Portugal era arranjar uma mulher, coisa que não conseguia de todo no nosso bem-amado país. Durante os primeiros anos no estrangeiro a situação manteve-se, o que explica que eu não tenha feito imediatamente a relação estrangeiro = mulheres. Ao fim de dois anos isso mudou radicalmente e nas dezenas de anos que se seguiram acordava todos os dias convencido da bondade da minha decisão. Voltei - «irrevogavelmente» - para Portugal em 2002 e – por inércia, pura inércia – continuei a não poder queixar-me.

Agora, por razões que não vêm ao caso, apercebo-me de que a minha incompatibilidade com a mãe-pátria é muito mais profunda, passem-me o elegante jogo de palavras. Mais profunda, freudiana e estocolmiana: quero, decididamente, viver em Portugal. Tal como quero ganhar o totómilhões, de resto. Basta-me começar a jogar. Ou arranjar um emprego a escrever artigos, falar na rádio e ser pago para aparecer na televisão. Por muito tortas que sejam as raízes, o programa é fácil. Isso das mulheres é uma nuvem que passa, um desvario, uma ilusão que ao fim de quarenta ou cinquenta anos se desvanece. Bem sei que o único país que me aceita de braços abertos (não tem pernas) é o mar, mas isso não é para esta equação chamada.

É uma equação que tem de um lado uma impossibilidade e do outro outra. Tudo o que perturbe este frágil equilíbrio deve ser excluído liminarmente.

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Uma das vantagens de se ter várias vidas é que se pode ter várias mulheres da vida.

Bolas, não. Falta ali um possessivo: várias mulheres da minha vida.

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«Por detrás de cada viagem esconde-se uma intenção erótica.» (Agustina Bessa-Luís, de memória.)

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 25-05-2024

Regresso ao Marin e descubro que afinal adoro isto. Os lugares não existem sem nós. São o que somos, o que estamos aonde estamos.

(Claro que a diferença de preços com St. Martin é horripilante? É, excepto nos restaurantes: não há diferença. Uma refeição custa trinta ou quarenta euros, ponto, seja aqui ou lá. Mas nos supermercados sim, há uma diferença enorme. Resumindo: todos os lugares são bons, depende de nós gostarmos ou não de nós.)

ADENDA: Isto não é inteiramente verdade. No Bistro de la Mer consegui comer por vinte e cinco, mas não tenho a certeza de ter acabado com um rum, como é de norma.

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Mais um elogio do Andy, o meu vizinho inglês: «Tu trabalhas muito! Espero que o teu proprietário o reconheça.» «Veremos, Andy, veremos. Como diz o cego. (em inglês não posso dizer ceguinho...)»

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Se não tivesse testemunhas do trabalho que tenho feito, as dores musculares e nas costas tão pouco ajudariam. Ninguém as vê.

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Não chovia no Marin há três semanas. Chego, preciso de sol e tempo seco e que acontece? Adivinharam: começou a chover.

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Outro traço do carácter dos portugueses que me irrita bastante: o não-dito. O hábito de não-dizer as coisas, que algumas vezes - erradamente - confundo com cobardia. A palavra chave é algumas. Não é sempre cobardia. É só às vezes.

(Isto vindo de quem tenta dizer o menos possível quando escreve pode parecer estranho. Não é: os silêncios têm planos e conotações, como as palavras. O silêncio é uma das formas da palavra. Há-os justos e os desadequados, é tudo.)

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Pequeno intervalo para um elogio ao rum Madkaud, que não conhecia. Comprei hoje, para experimentar. Não é mau nem é bom, antes pelo contrário. Vale integralmente os quase dezanove euros que custa (aqui. Em St.-Martin compra-se Mount Gay Eclipsepelo mesmo preçoe émil vezes melhor). Diz que a distilaria foi criada pelo senhor Félicien Madkaud, descendente de escravos, em 1895. A distilaria nasceu numa habitation (o equivalente martiniquês do château francês) que pertenceu ao primeiro governador da ilha. A família do senhor tinha bons contactos, aparentemente.

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Os trabalhos que tenho vindo a fazer seriam mil vezes mais fáceis de fazer a dois. Sou, contudo, forçado a reconhecer que prefiro fazê-los sozinho. Não sei porquê, mas sei que não é por masoquismo. Talvez as negativas sejam mais fáceis de descobrir do que as positivas. São superiores em quantidade, não é?

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Hoje pensava na expressão «verdade seja dita» - foi quando pensava na mania portuguesa de não-dizer - e apercebi-me de que se fôssemos a dizer a verdade toda - ou as verdades todas - nunca mais saíriamos de onde estamos. Há uma quantidade insuspeitada de verdades espalhadas por aí, em nós, nos outros. Mais vale seleccioná-las.

E depois dizê-las, couillons.

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Sempre trabalhei muito. Não é uma qualidade. Nunca fui muito adepto de testes de inteligência (é como tentar entrar numa discoteca da moda e ser «barrado») mas aposto que se um deles integrasse esta minha incapacidade de ver trabalho por fazer me daria imediatamente uma nota negativa. 

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Foi preciso insistir um bocadinho mas a marina pôs-me no mesmo pontão - quase no mesmo lugar - aonde sempre estive aqui. Ou seja: voltei para casa.

25.5.24

Pequeno diálogo sobre a verdade. Ou: viva a tolerância, abaixo o relativismo.

- É preciso dizer a verdade.
- A verdade não existe. O tecto de um homem é o chão do outro.
- Estás a falar de moscas, não de homens.
- E qual é então essa verdade que tanto queres apregoar?
- A coxa de frango do mercado Lamont, mo Marin, é a melhor coxa de frango do mundo. Em segundo lugar vem o frango boucané da paillote Cayali. O  boudin créole da loja Au bon boudin, no mercado do Marin, é o melhor boudin créole do universo.
- E que concluis tu dessas verdades a que chamas universais?
- Incontestáveis.
- ...
- É impossível não reconhecer a existência de outras verdades e é igualmente impossível não reconhecer que as minhas são mais verdadeiras do que as dos outros. Se não fossem, não as teria escolhido como verdades.

(Post dedicado ao meu amigo V., com quem espero um dia provar o que digo.)

Labirinto

O mais eficaz dos labirintos é o mar. Tem milhares de saídas e nenhuma delas é visível.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 24-05-2024

De novo no Marin, a dar início à última parte desta longa viagem - começou a catorze de Dezembro e terminar-se-á no fim deste mês de Maio (se Deus quiser e puder). Que viagem!

Mas ainda é cedo para falar dela. Ainda não acabou. Está quase, mas quase é uma palavra que engana muito, como todos sabem.

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Por ordem cronológica inversa: 

Tenho um vizinho inglês, ex-skipper profissional. Há pouco ofereceu-me uma cerveja e disse-me: «Pára! Já fizeste que chega por hoje.» Como qualquer pessoa - suponho - gosto de ver o meu trabalho reconhecido. É paradoxal, porque de maneira geral a opinião dos outros acerca de mim interessa-me pouco. Porém, uma coisa sou eu e outra o meu trabalho, coisa na qual ponho brio e tento fazer o melhor que sei e posso. Há certamente melhores do que eu, mas também os há piores e fico contente quando vejo um colega reconhecer o que faço - e para mais um inglês, povo que regra geral sabe do que se trata quando se fala de ser um skipper profissional.

É uma das coisas que me magoa no povo português - somos avessos a reconhecer a qualidade do trabalho alheio.  Não sou o único a dizê-lo - basta perguntar aos milhares de jovens que todos os anos abandonam o país (tal como eu fiz, de resto. Podres de razões). Tenho uma leitora regular, uma das melhores artistas portuguesas, na minha opinião, que diz o mesmo. Não é vaidade - e se for paciência. É vaidade boa. "Nem só de caviar vive o homem."

Antes disso:
Ontem fui mandado parar pela Alfândega francesa, num local particularmente estúpido (chama-se Passe du Fou, é a passagem entre a ponta do Diamant e o rochedo do mesmo nome). Vieram quatro homens e viraram-me o barco do avesso - bastante incompleta e incompetentemente, é preciso dizê-lo. Apanharam uma concha de tartaruga que a S. C. me tinha pedido para levar para Lisboa e mandaram-me ir fundear à Anse Caritan. Dizem que é de uma espécie protegida. Demorei duas horas a chegar, o S. D. não passava dos três nós. Não me multaram por causa da concha, mas sim por não ter feito a clearance à saída de St. Martin. Resultado: uma multa de cem euros que a S. simpaticamente pagou, uma eternidade a andar à procura de um ATM para lhes pagar - tinha de ser em dinheiro, não têm cartões nem aceitam transferências nem nada. Fundeámos em Caritan e quando chegou o momento de pagar levaram-me a Sainte-Anne, que é mesmo ao lado, levantar dinheiro. A única caixa da aldeia está avariada «há seis meses», informa-me muito correctamente um senhor. Os três homens que estavam no semi-rígido comigo pediram informações ao chefe, que nos mandou para o Marin. Por sorte ainda tinha os cem euros na conta. A palhaçada acabou já passava das onze, o que para quem acaba de passar dois dias e meio à bolina cerrada e só pensa em duas coisas - uma cerveja e dormir - é demasiado tarde. (O «chefe» foi bastante simpático e ofereceu-me não uma mas duas cervejas, eu não tinha nenhuma a bordo).

Não é a primeira vez que sou vistoriado e compreendo que seja preciso. Só podiam era ter encontrado outra vítima.

Antes disso: 
Dois dias e meio extenuantes. Ou melhor: um dia e meio extenuante e um dia (mais coisa menos coisa) relativamente calmo. Os meus movimentos a bordo perderam fluidez, mas no resto continuo válido. O cansaço foi físico - as manobras de rizar, desrizar, enrolar a genoa, desenrolar a genoa, folgar a grande, caçar a grande, ajustar o rumo, marear os panos sucediam-se a uma cadência digna dos Tempos Modernos - mas nunca me senti farto, nunca me perguntei que raio de carga de água estou eu a fazer aqui. Pensei imenso, isso sim, naquele meu hábito de dizer a um cliente que não navego à bolina com mais de quinze nós de vento. O tanas, é que não navego. Põe-me um cargueiro, uma festa de aniversário da Ler por Aí ou outra coisa igualmente importante à espera e vais ver se não navego à bolina com mais de quinze nós de vento.

Antes disso:
Saio de St.-Martin após cinco meses e meio de Caraíbas e consegui não ir nem a Grenada, nem às Grenadines nem às BVI. É obra.

Pelo menos fiz uma operação que «o melhor SNS do mundo» ainda está para marcar - foi pedida pelo médico do Centro de Saúde de Cascais ao hospital Egas Moniz a catorze de Setembro do ano passado, com carácter de urgência - e convivi bastante com o meu filho. É muito e não se pode ter tudo. A Passevite está de acordo em adiar a exposição de fotografia, o P. para a semana tem as peças do leme, tenho dois netos lindos. A engrenagem vai encaixando. Excruciantemente devagar, é certo. Mas vai encaixando.

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Um Inverno assim-assim e mesmo assim bastante melhor do que o de tantas outras pessoas. Não vejo grande mérito nisto, tal como não vejo razão de orgulho ou de vergonha em ser português ou falar quatro línguas. É o resultado de um conjunto de coisas que não dependem de mim, no qual a sorte e o azar ocupam partes iguais.

(A paráfrase "azar para o qual trabalhei muito" ocorre-me. Ideia espúria e desprezível, claro.)

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Estou em dia de paráfrases. "Por que palavra começar, por que desordem" transforma-se em "por que palavra terminar, por que desordem". 

Jantei, acabei a garrafa de Mount Gay (estava quase) e sinto os cansaços a lutarem para me abandonar. Assim mesmo no plural: os cansaços novos e os destes dias não se misturam, são como a água de dois rios ou - mais visível ainda - a de um rio a do mar. Ao largo da foz do Yangtse vêem-se a muitas milhas da costa, uma castanha e a outra azul numa espécie de apartheid aquático. Parece que na do Amazonas acontece o mesmo, mas essa nunca a vi. Só sei de ouvir dizer. Diga-se de passagem que por muito que acredite no empirismo não penso que seja a única fonte correcta de informação. Não preciso de provar cicuta para saber que é mortal. (Verdade seja dita: se provasse nunca o saberia, a menos que fosse pouca e morresse devagarinho. Mas deixaria de saber, mais tarde ou mais cedo.)

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O S. D. volta ferido para casa. Mete água e perdeu a tampa do bow thruster, principalmente. O resto são pequenas mazelas de nada. 

É compreensível: a Jeanneau só fabrica barcos há duzentos anos. Ainda não teve tempo de aprender.

Sarcasmo à parte: comprar embarcações de recreio? Só para lá da Bélgica. Isto é: começar nos Países Baixos, como agora querem ser chamados. (Falas holandês? Não. Falo país baixense.)

Nb.: na Alemanha, saltar aquelas aberrações que dão pelo nome de Bavaria e Hanse. E os Dehler de alguns anos. (A França tem algumas excepções equivalentes no outro sentido, mas abstenho-me de as nomear: aparentemente  já nem no Outremer se pode confiar.)

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Creio que já aqui mencionei o piedoso estado da minha electrónica: o telefone a carregar faz pensar naquele haikai do Issa: "caracol / lentamente, lentamente / sobe o Fuji." (1 - Não sei de quem é a tradução. 2 - Cito de memória.) O computador tem as duas portas USB inoperacionais. Felizmente está é toda a electrónica que possuo. Mais houvera mais queixas haveria.

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A navegação em solitário tem uma qualidade que só por si a justifica: não é show off. É show in.

Para lá dos aspectos metafísicos: obriga-nos a planear cada etapa das manobras. Cada passo tem de ser antecipado e planeado. Não há melhores núpcias da improvisação e adaptabilidade com o rigor e a previsão. 

21.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 20-05-2024

Hoje choveu, finalmente. Comprei bananas e bebi um Mai-Tai. Não é o mesmo com que me embebedei em Oakland, mas que se lixe. Não se pode viver no passado. De qualquer forma é possível que volte a Oakland em breve e vá ao Trader Vic’s, que é aonde eles foram inventados. Vim jantar ao Bistrot de la Mer. É a primeira refeição decente (ou pelo menos num restaurante) desde há quinze dias. Entre as bananas e o jantar estive no Mains à la Pâte com o J., a P. – veio despedir-se, gesto que me toca bastante - e o S., um amigo do J. que conheci anteontem, velho marinheiro. Foi dono do WILLIWAW, o original, o do Peterson e isso chega para definir um homem.

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«O marinheiro é um fingidor.
Ora finge que é rico
Ora finge que é pobre
E chega a fingir que é amor
A dor que agora sente
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Escalope de frango à milanesa, acompanhado por um Malbec e pelo barulho das motas. Estes gajos devem ser a única população do mundo cuja morte me deixaria completamente indiferente. Todos os dias dois, por exemplo. Ou pelo menos que ficassem suficientemente avariados para não poderem voltar a sentar o cu num banco motorizado. O barulho que fazem é infernal, irritante, agressivo e – sobretudo – idiota. O St. chamava-lhes «doadores de órgãos». Desde que não dêem a cabeça, tudo bem. Claro que o mais interessante seria perorar sobre esta necessidade de correr riscos e chatear os outros, tanto maior quanto mais pobre é o país. Não sei. Neste momento não consigo pensar senão no que tenho de fazer amanhã: ir ao estaleiro TOBY (Time Out Boat Yard), pagar a marina, arrumar o bote e zarpar. Com um pouco de sorte antes das onze estarei a largar amarras. O plano é fundear em St. Kitts e depois prosseguir viagem de manhã cedo até à Guadeloupe, fundear de novo e chegar quinta-feira ao Marin. Se não der para fundear, aquartelo e durmo um par de horas. Tenho lugar na marina, hallelujah!. Vou ter uma montanha de trabalho a preparar sozinho o S. D. para o transporte, mas confesso que encaro esses dias com prazer. Tudo é melhor do que esperar. A espera e a sua irmã esperança deviam ser banidas da vida quotidiana e do léxico de uma pessoa normal. São duas formas do mesmo veneno, uma ligeiramente mais letal do que a outra.

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Ontem à noite vomitei, ainda estou para saber porquê. Excesso de álcool não foi de certeza. Ou foi da maionese que está no frigorífico há não sei quanto tempo ou foi da água dos fundos que provei. Tinha qualquer coisa estranha, fez-me arder os dedos arderam quando os meti. Vantagens de andar sempre cheio de pequenas mazelas. Tenho o corpo e a cabeça de um elefante e a pele de uma donzela inglesa da aristocracia, século XIX. A verdade é que não acredito nem na maionese nem na água. Foi a tensão a vingar-se de eu não lhe ligar nenhuma.

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O Til acabou preso nas ilhas Caimão. Agora foi transferido para um centro de detenção. O mais provável é ser deportado para a Etiópia. Quando penso no tempo e no dinheiro que gastou para este fim inglório fico revoltado. O inglês com o qual embarcou é um idiota, para além de ser um explorador. Parou em todo o lado até chegar às Caimão e ali fundeou à frente de uma esquadra da polícia. Está preso também, ao menos isso.

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O frango à milanesa estava excelente. Como sempre, sobrou metade. Vai para bordo, será o almoço de amanhã. Acho que não consigo voltar a comer aquele couscous com a maionese. Deve ter sido isso que me pôs a chamar pelo Gregório a meio da noite.

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Duas notas a terminar o dia: a) só passaram três motas e b) estou exausto. O que mais me faz medo no futuro é o cansaço. Estou assim porque tentei pôr o motor no bote sozinho. Foi uma tourada, cujo resultado agora é o motor  não pegar. Tenho de ir a pé para o estaleiro, que é bastante longe. Pelo menos para as minhas pernas cansadas. 

20.5.24

Como adormecer rápida e confortavelmente em três tempos

1 - Deitar-se e procurar uma boa posição (cf. infra);

2 - Deixar o dia sair por todos os poros. É de notar que o dia nos preenche o corpo por todas as frinchas possíveis. Daí a importância do ponto 1: uma boa posição é aquela que permite um deslaçamento total do corpo na sua totalidade (isto é, incluindo o cérebro);

3 - Uma vez o dia expulso, substitui-lo paulatinamente pelo sono.

Está técnica nem sempre funciona. Ou porque não conseguimos esvaziar-nos do dia ou porque em vez de sono entram outras coisas: um amanhã, por exemplo. Ou qualquer coisa que fizemos há duzentos anos e insiste em não nos largar. Nestes casos, o melhor remédio é levantarmo-nos, ir ao frigorífico buscar uma cerveja (sugiro fortemente a Smithwicks, a Presidente ou a Red Stripe) ou um rum (Mount Gay), sentarmo-nos o mais suavemente possível, apreciar a bebida que se deixou escolher e recomeçar. 

Repetir tantas vezes quantas as necessárias (ou enquanto houver rum e ou cerveja).

18.5.24

Emoções, alísios e outras tretas

Estou deitado no poço. Trouxe uma almofada para cima, juntamente com um copo de rum (Mount Gay Eclipse, passe a piroseira do nome),  deixei a música (Carmina Burana do Clemencic) lá dentro e vim para cima.

Penso: é de emoções que quero falar. Ou: quero falar de emoções. Quais? O vento ainda não caiu completamente. Este vento tem um nome: alísios. São os alísios que tornam suportável a vida nestas latitudes. Primeira emoção: ser parte dos alísios. Emoção antiga: vem de 1984, a primeira vez que atravessei o Atlântico à vela. Paráfrase: é nas emoções mais antigas que se fazem os melhores sentimentos. Outra emoção: não vou regressar à Europa a navegar. Vou de avião. Que tristeza! Preciso tanto de umas semanas de mar. Outra emoção: mais uma época financeiramente falhada. Quando aprenderei a viver comigo? 

Emoções. A lista, aqui deitado a ouvir o Clemencic Consort, acariciado pelo rum e pelos alísios seria interminável. Sou melhor a acumular emoções do que dinheiro. E a vivê-las, também. Com elas não tenho a relação diarreica - ou hemorrágica, para os menos escatológicos - que tenho com o guito. Consigo mantê-las comigo, em mim. Consigo vivê-las, senti-las, dar-lhes um destino (se tanto é que se pode chamar destino a uma publicação num blogue).

No fundo, tratar-se-ia apenas de não deixar que estas emoções se transformassem automaticamente em sentimentos, mas elas fazem o que querem e de mim um mero espectador.

17.5.24

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 17-05-2024

Poder-se-ia argumentar que há sítios piores para escrever disparates num blog do que o Lagoonies. Há. Cerca de três milhões, mais coisa menos coisa. Sobretudo a esta hora, em que o rhum punch custa - já aqui o disse - dois euros se for tomado aos pares ou a múltiplos. O dia cai na laguna, a luz do poente esgueira-se por baixo dos tecidos que eles pões para os clientes não ficarem encadeados, a maioria das pessoas está sentada em redor do balcão e à minha frente tenho uma sequência de mesas nas quais a luz escorrega e chega a mim com trejeitos. A música é boa - não fosse o marido da O. músico [não é] - mas demasiado variada para o meu gosto . É daquelas listas feitas para agradar a todos menos aos apreciadores de música clássica. De maneira é aqui que venho. Às vezes tenho sorte e servem-me o punch num copo grande sem gelo, doutras nem tanto e reduzem o copo à dimensão adequada (para eles. Para mim não). Nem reclamo nem peço para acrescentarem spiced rhum. Tão pouco reclamo por me trazerem a bebida mal me sento, sem ter sequer de a pedir. É uma prática que não aprecio muito, mas enfim. Paciência. 

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Gosto de navegar em tudo quanto é embarcação (de recreio. Marinha mercante, de guerra e pesca não obrigado) e dentro dessa navegação prefiro a de vela, por muita tentação que tenha de mudar definitivamente para o motor, por razões carcássicas e financeiras. Há várias razões pelas quais gosto de navegar à vela e uma delas é que a vela é um continuum no tempo. Se nós pegarmos no primeiro homem que se lembrou de pôr um pedaço de pano num mastro e o pusermos numa embarcação moderna, ao fim de meia hora ele reencontrará os movimentos, as funções de cada cabo e cada objecto e saberá orientar-se a bordo. Há uma linha que vem dos primórdios. Uma escota hoje é diferente da escota de há cinco mil anos, mas faz a mesma coisa. O mesmo se pode dizer de uma adriça, de um amantilho ou de um leme - que durante muitos anos foram remos, de resto, de onde o steerboard - estibordo de hoje.

Tudo isto para explicar porque gosto tanto de embarcações tradicionais. Não as oponho às modernas, longe disso, apesar de saber as de hoje mais rápidas e mais seguras do que as de antanho. Gosto de embarcações tradicionais porque a cada momento da história reflectem tudo o que o saber náutico da época permitia - e foi esse saber que nos trouxe ao de hoje.

Por isso fico encantado com todas as iniciativas que promovem as embarcações tradicionais. Dentro destas, as baleeiras dos Açores ocupam um lugar muito especial. São lindas, rápidas, elegantes e a caça à baleia (enfim, ao cachalote) está para o mar como as touradas para terra: a desproporção de forças é enorme. Não há actividade marítima em que a noção de «elo mais fraco» seja tão evidente como na caça ao cachalote dos Açores.

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O. apareceu no Goonies. É o seu aniversário. Ofereci-lhe as fotografias que fiz - ou melhor o uso delas, se quiser. Quem dá o que tem.

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ADENDA - Por causa do aniversário da O., hoje bebi três rhum punch. Pobre sempre, miserável nunca.

16.5.24

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas holandesas, 16-05-2024

Do S. D. ao Lagoonies (Goonies para amigos e família) são cerca de dez minutos em bote. Talvez quinze, no máximo. Venho cá durante a happy hour (cada vez gosto menos desta designação. Significa que as outras vinte e três são infelizes?) porque o rhum punch custa dois euros (caso se bebam dois. Um só não sei quanto custa). Não é tão bom quanto o recordo. Ou então a razão é outra: a O. recusava-se a fazer-me o preço da tal hora feliz porque dizia que os meus punch eram mais caros do que a norma. Agora vergo-me às circunstâncias e não peço nada de especial. É o que vem no copo - sem gelo, porque a malta aqui já sabe que sou mais ou menos alérgico à água, seja sob que forma for. Acho espantoso: bastou-me dizer uma vez. Outra razão pela qual frequento o lugar é a luz do fim do dia. Este café tem uma forma de a absorver que é um desafio para qualquer fotógrafo. E depois - no fim, claro - vem a memória. Essa treta de que não se deve voltar a um lugar aonde se foi feliz é isso mesmo: uma treta. Já fui feliz aqui e se hoje não o sou tão pouco sou infeliz e na verdade estou-me nas tintas para a léria da felicidade e ainda mais para a dos seus lugares. Gosto da luz deste café, da comida quando cá como, do serviço, do rhum punch (se bem pudesse ser ligeiramente melhorado, bastaria arrefinfar-lhe com mais spiced rhum mas agora fica como está), gosto da patroa que é uma pequena francesa viva e espigadota e nunca cá está quando eu venho - talvez veja isto como a unhappy hour, quem sabe? - gosto do trajecto para cá e para lá, gosto da ideia de que para o ano posso vir trabalhar para Saint-Martin se nada se interpuser entre aquilo que quero hoje e aquilo que poderei daqui a quatro ou cinco meses, gosto de tudo menos de algumas coisas que não têm nada a ver com o Goonies e não me apetece mencionar agora.

Para dizer a verdade são poucas as coisas que me apetece mencionar agora: a luz, o rhum punch, a beleza simultaneamente simples e elaborada - ou falsamente simples - do sítio. Quando voltar para bordo vou fazer pão. Tenho o barco cheio de farinha. A esta hora devia estar quase a chegar a Ponta Delgada e ainda aqui estou. Podia ser pior, eu sei. Podia estar no Marin, por exemplo, para onde irei muito em breve. Ou na Baixa da Banheira. Ou noutro lugar qualquer desses que não conheço. A geografia da memória reserva surpresas a quem nela se aventura. Assim, olha: vai fazer pão, pá. Amanhã não precisarás de sair de bordo para o comeres ao pequeno-almoço. Esquece a memória: é esse o destino dela, de qualquer forma, não é? É. Um dia não passará da palavra, vazia para ti e cheia para os outros. Uma espécie de vasos comunicantes. Esvazia-se para uns, enche-se para outros. Não são é os mesmos. Pensa no pão, daqui a duas ou três horas, quente a sair do forno, manteiga da Bretanha por cima, uma rodela de chouriço. 

Troca-se: trabalho «normal» por pão com chouriço, rhum punch no Goonies, passeios de bote na laguna de Saint-Martin, melancolia flutuante e algumas dúvidas sobre o futuro.

Não acreditem na troca. Não há trabalho «normal» que valha isto tudo.

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A happy hour acaba quando tenho de voltar para bordo por causa do fim da luz. Atravessar esta laguna à noite é uma seca. E ainda há quem não acredite em coincidências.

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ADENDA

O pão ficou bom, apesar de ter sido feito um tanto ou quanto atabalhoadamente. Fui ao supermercado comprar cerveja e no caminho decidi que isto hoje vence vinho tinto. Resultado: um Saumur a seis euros que vale isso, nem mais nem menos. Não é exactamente uma pomada, mas não fui enganado. O Saumur tem a vantagem de se poder beber fresco sem perder muita qualidade. (Da pouca que tem, quero dizer.) A coisa acabou por resultar: o cheiro do pão, o vinho tinto (não bebia há mais de um mês), Officium do Garbarek a tocar, temperatura agradável - vim jantar para o poço, lá dentro estava insuportável, com o calor do forno - e o sono, que gentilmente se anuncia.

Gosto de fazer pão e devia fazê-lo mais vezes.

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O gajo da lancha que vai e vem a St.-Bart e fica atracado perto de mim chegou há bocado e está a lavar o bote, apesar de ser noite cerrada. Infelizmente esqueceu-se das luzes de navegação acesas - merda que, diga-se de passagem, acontece a qualquer um.

Gostava de ser skipper de uma lancha a motor, mas maior. Como a Gulf Porsche que está ali ao fundo. Sessenta pés, pelo menos. Semi-rígido. Coisa para dois mil por dia mais gasóleo e comida. Mais dinheiro, mais velocidade e menos trabalho. Parece-me uma boa combinação, por pouco que ligue à velocidade.

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O pão devia ter levado mais sal. Está demasiado OMS para o meu gosto. (Com a manteiga salgada não se nota.)

Fragilidades inexpugáveis

Ou: como fazer um castelo inexpugável com uma baralho de cartas? Com um molho de fragilidades atadas com um cordel como os de salsa nos mercados?

Poesia de emergência

Incapaz de adormecer um gajo levanta-se e vai ao frigorífico buscar uma cerveja. Faz dois ou três comentários disparatados no FB - a hora atenua o disparate - e aparece-lhe uma palavra na cabeça. De onde vem? O gajo não sabe.

Mas sabe aonde o leva. A um poema de Manuel Gusmão que tem guardado no Google Keep porque de vez em quando precisa de poesia tanto como de sono, ou cerveja, ou disparates avulso:

«Revolução orbital: vai-se a rosa transformando
na coisa múltipla, amante e amada, na acção
que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens, 
estações dos dias e das noites, dos anos da história.
Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz
desenham. E a rosa é uma hélice que vibra
no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões,
do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos
que se respondem: como um coração que deflagra
a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces
e o chão sobre que danças.»

De Gusmão a Tamen vai um passo:

"Não durmas, que há uma escada
Para uma noite maior.
Não morras, que há uma espada
Que mata com mais amor.

Pássaro de todos os ramos,
Ó minha esquina tão esquiva,
A verdade é que afirmamos
Pela dupla negativa.

Querer-te: não querer e não querer.
Não fugir: ouvir o vento.
Amar-te é nao me esquecer
Da minha casa e assento."

"Um filho como um verso: neste branco
do mundo, o universo. Nos cinco dedos
da mão todos os ventos, e a rosa
que os respira e dá, vertiginosos."

"Nada a fazer, amor: tu és nascida,
e eu também, por graça ou majestade;
de lados longe e de que portos parte
esta morte insolente e assumida
que se nos dá nos dando a maior parte
do pão que se mastiga e bruxo há-de,
além de miga, ser de vida a vida?"

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 15-05-2024

De maré cheia a maré baixa, desta a maré vazia e agora... Agora resta-me esperar que o nível dos mares suba por aí acima, como bombeiro por uma escada de nós. Estou no zero hidrográfico. Subzero astronómico. Não tarda ando pelas ruas de escafandro. Botas de chumbo já as tenho, com o que me custa mexer-me. E óculos embaciados também, cortesia desta porra deste olho direito, que segue o exemplo do esquerdo aqui há uns tempos. A minha guerra com a carcaça tem altos e baixos, como o nível da maré. Feliz ou infelizmente os ciclos não coincidem. Não sei o que seria melhor: tudo mal e tudo bem ao mesmo tempo, ou tudo caótico sempre? Deixo a questão aos filósofos, pensadores e outros frequentadores da taberna do Tio Rijo.

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Nove e vinte da noite e ainda aqui a escrevinhar disparates em vez de estar na cama à procura da melhor  posição para adormecer. É que o problema não é só com a carcaça. É com a electrónica também. O computador está cada vez mais reticente a pegar e tem as portas USB inoperacionais. O telefone demora horas a carregar, apesar de lhe ter trocado a placa de carregamento há pouco mais de uma semana. Cinquenta euros para o galheiro. Já fui reclamar, claro, mas o aldrabão disse-me que a culpa é da humidade do barco. O power bank tão pouco vai bem. Numa coisa dou razão ao filho da mãe que «reparou» o telefone: aquela bátega de água de há uma semana deve ter feito mais estragos do que os que vejo no S. D. 

Se fosse a pôr em gráfico a minha vida obteria uma belíssima imagem do caos. 

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Felizmente tenho os disparates e posso rabiscá-los. É como o óleo que os antigos deitavam no mar para aplanar um pouco as vagas. Punham uns sacos cheios de óleo no costado, com uns furos, e à medida que o navio ia derivando para sotavento o óleo acalmava o mar a barla. Por incrível que pareça funcionava. Comigo é mais as teclas do computador, se bem também estejam a ageniar. O problema da colocação de uma vírgula desvia-me a atenção dos outros, que subitamente passam ao segundo plano.

Abençoadas vírgulas. Bem dizia o Emílio: «Sonho com um mundo aonde se morreria por uma vírgula.» Eu não morro. Ressuscito.

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Para o jantar ia fazer uma salada de spaghetti, mas aquilo ficou tão bom que a comi ainda morna, antes de ir para o frigorífico. O problema é que estou a comer cada vez menos e ainda não aprendi a cozinhar nem para quando comia normalmente. Tenho salada para dois anos, se a comer todos os dias ao almoço e ao jantar e uma vez por semana ao pequeno-almoço. Ia fazê-la com fiambre, mas tinha chouriço a bordo com uma data limite mais cedo e resolvi-me por este. Não que ligue muito às datas, mas a verdade é que detesto deitar comida fora e não me apetece nada correr riscos. Sobretudo porque o frigorífico já ficou desligado algumas vinte e quatro horas quando apanhámos o primeiro arraial. 

Era a comida da travessia. Esta vai ser de avião, outra vez. Porra! Dupla porra!

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O S. D. tem água entre o contra-molde e o casco, quase de certeza. Isto não são barcos para atravessar uma poça de água, quanto mais o Atlântico. Servem para fazer piqueniques aos fins-de-semana com a familia. E ainda há quem se admire de eu ter saudades do «meu» P., que não passa de uma cabana de madeira rústica ao lado desta luxuosa e confortável residência secundária.

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Quarenta minutos ao telefone com a M. Ao princípio era a rainha das vítimas, como de costume. Ao fim estava aguerrida e cheia de força. Vale a pena ouvir meia dúzia de disparates para obter este resultado, não vale? Vale. A S. sempre disse que sou melhor psicólogo do que muitos colegas dela.

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Em resumo: uma merda de uma éoca, salva pela doutora C. D. e pelo meu filho T. Quem é que falava em caos?

15.5.24

Como um refugiado

«Every heart, every heart
to love will come
but as a refugee
»

L. Cohen, in Anthem

Regresso regularmente a Cohen, como um refugiado.

14.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 13-05-2024

Fui à Sunsail procurar trabalho para a próxima época. Amanhã vou à Tradewinds. Estou farto destes invernos infernais, sem cheta.

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O mais apropriado seria dizer que estou farto de mim, farto de ser como sou, inviável, peixe fora do aquário. Não vale a pena: não mudarei nos vinte anos que me restam de vida. Ou quinze, com sorte.

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Um higrómetro é um instrumento de trabalho básico. Serve para medir a humidade num material qualquer: fibra de vidro, por exemplo. Ou madeira. Ar. Nesta ilha não há um. 

Não acredito. Há-de haver. Mas nenhuma das cinco pessoas / entidades com quem falei hoje tem um. Duas já tiveram, mas um ardeu num incêndio e outro avariou-se e não os substituíram. Isto numa ilha que é um dos pólos mais importantes do yachting nas Caraíbas (em português dir-se-ia náutica de recreio, mas não é a mesma coisa e fica como está).

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V. diz-me que a época em Palma está péssima. Tenho de regressar rapidamente à Lua, de onde nunca deveria ter saído.

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Tempo: as máximas anda não começaram a subir. Mantém-se nos trinta, trinta e um. Em contrapartida as mínimas vieram por aí acima: vinte e sete, hoje e nos dias que aí vêm. A humidade também disparou. Pergunto-me como vai ser o Verão.

Pergunta sem sentido. Ninguém sabe. Ou todos sabemos: quente, abafado, húmido e pluvioso. 

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As saudades do "meu" P. - que não me largam - transformam-se pouco a pouco numa imperiosa necessidade dele. Ao chip do português, que há tantos anos peço me extraiam, junta-se o dos barcos. O Musk não pode inventar uma máquina de extracção de sinapses? Não digo todas, dão jeito. Mas algumas. As que ou não fazem falta ou são perniciosas. Tenho três a tirar fora, Elon.

O mundo, representação pictórica

A ideia é essa: partir a vida aos bocadinhos e viver cada um deles como se fosse o único. Todos ao mesmo tempo, mas cada um um só. O Tiago Taron faz isso nos quadros dele e é por isso que gosto tanto do seu trabalho. Também gosto da Bárbara Assis Pacheco, mas essa não vai aos fragmentos da vida. Vai à essência do que pinta e assim vai à essência da pintura. A Mariola Landowska é diferente destes dois. É uma pintora polaca que vive em Portugal há muito tempo e viajou pelo Brasil e pinta a alegria, a leveza, usa cores vivas. Há outros, claro, mas estes três são os meus pintores favoritos. 

Mas era no Tiago que pensava quando comecei a escrever. Naqueles pequenos quadrados ou rectângulos, nas linhas com pontos de fuga para lá do horizonte. Pequenos segmentos de tempo, de espaço, o infinito cortado em pequenas porções, uma espécie de Aleph em cada quadro.

De tudo o que não sei fazer, pintar e cantar (ou compor música) são o que mais me dói. 

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Tento dividir a minha vida dessa forma e quase consigo. Quase. Nem sempre. O mar meteu-se pela exposição de fotografia, por exemplo. Inundou-a. Afogou-a. A literatura (acho que já posso chamar literatura àquilo que faço, sem me envergonhar nem achar patético) mete-se por todo o lado, por todas as frinchas, aquelas de que falava Cohen. É por ela que entra a luz. O mar, os barcos, este universo de que conheço a língua e os silêncios, que sei interpretar talvez porque é para ele que apontam as linhas que o Tiago pinta quando eu as vejo. Se um dia a Bárbara pintasse o mar tal como eu o vivo as pessoas perceberiam muito melhor o meu mundo do que com os meus balbuciamentos, a minha "inabilidade fatal" (aspas porque cito. Rimbaud, a quem possa interessar).

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Estou em Saint-Martin, o S. D. tem uma avaria, tento resolvê-la, imagino que vivo um quadro composto por fragmentos da realidade e o meu trabalho consiste em juntá-los e dar-lhes um sentido.

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Desse quadro está ausente um bocado: o que representaria os meus livros, também eles fragmentos, também eles um todo com significado para mim, uma vida.

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Faltam os netos. Crescem sem o português que têm de conhecer, porque se não souberem falar português faltar-lhes-á um fragmento importante da sua história, da sua vida.

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Falta o cansaço, a coisa que agora mais me representa e insiste em fugir pelas cores vivas e alegres da Mariola, quando penso nelas.

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Falto-me eu, em suma.

13.5.24

Portaló e outras considerações

Um portaló é aquilo que nos leva ao navio ou à embarcação. Pode ser uma escada, uma prancha, uma "passerelle". É sempre um portaló. "Fazer da quilha portaló" é virar o navio de pernas para o ar. Há mais expressões com portaló, mas agora não me lembro delas. Penso neste termo, de que tanto gosto: portaló. É a porta que te faz entrar no teu mundo, porta que passas desde miúdo, desde muito antes de conheceres a palavra. Desde muito antes de saberes que este é o teu mundo.

Não são as palavras que fazem o mundo. É este que as faz e lhes dá sentido. O princípio não é o Verbo. É o que este designa.

O princípio é portaló. O resto vem depois. Os cheiros, os corredores que te pareciam labirintos, as escadas que ias subindo e que te levavam àquilo que para ti era o céu. Hoje não sobes essas escadas. Desce-las. Mas são as mesmas, o céu é o mesmo. Só mudou de tamanho, de cheiro. O teu céu agora não tem corredores nem anteparas de fórmica nem placas nas portas a dizer primeiro piloto, messe dos oficiais ou merdas do género. Mas é o mesmo: um céu que flutua, navega, requer atenção e carinho. É um céu ao qual te dás muito antes de receberes o que ele tem para te dar.

Ao qual te entregas como se céu e inferno fossem sinónimos.

São. 

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 12-05-2024

Espremendo bem o dia, que sai dele? Coisa pouca. A água continua a entrar no S. D., mas cada vez mais devagar. O Cadisco estava aberto e comprei uma garrafa de Mount Gay Eclipse por dezoito euros e qualquer coisa. Comprei também dois maracujás, o primeiro dos quais bóia agora no copo de Flor de Caña quatro anos que comprei recentemente no libanês pelos mesmos dezoito euros (não é verdade, é efeito literário. Custou-me um euro menos). Oiço Carlo Gesualdo enquanto como os ovos que sobraram do almoço acompanhados por uma tomatada bem puxada - continua a puxar, de resto. Pergunto-me o que sairá amanhã do estaleiro, dos seguros e do proprietário, entidade fulcral no meio disto tudo. Continuo a massacrar-me por não conseguir descobrir de onde vem a puta da água. Gozo a minha novel solidão com um misto de alívio e melancolia. Fartei-me de arrumar e limpar e arrumar e limpar outra vez: um marinheiro não vai para o mar com a sua embarcação suja e não apanha um avião com a sua roupa de mar por lavar com água doce. Lavados e secos, roupa, sapatos e botas. Pronto, foi isto. Parece pouco e é pouco.

Ah, esquecia-me: o meu olho direito, que começou a ageniar há uns meses, está definitiva e oficialmente a precisar de reparação. É a tal história das cerejas em cima do bolo.

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São nove e meia da noite. Faço um café para me ir deitar. (Mentira: faço um café porque quero provar o Mount Gay e apetece-me um café. Mentira. Faço um café porque não quero ir já para a cama e assim tenho de esperar que ele arrefeça. Mentira: faço um café porque me apetece um café, simplesmente. De quantas mentiras é feita uma acção simples como fazer - e beber - um café? Que agora arrefece, mirado com um certo desprendimento pelo rum. Estatisticamente este acabará antes daquele, a menos que encha de novo o copo.)

De repente isto tudo puxa-me para a melancolia e imagino o S. D. a sangrar, mas para dentro. Efeitos precoces do café, sem dúvida.

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Estou completamente farto de tanto plástico, coisa que me parece injusta porque sou com certeza a pessoa que menos se preocupa com a saúde do planeta. É simplesmente que acho enjoativa esta ubiquidade. Não se dá um passo sem tropeçar numa merda qualquer de ou com plástico. 

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Não consigo perceber esta coisa do festival da canção da Euro qualquer coisa. Eurovisão? Não faz sentido nenhum. Não me lembro de ter ouvido uma única música vinda dali nem, muito menos, de ter visto um espectáculo. Nem por um minuto. Não me lembro. No FB vejo algumas fotografias de um monte de palhaços vestidos de panilas ou ao contrário, panilas vestidos de palhaços. (A palhaçada é pior do que a panilada, diga-se de passagem. Quanto a isso, continuo como sempre fui: cada um leva aonde quer e dá aonde pode.)

Não percebo como é que tanta gente vê aquilo e comenta as músicas, os músicos, as classificações e Deus sabe mais o quê. Um dia hei-de ouvir uma música ou duas, só para poder falar. Afinal aquilo é um concurso musical, não de aparências.)

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Tal como previsto, o café acabou antes do rum. Posso ir deitar-me em paz. (Enfim, se é que se pode chamar paz a este ciclone.) 

12.5.24

Anjos, demónios

Eu não tenho um anjo da guarda. Tenho um demónio da guarda que de vez em quando adormece em serviço.

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 11-05-2024

Os tripulantes desembarcaram agora. Fui deixá-los ao novo barco e ficámos de nos encontrar no Lagoonies, para onde vim pôr as escritas em dia e dar de beber à melancolia. Gosto muito de montanhas russas, mas as verdadeiras, de feira, com altos e baixos físicos e carrinhos que vão por ali abaixo a toda a velocidade e enfrentam as subidas com uma facilidade desconcertante. A minha montanha russa é a de sempre: emocional e financeira. Dessa gosto menos.

Apetece-me fazer o balanço da época, mas como ainda é cedo - só termina quando chegar a Lisboa, seja de que modo for - limito-me a um resumo muito resumido. Financeira e meteorologicamente foi uma merda, do ponto de vista da saúde correu mais ou menos bem e ter tido a oportunidade de conviver com o meu filho de uma forma que não fazia há anos uma maravilha. A ver como serão os dias que tenho pela proa. O mínimo que se pode dizer é que não se anunciam bonitos.

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Dois rhum punch no Lagoonies: quatro euros. «Happy hour», explica-me a jovem empregada perante o meu ar surpreendido. Deixo-lhe cinco, o preço de uma cerveja no Arawak. Acresce que os punch são óptimos. 

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Comprei mangas. A primeira não era grande coisa mas soube-me divinamente. O calor a sério ainda não chegou mas a humidade sim. Esta é poca fartou-se de chover e o vento foi sempre demasiado forte. 

Estou cansado.

(Cont.)

11.5.24

"O acaso e a necessidade"

Não sou grande adepto da teleologia, a ideia de que as coisas acontecem com um objectivo. Tão pouco acredito no voluntarismo, no poder da vontade. Não basta querer. É preciso querer, poder, sorte... A receita da vitória é complexa, a proporção dos ingredientes varia. O motor do universo é o acaso, que por vezes se faz acompanhar da sorte e ou da competência e dá bons resultados. Outras vezes o combustível é o azar, a incompetência,  a ganância e temos asneira garantida. Um exemplo recente desta mistura fatal foi a gestão da Covid-19.

Reconheço contudo à teleologia e às suas numerosas primas conspirativas uma qualidade: são  reconfortantes. Se bem eu não perceba de todo qual o ganho que alguém pode extrair de me ver bloqueado em Saint-Martin com o bote a meter água, ou qual o objectivo, ficaria extremamente satisfeito se alguém me demonstrasse por a mais b que estou aqui porque se não estivesse morreria afogado no meio do Atlântico, por exemplo. Ou que há uma conspiração dos estaleiros da ilha e dos iatistas aqui presentes para me reterem e me retirarem os tripulantes.

Claro que acredito piamente que se rezasse muito à Virgem à água deixaria de entrar - tal como se jogasse ao totómilhões ganharia o primeiro prémio. Bastaria querer, em qualquer dos casos. 

Não vou fazer nada disso. Vou esperar por segunda-feira. O calendário é imune ao acaso e não tem a mais pequena ideia, opinião, vontade ou desejo sobre o que eu vou fazer com os dias. 

Tenho que estudar melhor as interacções dos deuses e dos demónios (ou de Deus e do demónio, para os monoteístas). Ainda não percebi se jogam uma espécie de ping-pong cósmico em que cada um detém a bola à vez ou se fazem parte da mesma equipa, alternando de vez em quando aquele que marca os golos.

10.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 09-05-2024

O dia começou sur les chapeaux de roues. A toda a ganga. A toda a velocidade. Convivo mal com mistérios, com entradas de água que não se encontram. Às seis e meia já andava a levantar paneiros, a pôr Betadine numa possível fonte, a preparar-me para mergulhar, a esvaziar completamente o paiol da amarra (não exactamente nesta ordem, claro). Continuo sem saber de onde vem o raio da água, coisa que me tira o sono à noite e a paz durante o dia.

Os tripulantes arranjaram maneira de se ir embora noutro barco. Eu fico, enquanto puder. Tratar de mim está muito alto na lista das coisas a aprender e nunca de lá sai, mas pelo menos já me aparece na mente quando me pergunto o que fazer, tipo geiser intermitente. Pensa em ti. O bote não é teu. Não sigo - ainda - estas injunções, é certo. Porém reconheço-lhes o bem-fundadas que são. 

8.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 08-05-2024

Esta ideia de que um bolo só aguenta uma cereja tem de ser revista. Cada vez me convenço mais de que cabem muitas mais cerejas em cima de cada bolo. A chuva não pára mas isso faz parte do bolo. Amargo, é preciso dizê-lo? As cerejas são outras: hoje é feriado em França, dia da «Vitória» (aspas porque é irónico, refere-se à «vitória» da França na Segunda Guerra Mundial) e amanhã também: Ascenção. Sexta metade da população do país (ilha incluída) faz ponte e só por milagre terei notícias antes de segunda-feira.

Entretanto já lancei os seguros. O óptimo é inimigo do bom e com esta sucessão de feriados e fim-de-semana prefiro ir directamente para a pior das hipóteses. 

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O palito para as cerejas não pára de crescer. Vá lá que ao menos o bolo é grande e aguenta-as todas. Ele são as portas USB do computador, ele é o telefone, ele é o P. que sem mim não quer saber de mim. 

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Louvada seja a ironia. Que seria de mim sem ela?

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Fiz pão e ficou bom. Levei uma marretada com uma proposta do proprietário que me deixou completamente abananado (abasourdi, para quem preferir a língua local). Estou infinitamente grato ao S. D.: é a única coisa neste momento que me dá um rumo. Sei o que hei-de fazer porque sei o que tenho de lhe fazer. Se me pusesse no exterior de mim veria um velho marinheiro a bambolear no cais, garrafa de rum vazia na mão esquerda e cigarro apagado na direita. No outro dia disse ao Jim que aprendi finalmente a escolher os meus clientes. Wishful thinking, Luisinho. Não reclamo: para começar é tarde e para continuar tenho culpas no cartório. Se a mesma coisa te acontece vinte vezes a culpa não é das coisas. É tua. Isto sem esquecer que culpa ou não, a responsabilidade está lá, do teu lado. É coisa que nem te nem se abandona. É tua e só tua. O tempo em que tu eras vítima da família, da sociedade, da Igreja, do código genético, de uma mãe assim ou de um pai assado acabou faz uma data de anos. Portanto, meu caro, agarra-te ao brandal, mija para sotavento e volta para o poço. Quando isto passar poderás beber um rum. Tens uma vantagem: já por aqui navegaste muitas vezes, por nova que seja a proposta do outro. E reflectindo bem, nem sequer é assim tão novidade. É só inesperada, vinda de quem vem. Vai deitar-te, homem. Vai ler, vai dormir, vai sonhar. Sempre te distrais um bocadinho e deixas o mundo em paz.

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 07-05-2024

Não pára de chover e apercebo-me de que há quase duas semanas não escrevo no DV, duas coisas que só muito medianamente aprecio. Com a chuva pouco me preocupo, para além da ocasional saraivada de impropérios a ela dirigidos. Não mudam nada, claro, mas pelo menos aligeiro-me. Já no DV penso muitas vezes. Preciso de escrever isto, contar aquilo, como vou pôr isto em palavras?, etc. Depois não faço nada - nem mesmo um palavrão dirigido a mim próprio. Tem havido coisas a mais, é o que é. Os acontecimentos atafulham-se à porta e acabam por não deixar sair nem um, como numa discoteca cheia de gente em noite de incêndio. A analogia não é aleatória: tem sido realmente uma sequência de incêndios, se bem diferentes uns dos outros.

Começo com o Til, um etíope «clandestino» que ia trazer para Lisboa. Aspas em clandestino: um gajo querer uma vida melhor para si e para os seus filhos («Tens filhos, Til?» «Não, mas quero ter.») não é clandestino. De resto, geralmente e salvo situações particulares ninguém é clandestino. Til é um engenheiro mecânico especializado em engenharia automóvel, nobre como todos os etíopes (pelo menos os que até agora conheci), educadíssimo, ambicioso e inteligente. Passou umas semanas a bordo comigo. Ajudava, era prestável, fazia o que eu lhe pedia para fazer. Tinha uma namorada francesa, uma miúda com quem falei ao telefone algumas vezes, impecável ela também. Til dizia-me que o seu sonho era ir para os Estados Unidos, mas como tinha encontrado a H. ia para França primeiro. Largámos do Marin numa segunda-feira porque no domingo estávamos convidados para um almoço em casa de uma senhora etíope que vive em Fort-de-France. Foi um almoço memorável. O marido dessa senhora é um antigo oficial da marinha francesa agora na reforma com quem mantive uma conversa ininterrupta durante as quatro ou cinco horas que estivemos juntos. Dois dos outros convivas eram um casal também misto (a senhora da Etiópia e o marido martiniquês). Ele é padre na igreja ortodoxa etíope. Abriram recentemente uma loja de comida para fora. Na Martinica os restaurantes exóticos têm bastante procura. Desejo todo o êxito do mundo a esse casal encantador, responsável pelas iguarias do almoço - e de parte da viagem, deram-nos um monte delas. 

Percebi que alguma coisa ia mudar porque no dia da nossa chegada a St. Martin não largou o telefone. No dia seguinte desapareceu o dia todo. Regressou à noite, para me anunciar que afinal ia para a Guatemala. Encontrou um cata que o levaria para lá mediante a módica quantia de dois mil dólares. É aqui que a parte feia da história começa. O gajo do cata é um inglês que anda fugido à justiça do seu país porque o governo quer ficar-lhe com os filhos e ele não quer ficar sem eles. Até aqui tem toda a minha simpatia. O governo inglês tira os filhos às pessoas com uma facilidade inaceitável. O que acho igualmente inaceitável é cobrar dois mil paus mais comida e combustível para uma viagem que na pior das hipóteses vai levar dez dias e à popa. Eram dois «passageiros»: havia outro compatriota do Til, mas não se conheciam. O inglês era feroz: não deixou o rapaz ir para bordo enquanto não tivesse a massa na mão. É uma exploração desumana. Mas enfim, ele lá foi, deixou-me saudades e um grande desejo de que a vida lhe corra bem. Merece.

Depois estas tentativas de saída de St. Martin. A primeira estava a cento e poucas milhas e tive de voltar para trás porque fiquei sem doze volts. Apanhámos força sete, o que sendo muito continua manejável. O que estava como raramente tenho visto foi o mar, cavado e caótico. As vagas vinham de todas as direcções, rebentavam-nos em cima, o pobre do S. D. gemia e abanava como se estivesse em cima de um touro daqueles dos rodeos americanos. Viemos a governar à mão, com água salgada nos fundos mas pouco preocupante. Não era muita. No regresso partiu-se o boomvang (em português chama-se burro). Não me preocupei muito com a água. Tratei de reparar a electricidade (Mike Quinn, se um dia algum dos meus leitores precisar de um electricista em St.-Martin. O homem é excepcional, uma personagem. Já lá vamos) e o burro (FKG, uma das melhores empresas de rigging de quem tive o privilégio de ser cliente. Conhecia-os de estadias anteriores. O trabalho bem feito suscita-me uma espécie de sentimento amoroso. Ver alguém trabalhar bem é como ver num museu as peças dos grandes artistas). 

Largámos a uma sexta-feira. Nunca acreditei em superstições e há muito que deixei de as respeitar por piada ou por amor à tradição. Desta vez devia ter respeitado: nessa noite apanhei um dos maiores arraiais de porrada de que tenho memória. O vento nunca passou de força oito, talvez nove às vezes mas a chuva era absolutamente infernal. Parecia que estava a ser lapidado com pedras pequenas atiradas por um monstro furioso e bêbedo. Ficámos sem electrónica e voltámos para trás. Desta vez não esperei para ver se conseguia resolver o problema. Fiz meia volta (o vento já tinha caído mas nem com o motor consegui  virar de bordo ou cambar. Tive de fazer uma série de tentativas até que lá consegui virar por davante, genoa toda enrolada, motor nas duas mil rotações, a aproveitar a descida de uma vaga). Viemos outra vez a governar à mão e com os fundos cheios de água, agora numa quantidade preocupante. O boomjack partiu-se outra vez. A solução para a electrónica foi encontrada rapidamente, a do burro também, falta encontrar a origem da entrada de água.

Procurei por todo o lado, enchi os fundos de papel, sequei e voltei a secar e sequei outra vez, dei a volta ao bote, esquema de passa-cascos e machos de fundo na mão, um a um, metódica e sistematicamente. Não consigo encontrar. Parece que estou a tentar fazer um buraco na parede batendo nela com a cabeça. Não há maneira. Reduzi as hipóteses todas a uma mas preciso de informação da Jeanneau, de maneira estamos aqui à espera de peças (a placa de circuitos da electricidade que deixou de trabalhar na primeira saída e uma caixa para a electrónica que se despediu de mim com um estalido e um cheiro a queimado pouco depois do temporal, por causa da água nos fundos), à espera da resposta do estaleiro e a rezar para que possamos prosseguir a viagem por mar e não de avião. Da primeira vez saímos a vinte e nove de Abril e avançámos três lugares na marina.

E é isto. Personagens - um engenheiro automóvel etíope que sonha com a América e uma espécie de hippie que percebe de electricidade e electrónica como ninguém mas não tem telefone, tem uma barba até ao umbigo, anda descalço e vive numa épave linda, de madeira, na qual já fez mais de duzentas mil milhas mas está num estado de manutenção deprimente - mau tempo e pior tempo a que se seguiu mau tempo de novo, a velha espera por peças, que é o inferno do marinheiro e a ideia - antiga, muito antiga - de que o que não tem remédio remediado está. É só esperar. De algum lado virá a luz.

E acabará a chuva.