29.9.24

Diário de Bordos - Cádiz, Andaluzia, Espanha, 29-09-2024

Vou para terra vazio e de táxi, regresso cheio e a pé. A lógica das coisas é diferente das coisas da lógica: quando fui de cheio só tinha a fome e o cansaço e não podia com uma gata pelo rabo; voltei depois de um jantar no restaurante Cumbres Mayores (o nome é um understatement) e o cesto das compras não estava assim tão pesado. Pesado estou eu agora, apesar de o jantar ter sido, no fundo, frugal: salmorejo, cinquenta gramas de presunto de belota, um coulant de chocolate com gelado de banana que podia ter sido feito pelo Claudio, vinho e vermute A Copa, um dos grandes aqui no espaço qualificativo do tio Luís. Resultado do exercício: ainda estou cheio de comida e de cansaço mas consegui trazer o cesto que comprei em Vila Real pendurado no ombro; tudo isto no prazo que o Google Maps impartiu: vinte e cinco minutos. Ou pouco mais, provavelmente.

Cádiz é uma cidade maravilhosa e só tenho pena de não vir aqui mais vezes. Parece que tem mar em todas as ruas.

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Contrariamente ao que é habitual, desta vez queria fazer uma festarola para o meu aniversário. Tudo indica que vai ser uma festa com um convidado só.

Diário de Bordos - Vila Real de Santo António, Algarve, Portugal, 29-09-2024

De saída para Cádiz, para um pequeno transporte que vem mesmo a calhar, qualquer que seja o ponto de vista a partir do qual se o observe. Com um bónus: vou sozinho. Nem tripulantes nem proprietários. Só há uma palavra: hallelujah!

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A carcaça vai colaborando. A pé-coxinho, mas colabora. Nada que três ou quatro días de mar não curem definitivamente. Herpes, alergia, constipação de saison (desta vez não chegou a gripe) vão a caminho do passado, todas juntas. Os médicos bem podiam chamam a isto convalescença activa (se calhar chamam).  

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Vila Real de Santo António é um porto agradável, daqueles que nos dão vontade de os referimos com montes de diminutivos.

Resta saber se são todos afectuosos. Não são. 

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Blablacar para Sevilha. O homem chegou com dez minutos de atraso, o que sendo pouco habitual não é grave; e vamos três atrás num Golf, o que é chato, no mínimo. De Sevilha para Cádiz parece que sou o único passageiro e o carro é maior. Grande ideia, esta da Blablacar, se bem como sempre a coisa tenha um pouco degenerado, inevitavelmente. Aqui em Espanha há gente a fazer vida disto. Ou pelo menos complemento de vida, o que leva a estas situações. Por enquanto tenho apanhado poucas.

Somos cinco, incluindo o condutor. Ninguém fala. Parece um avião -  nem um Hola antes de entrarmos no carro.  ¡Qué vaya! Algumas das melhores viagens de carro da minha vida foram na Blablacar. Tenho margem para uma ou outra piorzita.

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Desta vez não paro em Sevilha. Saio de um carro e entro noutro (com um táxi de permeio, provavelmente). É uma tortura. Pequena, mas tortura. Vá lá que tenho uma parte da tarde em Cádiz, outra cidade que o meu coração acolhe com todo o entusiasmo de que é capaz. Isto é: muito.

28.9.24

Equação

Procuro um lugar na vida, se possível em part-time. Estou farto de viver a tempo completo. Alternativamente, um lugar temporário. Meia dúzia de meses, talvez um ano. Viver muito ou é chato ou é cansativo. Ou os dois, a pior mistura. Procuro uma meia-vida, ver se descanso. Viver a tempo completo farta.

O problema é saber se meia-vida não será igual a uma morte completa, como sempre pensei.

26.9.24

Diário de Bordos - Vila Real de Santo António, Algarve, Portugal, 26-09-2024

Vila Real de Santo António. A ideia era passar aqui uns dias valentes a fazer trabalho intelectual mas já se me meteu um pequeno transporte pela proa este domingo. Pequeno ou grande não posso dizer que não, apesar da vontade. Ou melhor, apesar do cansaço. Por outro lado, a perspectiva de ir sozinho para Lisboa entusiasma-me e faz-me esquecer o cansaço e a falta de vontade. Há muito tempo que não faço uma viagem sozinho e este mês em constante companhia faz-me ansiar por uns dias comigo.  

Estes dois dias com a S. (Olá, S.!) deixam-me prever uma boa colaboração para o nosso projecto. A ideia é chegar a Lisboa e voltar para aqui antes de ir para Palma, ver se ponho aquela porra daquele P. a funcionar. Hoje [amanhã] acabam de lhe pintar o convés, falta demasiado pouco para sequer usar a palavra quase. É doentio, de pouco. É doentio, de tanto.

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Compras, lavandaria, almoço, Western Union, rever um amigo - por sinal o mais antigo que tenho ainda em actividade, conhecemo-nos em Quelimane -: a logística do descanso é mais complicada do que o que parece à primeira vista. E de fora ficou o duche, adiado para amanhã sem grande prejuízo da minha higiene ou do olfacto alheio. As temperaturas não querem saber do «Verão mais quente de sempre» e estão como andam (pelo menos para mim) há semanas: demasiado baixas.

Não me posso porém queixar. A roupa está lavada e os dias vão aquecer. Não preciso de ir a Caminha, contrariamente ao que pensava. Agora, o próximo rendez-vous certo seria no dia quatro em Setúbal mas é pouco provável que possa ir, de maneira vou concentrar-me no plano original até ter a confirmação do transporte para Lisboa: descanço, vinho tinto e medronho.

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Reencontro Portugal com a atitude ambivalente de sempre. Pelo menos até chegar a hora de pagar a conta: aí a ambivalência desaparece e é substituída por um grande, grato sorriso.

24.9.24

Diário de Bordos - Comboio Portimão - Olhão, 24-09-2024

O mundo encantado de Luís Serpa: um bilhete que devia ter-me custado três euros e setenta acabou por custar-me treze e setenta, com o bónus de chegar uma hora mais tarde ao destino, que não é bem um destino mas uma etapa. 

Ninguém imagina o que eu compreendo quem não me grama. Aliás, candidato-me já ao lugar de presidente do Clube do gajos que não me gramam, se vier a ser formado. Do que duvido, apesar de ser mais fácil criar um grupo de anti-fãs do que de fãs. Mereço o posto mais do que ninguém porque poucas são as pessoas que me conhecem tão bem como eu. 

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O transporte de Holanda acabou. Vou ver se se confirma um para Lisboa no domingo e tentar pôr a cabeça no lugar, tarefa que me parece ciclópica. Não porque a dita mente seja grande, mas porque está a milhas do resto do corpo - a distinguir de carcaça, que é outra coisa. 

(Cont.)

23.9.24

Diário de Bordos - Portimão, Algarve, Portugal, 23-0-2024

Magnífico jantar no Peixeirada. Lulinhas fritas à Algarvia (o F.), acorda de camarão (eu). Vinho branco do Algarve, leve e ágil como provavelmente o nome quer indiciar: Nova Vida.

O medronho veio directamente do Paraíso e levou-me para lá.

Ao jantar seguiu-se o tradicional bolinho tradicional na Casa Inglesa e bordo, que o frio aperta.

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Amanhã encontro-me com  S. F. por causa do livro que me desafiou a escrever com ela sobre Portugal. Aderi com o entusiasmo do velcro, ver se abro finalmente a válvula a estas palavras todas que se acumulam em mim e não saem.

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Uma palavra de louvor para o F., que é realmente um tipo impecável (impressão esta que amanhã terá o seu desfecho e - tenho a certeza - confirmação).

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Não sou capaz de distinguir uma rosa amarela de um fá bemol, apesar de gostar de oferecer flores e ouvir música.

Mas sou capaz de perceber a cumplicidade que se forma entre pessoas que cantam ou tocam em conjunto. É uma ligação etérea porque feita de sons e densa como betão armado pela mesma razão. 

A rosa amarela? Fica para depois, pode ser?

22.9.24

Diário de Bordos - Sines, Portugal, 22-09-2024

O jantar foi uma merda. Sardinhas assadas no Beicinho, aonde já o ano passado com o P. D. tinha comido mal. Desta vez prometo e juro que nunca mais lá ponho os pés. 

Felizmente o F. apreciou imenso. Antes assim.

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Regresso a bordo, deito-me imediatamente e reencontro aquela mistela de sono, frio e palavras. Ver se expulso estas depressa para dar lugar aos outros dois. Ou melhor: ao sono. O frio dispersa-se por baixo dos dois edredons. 

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A fuga de água doce - vinha dos encanamentos do cilindro de água quente - piorou e hoje ficámos sem água nos tanques. Paciência. Vamos assim para Portimão. Esta porra desta viagem tem de ter um fim.

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A origem das dores de cabeça, hipersensibilidade cutânea e febrilidade difusa dos últimos dias está explicada: violentíssimo episódio de herpes labial. Cada vez que isto acontece tenho vontade de esganar a H. R., magnifica namorada por quem ainda hoje sinto amizade, ternura, carinho, afecto e saudades - tudo entrecortado por raiva ilimitada nos dias em que isto aparece. São cada vez menos mas a intensidade é cada vez maior.

Não precisavas disto, H., para eu não te esquecer. Estás em todas as minhas memórias, as do corpo e as da mente. Ainda há dias andei à tua procura na net. (Não, não foi para te esganar.)

21.9.24

Noite

Sono, frio e as palavras de permeio. Palavras insuficientes para os outros dois e para o que fica por dizer. Este cansaço, por exemplo. A embrionária possibilidade de um transporte do Egipto para o Quénia. A dor no braço esquerdo. Tudo isto é nada, dissolve-se na mistura inicial: sono, frio e palavras para os descrever, para os colar à noite da qual saíram. O frio abusa, aproveita-se do cansaço. Este programa estender-se às palavras. E estas, que fazer delas? 

Levá-las a ver a noite como se levam crianças ao jardim zoológico.


Diário de Bordos - Cascais, Portugal, 21-09-2024

A descida da costa portuguesa nestas condições é uma seca. Não há vento, por causa das orcas temos de vir a rasar a costa - o que aumenta bastante as distância - e paramos todas as noites. Dizer que estou farto é dizer pouco. Valeu o jantar na Póvoa com o D. e agora esta escala em Cascais, para a qual olho com olhos «de passagem», que me fazem ver a beleza que antes não via porque a vivia e como qualquer pesoa sabe, quem vive na - ou com - a beleza deixa de a ver. Aquela frase lapidar de Anaïs Nin «Não vemos as coisas como elas são, vemo-las como nós somos» não se aplica a nada com tanta força como quando visitamos um sítio aonde vivemos. Aonde fomos (verbo ser, não ir). Não se vê o que é, vê-se o que se é, reescreveria eu - acrescentando «o que se foi», com um delicioso duplo sentido.
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Em Cascais venho à Bijou, que é sempre (ou ainda?) uma meia-decepção. Pelo menos tem um bom café e o serviço é simpático e eficaz. Espero vivamente que o dono acerte com o café - não ter café de saco é imperdoável, num estabelecimento que se lançou no café a sério - e ponha wifi no interior para que um pobre marinheiro de passagem possa escrever as suas memórias enquanto bebe um bom café.

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Daqui a pouco largamos para Sines e depois Portimão. Segunda-feira de manhã desembarco, se tudo correr bem. Este pára-arranca é mais cansativo do que passar dias seguidos no mar, mistério que ando a tentar elucidar há algum tempo.  Já tenho algumas pistas mas não passam disso. 

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CLARO QUE CONTINUA. Isto das viagens sem fim é assim.

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Cheguei ao pontão do combustível e voltei para trás. Só fiz uma asneira: foi ter saído do lugar aonde estava. Era mais do que evidente que só um idiota iria para o mar nestas condições. 

19.9.24

Labirinto

A Covid demonstrou à saciedade que as pessoas podem ser estúpidas. Muito estúpidas, mesmo, ao ponto de não saberem o que é bom para elas. Engoliram as tretas mais estapafúrdias - lembram-se da velhinha que foi multada por estar a comer dentro do carro? Ou do polícia a correr atrás de um surfista? Ou das vacinas, meu Deus, as vacinas (anti-Covid. Contra as outras nada a opor)?

Porém, como conciliar isto com aquele princípio base do liberalismo segundo o qual as pessoas devem decidir elas próprias o que querem para si? Talvez tirando a palavra estupidez da equação e substituí-la por histeria. Que é, como se sabe, uma suspensão temporária da razão. 

O problema desta solução é que ninguém nos garante que não haja mais "suspensões temporárias da razão". Como se vê, por exemplo, com os incêndios, as alterações climáticas ou os cachorros ao colo dos donos.

Claro que um outro princípio básico de qualquer liberalismo é que as pessoas têm o inquebrável direito de se enganarem. Como a Suíça amplamente demonstra, é preferível ser o povo a escolher colectivamente um erro a deixar as decisões àquele grupo de suspensores quadrienais da razão que são os políticos nas democracias representativas. Apesar de tudo, as pessoas enganam-se menos e menos vezes.

O que não impediu os suíços de engolirem as tretas covidianas ou, há quarenta anos, a obrigatoriedade dos seguros de saúde, decisão que agora pagam muito caro. 

Isto é um labirinto e quem pensar que é uma longa e límpida linha recta engana-se.

Em cada porto um amigo

Nunca soube o que é essa coisa de "uma namorada em cada porto". Já "um amigo em cada porto" sei perfeitamente: uma bênção. Ontem foi um desses dias. 

18.9.24

Frio, idade

Nao estão mais de dezoito graus em Vigo. A senhora tira o casaco e fica numa camisa sem mangas, sem ombros e sem quase nada até meio das costas. Não lhe vejo a cara, mas é fácil deduzir que já tem idade para ter frio.

17.9.24

Diário de Bordos - Vigo, Galiza, Espanha, 17-09-2024

O T. J. mete água salgada pela borda de estibordo - a do meu camarote, claro - e perde água doce não sei por onde. Não é uma fuga nos encanamentos porque a bomba de água doce não se põe a trabalhar sozinha, não vem dos duches porque a água não está ensaboada, não vem dos tanques porque estão secos como um dia de Verão no Alentejo. Hoje o dia foi passado a levantar paneiros, limpar e secar fundos, espreitar por tudo quanto é canto. Os paneiros estavam aparafusados - disse ao F. que aquilo é um erro e ele ouviu-me, daí o pretérito - e um deles é enorme. Sugeri-lhe que o cortasse em dois. É importante que se tenha acesso fácil aos fundos. Os quais estavam imundos,  como era de esperar. De tudo isto resultou um belo cansaço que a curta sesta não foi suficiente para curar. Se o I. ainda estivesse a bordo teria deixado a seca aos dois. Não estando, não sou capaz de não ajudar, tanto mais que ele merece. Quem não merece sou eu.

Ou melhor: mereço. O meu estúpido optimismo consegue sistematicamente levar a melhor à experiência. Isto dito, continuo a preferir os pagamentos em modo lumpsum aos mais habituais ao dia ou à milha. Não posso é fazer asneiras como esta. (O que basicamente equivale a dizer que o Sol não devia levantar-se todos os dias.)

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O técnico da Raymarine veio a bordo. Trocou alguns cabos e fichas e disse-me que se tivesse problemas amanhã lhe ligasse. Dos três que tivemos a bordo é o único que me inspirou confiança. A ver vamos, como dizia o ceguinho. 

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Próxima escala: Lisboa.

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Excelente vermute no café Komerzio: Zecchini. Caseiro e artesanal, diz-me o empregado. Não é impossível. Mas de que é bom não há a mais pequena dúvida.

16.9.24

Diário de Bordos - Vigo, Galiza, Espanha, 16-09-2024

A intenção não era escrever já. Mas paciência, a intenção que se aguente. Estamos a chegar a Vigo. F. governa, já há bastante tempo. Tínhamos combinado uma hora cada um, mas o rapaz não quer deixar a roda, não sei porquê. Talvez para se redimir de ontem, que não fez a ponta de um chavelho. Passou o dia enjoado e aterrorizado, duas coisas que não costumam excitar positivamente a motivação de alguém para fazer seja o que for. Apanhámos badanal, como previsto e durou pouco tempo (idem). Cinco ou seis horas a força oito não é razão para grandes sustos, mas F. já vinha enjoado desde a noite (vínhamos com cinco, seis desde as quatro da manhã e catrapum). De qualquer forma o piloto trabalhava - trabalhou até às seis ou sete da tarde, hora a que resolveu que chega é chega. Falei com Finisterra Traffic e não havia aviso de orcas, de maneira pus rumo directo a Vigo e viemos às meias-horas de leme cada um. Logo a seguir decidi parar em Corcubión, uma pequena e belíssima aldeola de pescadores aonde passámos a noite e aonde comi o melhor polvo da minha vida.

É curioso, isto: cada vez que venho à Galiza como o melhor polvo da minha vida. Mas cada um deles não substitui o anterior. Junta-se ao grupo. Ou seja: tenho uma colecção consequente de melhores polvos da minha vida.

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Vigo:
A Ana V. veio receber-nos ao pontão e andou comigo até agora, ou quase (são dez para a meia-noite, se por acaso alguém perguntar). Estou cansado mas não me apetece ir dormir. Fui deixar a roupa lavada a bordo e voltei a sair. O T. J. está todo molhado, cheio de água e se há coisa que não suporto num bote é que meta água. Neste caso é pior: há águas doce e salgada - esta veio do arraial, mas aquela não faço a mais pequena ideia de de onde vem. Amanhã temos o técnico da Raymarine a bordo. Na verdade as nossas escalas são decididas mais pela electrónica do que pela nossa vontade. Além disso, vamos ter de levantar os paneiros todos, ver se descobrimos de onde vêm as águas. Os quais estão aparafusados, como não podia deixar de ser. Não quero descansar hoje. Nem nunca, de resto (adolescence, quand tu nou tiens... C'est pour la vie). O cansaço de amanhã e o de ontem e hoje estão bastante diluídos.

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Mas a questão não é nada destas coisas, que no fundo não passam da superfície, da espuma, por assim dizer. O cerne da questão é a minha relação com os amadores está a mudar e não sei se para melhor. Cada vez tenho menos paciência para ensinar seja o que for. Cada vez tolero menos os gajos que «querem aprender» (aspas porque cito). Quem vem para o mar devia saber que no mar há vagas, não? E mais: que o terror nunca resolveu coisíssima nenhuma e estar aterrorizado é particularmente inútil - por muito que tenha de reconhecer que ontem o homem não fez falta nenhuma, pelo menos enquanto o piloto funcionou. Estava sol, o que já é bastante bom. Força oito com chuva, frio e céu encoberto seria muito pior.

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Um marinheiro tem um certo conjunto de defeitos. Um escritor também. Por vezes esses conjuntos anulam-se e sai um Slocum. Outras - em minha defesa, a maioria - eles adicionam-se e saio eu. A lotaria genética tem tanto de álgebra como de psicologia, ciência do caos e do acaso, porções de sorte e azar, talento e preguiça (talento tendo aqui o sentido de «aquilo que para cada um nasce»).

Eu nasci para ser marinheiro e escritor, por ordem decrescente das inevitabilidades. O que me leva a olhar para toda a gente como se por um espelho partido: de um lado o que pensam, do outro o que pensam de mim. Esta última imagem perde-se, reflectida em milhares de pequenos cacos do tal espelho e eu não consigo fazer seja o que for com tantos pedaços das opiniões que me tocam.

Há excepções. claro. Pessoas para quem aquilo que me vêem me chega intacto e é impossível de ignorar.  Fica para depois. O café Komercio está a fechar e tenho de me despachar. Uma coisa é certa: quem faz parte deste grupo não é gente. São semi-deuses, única característica comum a todos os meus amigos.

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Vigo não tem nem metade do charme arquitectónico da Coruña mas as pessoas são no mínimo igualmente simpáticas. E tem uma vantagem grande: o maldito cabo já está para trás. Agora é sempre a descer, orcas ou não.

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O café Komercio fechou e a perene dúvida reaparece: bom senso ou bom senso? Dormir ou mais um copo?

12.9.24

Silêncio?

Nunca conseguirei perceber as pessoas que dizem que gostam de barcos à vela por causa do silêncio. Não há silêncio nenhum num veleiro. Isto fala pelos cotovelos e quantas vezes aos gritos, como agora. E estamos na marina.

Hopper

É um quadro do Hopper: uma casa à beira-mar com uma porta aberta, a luz entra a jorros e iumina uma parede. Não há personagens, só a luz, as paredes  o mar, tudo geométrico e apesar disso o quadro respira vida: a nossa, tanta é a vontade que nos dá de estarmos naquela casa. A luz na parede de uma casa com uma porta que dá para o mar. Adivinho que teria espaço para pôr os meus livros e penso que poderia estar ali, à porta, que sou eu a personagem que só ali está na imaginação ou no desejo de quem vê o quadro.

(Edward Hopper, Rooms by the sea, óleo sobre tela, 1951.)

Christian Bobin, ainda e sempre

"Je cherche la vie délivrée de la vie, l'amour délivré de l'amour, ce froissement d'or d'un diapason, cette note pure qui tremble bien avant notre naissance et après notre mort."

Christian Bobin, Le Murmure, ed. Gallimard 

(Obrigado ao Emanuel Cameira e à sua Barco Bêbedo por me ter feito conhecer Bobin.)

(Cont.), beleza

- Como se a beleza fosse um mundo, um mundo que não admite a mentira - como o mar, de resto, não se pode mentir ao mar, no mar. A beleza é assim. A mentira é detectada e expulsa imediatamente. Talvez seja por isso que somos "oprimidos pelas imagens da beleza": não há escapatória, não há aquelas vias nas autoestradas para os camiões que ficaram sem travões. Só há a beleza e a sua ausência. Não há espaço para a mentira. A beleza contém em si a verdade e só a verdade.

- E o amor, que fazes tu do amor?

ADENDA 
"Tout amour est divin. J'entends par "divin" la vie humaine, rien qu'humaine, délivrée d'elle-même."

"Si tu n'écris pas contre toi tu n'écris rien."

(Christian Bobin, Le Murmure, ed. Gallimard.)

Glossário parcial

Fragmento (ou por vezes Fragmentos) são posts feitos a partir de coisas que escrevi em correspondência privada. Auto-citações, por assim dizer. Chamam-se fragmentos porque o são, regra geral. Às vezes peço autorização às pessoas a quem a correspondência era dirigida; outras não. Depende não sei bem de quê, mas depende. Assim de repente, diria que depende do acaso.

Há alguma coisa que não, Sigmund?

Fragmento

Como a relação assimétrica entre a beleza e a verdade: nem tudo o que é verdadeiro é belo, mas tudo o que é belo é verdade.

11.9.24

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 11-09-2024 / II

O homem põe e o Raymarine dispõe. Desta vez foi o piloto. Ainda pus a hipótese de governar à mão até La Coruña, mas felizmente o bom senso interpôs-se e voltei para trás. Com dois tripulantes inexperientes e um braço esquerdo que não só não serve para nada mas também provoca dores intoleráveis continuar teria sido uma idiotice sem fim. Aparentemente o problema está no fluxgate, nome chique para agulha digital. (Agulha sendo o nome chique de bússola, se por acaso.)

De modo cá estou de novo na brasserie La Hune, que faz ofício de escritório e cantina. O técnico volta amanhã a bordo, mas só no fim da manhã. Até lá, faço como a Penélope mas sem um sudário que tecer. E vou tratando do P., para quem crair chatices é mais do que um passatempo. É uma missão.

É a segunda vez que o Raymarine nos causa um problema - à chegada a Dunkerque e agora - mas não é nisso que penso. É no facto de que nós, skippers profissionais, estamos cá para quando as coisas correm mal. Quando está tudo bem ninguém precisa de nós - ou pelo menos pensa que não precisa. Mas depois o vinho azeda e quem está para o beber?

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 11-09-2024

Vito é um sem-abrigo que dorme numa na porta de um prédio perto do meu escritório. Vejo-o todos os dias. Começámos por nos cumprimentar gentilmente mas hoje, passados meses da sua instalação ali, falamos quase todos os dias. Vito arranjou um sistema tão engraçado quanto eficaz de pedir: a meio da tarde mostra uma folha A4 plastificada na qual diz «Mais dez euros e atinjo o objectivo diário». Isto tem piada porque num quarteirão de bancos e de empresas as pessoas são sensíveis à palavra «Objectivo». Estou longe de ter a certeza que aquilo seja verdade. Vito nunca me disse qual era o seu objectivo diário. Um dia dei-lhe os dez euros para ver se ele continuava com o papel na mão. Não. Fora-se embora, beber «metade do objectivo», aspas porque cito. «A outra metade poupo.»

Nunca percebi o que fazia ou tinha feito antes de se encontrar na rua. Ele não mo disse e eu não lhe perguntei, reflexo de simetria que tenho desde a jovem idade adulta, já lá vai um bom par de semanas.

Hoje voltei para o trabalho depois de um almoço tardio. Vito tinha o cartaz à vista mas a sua expressão fez-me parar. 
- Que tens? Não estás com boa cara.
- Estou cheio de dores em todo o lado. Se o meu futuro vai ser isto, despeço-o.
- Talvez bastasse trocá-lo por outro mais confortável, não?
- É mais fácil trocar de passado do que de futuro.
- ...
- Estou morto de dores e quase morto de não morrer delas. «On est tous des farceurs. On survit à nos problèmes.»

Nunca o tinha ouvido falar francês, nunca imaginei que conhecesse Cioran. Fui a um Multibanco, levantei o máximo possível (quatrocentos euros, vivemos num país de tesos) e dei-lhos. 
- Enfia-te num sítio qualquer longe da minha vista, pode ser? Confortável, se possível. Se quiseres eu reservo-te um quarto. Obrigado. Se morreres avisa-me antes, por favor. Obrigado. E se precisares de mais para atingires o objectivo da semana avisa-me também. Hoje é tudo o que tenho disponível.

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Hoje tenho uma janela de tempo para largar. Vamos com a maré da tarde. O tempo continua frio e húmido no limte da chuva. Entreguei a bicicleta, bebo o último par de runs (St. James a quatro e meio? Só tenho pena de não poder beber mais), consulto a previsão - não mudou, isto vai ser uma merda até Ouessant - e digo-me que se amar alguém é amar os seus defeitos o princípio pode ser aplicado a tudo, incluindo o trabalho.

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«Pelo menos não gastas», diz-me V. «Não gasto? Não gastaria se não houvesse livrarias e rum nos restaurantes. Havendo umas e outros, a carteira não tem descanso». Vá lá: gasto pipas em livros e frasquinhos em rum. Se fosse ao contrário seria pior.

9.9.24

Convalescença

O meu ano de 2023 foi horroroso e pensei que 2024 seria bom. 

Não estava a ver as coisas como deve ser: o ano passado foi uma doença e este é a convalescença. 

ADENDA: Com vontade de se transformar em recaída.

Mixed feelings, (Cont.)

O título da fotografia bem podia ser mixed feelings, se eu lhes desse títulos. Não dou e menos ainda em inglês. 

Mas a pergunta é: de quem são esses sentimentos ambíguos? Da natureza, o Sol e os nimbus que se afastam ainda cinzentos, parede quase ameaçadora (está a afastar-se. Se não estivesse, sê-lo-ia)? Ou meus, encantado pela luz, cheio de frio porque estava no salão e quando vi que havia luz fui a correr pegar na máquina por pressentimento, mero pressentimento e vim para o poço cheio de frio por causa do vento, também,  e a luz estava a desaparecer, tive uma sorte danada, apanhei-lhe o último estertor e seria a esta mistura de exaltação, frio e sorte que me referia?

Vá lá saber-se. Há sentimentos contraditórios, sim, porque me quero ir embora e ao mesmo tempo gosto desta região e tenho pena de não a percorrer com mais pormenor.

Sim, foi um dia de sentimentos confusos, contraditórios, mas haverá outros? Isto é: havê-los-á que não sejam assim? Isto é: para que servem os sentimentos se não forem como um choque frontal entre dois carros a toda a velocidade? 

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 09-09-2024

 «A minha agenda é feita de água», dizia hoje a um amigo. «E não sou o único a escrever nela». Depois acrescentei: «Geri-la é como para um doente de paralisia cerebral fazer malabarismo com seis bolas». Tenho a confirmação disto todos os dias. Hoje havia dúvidas sobre a largada por causa de um ataque de orcas aqui perto. Chegámos todos à conclusão de que saíamos, mas quando depois de almoço cheguei a bordo fiquei a saber que a bomba de água de arrefecimento do motor tinha uma fuga, provocada provavelmente por um o-ring defeituoso. Sendo hoje segunda-feira todos os sítios aonde se poderia encontrar a dita peça - um anel de borracha de dois centímetros de diâmetro - estão fechados. Acontece que o tempo não nos deixa sair amanhã e quarta está longe de ser seguro. Ou seja: a minha hipótese de um fim-de-semana no Porto foi para o galheiro.

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O S/Y J.T. é um Bavaria 49 de não sei que ano. O proprietário diz que tem trinta anos, mas deve ser um arredondamento. Muito menos não terá com certeza: ao fim de uma semana, o bote parece sólido e bem construído. Foi comprado a um senhor que queria fazer dele a sua residência secundária mas enviuvou e abandonou o projecto. 

Resultado: 

- Baterias: 4 x 190 aH;
- Equipamento: 1 eólica; painéis solares; 1 gerador; 1 máquina de lavar a roupa; uma máquina de lavar a loiça (nunca utilizada); ar condicionado; aquecimento.

O inversor está permanentemente ligado: o café é feito ad libitum numa máquina de 220. Há máquinas, ferramentas e sobressalentes - menos o-rings, claro - suficientes para se montar uma oficina. Dizer que tudo isto é inversamente proporcional aos conhecimentos de navegação do senhor ficaria muito aquém da verdade. A minha perene pergunta mantém a sua perneidade: porque é que esta gente não compra uma casa ou um camping car?

(Devo dizer que lhes estou infinitamente grato por comprarem barcos e me contratarem.)

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Almoço no Café du Port, convencido de que seriam os últimos mexilhões decentes antes de muito tempo. Não estavam decentes. Estavam sublimes. 

8.9.24

Diálogo, carcaça

Pequena nota que não será lida por quem o deveria ser: não sou hipocondríaco. De longe. Nunca fui, nunca serei. Entrei simplesmente numa fase do meu diálogo com a carcaça de que não percebo metade (do diálogo, não da fase. Essa percebo-a perfeitamente).

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 08-09-2024 / II

Roscoff é uma pequena cidade na Bretanha, «ville de caractère», segundo a placa à entrada quando se vem da marina. Passei aqui dois ou três dias há coisa de um ano e ainda me lembro destas ruas e respectivas casas, sóbrias, quase austeras (o quase deve-se às portadas pintadas de cores vivas, pied-de-nez ao nevoeiro, à chuva, ao frio e a tudo o que faz da Bretanha o que ela é). Pergunto-me se seria capaz de viver aqui e a resposta é veemente: não, não seria. Demasiado longe de Paris e demasiado perto de nada. Enfim, talvez de Brest - uma hora de carro, diz-me o Google Maps.

De qualquer forma é uma falsa questão e não tem nada a ver com o clima, com a austeridade das ruas - que não deixa de ser bela, de resto - com a distância à «cultura» (aspas porque é trocista). Cada vez me é mais evidente que não consigo viver longe da minha língua, por muito que o seu país me decepcione. 

Na verdade, olho para trás - para muito longe atrás - e vejo que este dilema não é de hoje. É de anteontem, de antes de anteontem, de sempre. Tenho de começar a andar com a língua atrás, está visto. É um dilema que não sabia formular até há bem pouco tempo, daí tantas hesitações e tantos ziguezagues. A capacidade que ser capaz de exprimir claramente qualquer ideia tem de a tornar operacional é um fenómeno. Pergunto-me se os gansos, os bonobos ou as putas da orcas a têm. Estas últimas têm, de certeza. Bastaria explicar-lhes claramente que atacar-nos poderia ter custos. Infelizmente andamos a dar voltas ao penico em vez de lhes explicar clara e firmemente que os nossos lemes não são brinquedos.

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Em resumo: estou ansioso por chegar ao Porto.

Biografias, vantagem

A vantagem de ler biografias depois de uma certa idade (do leitor, não do biografado) é ficar-se a perceber onde e porque se falhou. 

Ou será "desvantagem"?

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 08-09-2024

Frio, chuva, mais chuva e frio. Estive aqui faz agora um ano, mais dia menos dia e queixava-me de a temperatura não passar dos vinte e dois graus. Bem, agora está nos quinze e vai subir até aos dezoito, diz-me a meteo da Microsoft, ignoro qual seja. Tanto o GFS como o ECMWF - consultados por curiosidade - apontam para dezassete. O meu termómetro interno diz simplesmente «Frio, demasiado frio». Se bem na verdade a chuva me custe mais a suportar. Enfim, é o que é.

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Um dos tripulantes - o sobrinho - descobriu ontem que na segunda que vem tem de estar na Holanda, por causa do trabalho. Resultado: o plano agora é ir daqui directamente ao Porto. Queria parar na Corunha para adquirir material defensivo anti-orcas mas parece-me que vou ter de ir sem isso. Merda de tempos estes em que a única espécie não protegida é a humana.

Isto dito, o jovem é um tipo porreiríssimo, um excelente tripulante apesar da sua total inexperiência e tenho pena de o ver partir.

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Descubro uma inusitada e até agora insuspeita atracção pela palavra «amanhã», exacerbada pela hiper-actividade dos meus tripulantes. «Deus fez o mundo, os holandeses fizeram a Holanda», dizem eles. Agora que a Holanda está feita continuam a fazer sem parar. É vertiginoso, tanto «fazemos agora, que fica feito». Também já fui assim, penso, mas agora não sou. Amanhã é uma palavra deliciosa, terna, acariciadora, carinhosa. «Não deixes para amanhã o que podes fazer depois de amanhã», dizia a piada do MAD Magazine que tantas vezes usei ironicamente. Pois agora ganhou estatuto de primeiro grau.

7.9.24

Diário de Bordos - No mar ao largo de Guernsey, Ilhas Anglo-Nornandas, 07-09-2024

O raz Blanchard - também conhecido por Alderney Race - apresentou-se com oito nós de corrente contra, a que o T. J. reagiu muito apropriadamente com um VMG que oscilava entre os zero ponto seis negativos e os zero ponto seis positivos, apesar de o motor vir no máximo admissível - ou talvez por isso. O vento estava fraquinho e de popa. Ou seja: podia escolher entre a Scilla da popa arrasada e a Caribdes da corrente na amura. Escolhi esta última, desenrolei a genoa e orcei. O VMG passou para um a um vírgula dois positivos e eu só tenho pena de não ser de dia, para ver esta correnteza toda. A certa altura tive de fazer leme porque o piloto não aguentava e agora escrevo isto já sem motor, a um largo, seis nós (a corrente ainda não virou), uma noite até aqui linda e estrelada mas agora totalmente coberta, as luzes das anglo-normandas a estibordo e as de França a bombordo, com um bocado de frio e o ombro esquerdo a massacrar-me e não consigo pensar senão na sorte que tenho, no que isto é tão bom e em que raio fiz eu certo, que ainda não percebi?

Os tripulantes - o dono e um sobrinho - são encantadores, holandeses e falam mal inglês,  qualidade que aprecio bastante. Percebem pouco de navegação (à vela ou a motor), outra benfeitoria - se percebessem não precisariam de mim.

É verdade que navegar com pessoas inexperientes e que querem aprender tem os seus inconvenientes,  o menor dos quais não é o suplemento de trabalho. Zelar por três fontes potenciais de erros é mais trabalhoso do que preocupar-me só comigo e com as minhas asneiras. Mas enfim, posto no prato da balança isto não pesa. E agora, sozinho no poço, quase com Jersey pelo través, o piloto a dar conta do recado... Que mais querer?

[Eu digo: que o vento não ronde já a leste e espere pela hora da previsão.]

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Estou tão cansado que não é apercebi sequer de que o estava. Foi preciso chegar ao café para ver que mal tinha forças para falar. 

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O tempo não ajuda. Um bocadinho de sol não faria mal nenhum. Chuva e frio no princípio de Setembro fazem.

6.9.24

A relação inexistente

A relação dos portugueses com a ironia é uma relação triste, desolada, inexistente por abandono de uma das partes.

Tal como com o humor, de resto. Não é por acaso que os nossos humoristas se contam pelos dedos de uma mão (os Gato Fedorento contam como uma unidade). E que Bruno Nogueira (por exemplo, um entre muitos) seja considerado humorista.

"Mais vale cair em graça do que ser engraçado" está ao nível de "um burro carregado de livros" para nos definir como povo.

A ironia e o sarcasmo são recebidos em Portugal como as noventa e cinco teses de Lutero o foram em Roma. Com uma diferença grande: pelo menos o Papa percebia o que o Martinho dizia.

4.9.24

Reedição - Rabindanath Tagore

Naqueles dias em que um gajo precisa dolorosamente de ler Tagore e não tem os livros: obrigado, Google.

"Keep me fully glad with nothing. Only take my hand in your hand.
In the gloom of the deepening night take up my heart and play with it as you list. Bind me close to you with nothing.
I will spread myself out at your feet and lie still. Under this clouded sky I will meet silence with silence. I will become one with the night clasping the earth in my breast.
Make my life glad with nothing.
The rains sweep the sky from end to end. Jasmines in the wet untamable wind revel in their own perfume. The cloud-hidden stars thrill in secret. Let me fill to the full my heart with nothing but my own depth of joy."


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“I am the boat, you are the sea, and also the boatman.
Though you never make the shore, though you let me sink, why should I be foolish and afraid?
Is reaching the shore a greater prize than losing myself with you?
If you are only the haven, as they say, then what is the sea?
Let it surge and toss me on its waves, I shall be content.
I live in you whatever and however you appear.
Save me or kill me as you wish, only never leave me in other hands.”

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"Where roads are made I lose my way.
In the wide water, in the blue sky there is no line of a track.
The pathway is hidden by the birds' wings, by the star-fires, by the flowers of the wayfaring seasons.
And I ask my heart if its blood carries the wisdom of the unseen way.”

Diário de Bordos - Dunkerque, França, 04-09-2024

O homem põe e o AIS dispõe. Mais um dia em Dunkerque.

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- A vida é um concurso de tiro ao alvo para cegos, não é?
- Para cegos e para zarolhos.

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"Si tu n'écris pas contre toi, mieux vaut ne pas écrire."

Christian Bobin, in Le Murmure, ed. Gallimard.

(A citação é de memória, mas não anda longe do original.)

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Um gajo navega três dias com holandeses e apercebe-se dos intransponíveis abismos culturais que nos separam. (De caminho, também de porque é que eles são ricos e nós não,  mas isso fica para outra missa.)

O direito à placidez devia fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se calhar faz, eles é que não sabem.

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Gastei uma pipa de massa em livros e um frasquito pequenino em rum. Devia ser ao contrário,  mas isto anda tudo invertido.

(Cont.)

3.9.24

A cor dos teus cabelos

Basicamente sei que estamos quase no Outono porque tenho a pele seca apesar de tudo o que andei hoje; e bebi vinho em vez de cerveja; e porque a luz do poente, filtrada pela humidade, ilumina estes prédios tão feios e fá-los parecer bonitos, coisa que só um poente outonal - ou primaveril, mas não estamos quase na Primavera - conseguiria

Contudo, estes são métodos básicos. De uma forma mais elaborada, poderia ir ao calendário astronómico e ver que o equinócio vai ser dia vinte e dois ao princípio da tarde, daqui a duas semanas e meia. Ou, melhor ainda: dar um passeio pelo parque, esse parque aonde tantas vezes fomos e apanhar as folhas que já têm a cor do teu cabelo. Traria tantas...

Diário de Bordos - Dunkerque, França, 03-09-202

Não é impossível que a minha vida tenha sido uma sequência de oportunidades perdidas.

Do que não há dúvida, porém, é de que as perdi com estilo.

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"Dunkerque é uma cidade feia", penso. "E eu, sou bonito?", continuo logo de seguida.

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Fala-se muito na navegação em solitário, esquecendo que navegar com tripulação inexperiente é muito mais cansativo. 

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Escala forçada em Dunkerque, porto aonde já não vinha há quarenta anos. Assusto-me ao ver o que da cidade a minha memória reteve: quase nada. Quem foi que esteve aqui? Eu ou outro eu? Esta cidade faz como poucas parte do meu presente - parte da minha vida - apesar de só cá ter vivido quatro meses. Lembro-me tão pouco da cidade em si... Recordo alguns episódios, claro. Bons, maus, lamentáveis, felizes. Mas nada das ruas nem do porto - aonde trabalhava.

Como se aquelas memórias pudessem ser de outro sítio qualquer.  Não podem, claro: a D., o Jean-Paul da Pilotine (o bar já não existe) e as dezenas de outros que esqueci eram o que eram porque a cidade os moldou assim.

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Largamos amanhã: a avaria do GPS está resolvida (espero - era um problema informático e não de material. A ver.) e a meteo vai ajudar. Gostaria muito de passar aqui mais uns dias, mas não troco o presente pelo passado nem o que foi pelo que poderia ter sido.

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O GPS avariou a cinquenta milhas daqui. Quem conhece a zona sabe a confusão que isto é: lanes, baixios, bóias, wind farms, correntes, o diabo a quatro. Fazê-las com uma aplicação no telefone foi uma seca mas confirmou que fiz bem em ter comprado as cartas para aquilo.

Além disso, permitiu-me comparar em condições reais o i-Boating (doze em vinte) com o Savvy Navvy (um em vinte). A próxima a ser testada é a Navily.