29.6.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-06-2024

A sesta foi tardia e quando acordei já era quase hora de jantar. Lembrei-me do polvo à galega do Jaume, que a esta hora está quase vazio e foi aqui que vim. Depois? Não sei. Talvez Moltabarra, talvez 7 Machos. Estou a precisar de ver gente e ouvir barulho.
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O D.A.D.A. - dói aqui, dói ali - continua pujante. Agora é a perna direita. Tenho-a tratado com um comprimido efervescente que é uma mistura de tramadol e paracetamol. Hoje experimentei o comprimido dissolvido em cerveja em vez do habitual copo de água e parece-me que o resultado é bastante melhor. O fabricante afirma que aquilo acabava em Setembro do ano passado. Visivelmente não conhece os efeitos rejuvenescedores da cerveja. O único efeito negativo é a alteração do gosto, que fica a parecer beer shandy. Não sou totalmente objectivo e acredito no efeito placebo: vou repetir a experiência.

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Acordo cansado, adormeço cansado, durmo cansado. A continuar assim até morto estarei cansado. 

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O governo de Mallorca - ou mais provavelmente a câmara municipal - lançou um concurso de ideias para «reformar a Plaza Mayor». A melhor ideia seria não lhe tocarem, mas duvido que tenha muito êxito. O frenesi dos políticos é imparável. Excepto na Suíça, porque esbarra contra a opinião das pessoas. Duvido muito que lá conseguissem «reformar» aquela sublime praça.

(É possível que o concurso se refira ao centro comercial do subsolo. A ser assim, já cá não está quem falou.)

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Continuo a comprar livros como se eles me salvassem do cansaço. Como se me salvassem da forca. Do sono. Desta quantidade de mulheres bonitas que desfila à minha frente. Como se me salvassem de tudo menos desta beleza toda, deste calor reconfortante, deste bar tão bonito, desta bicicleta que me espera lá fora, desta amiga que em breve irei buscar ao aeroporto, destes netos que tanto me faltam.

Não os leio, mas pelo menos fazem-me escrever.

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Dois cafés, duas hierbas secas e o cansaço atenua-se. É visivelmente um cansaço solúvel.

Ou solucionável, vá saber-se.

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ADENDA

Ao fim e ao cabo foi a cerveja que decidiu: o 7 Machos tem Modelo e a minha preferência por cervejas latino-americanas fez ouvir a sua voz.

Escolhi bem: está o Alex, a Lynn e respectivo (nunca me lembro do nome do homem), está o Johnson, a Modelo não está muito gelada mas o Alex pôs a próxima no congelador, a Lynn continua linda e feliz, as cachopas giras e espero que felizes também. 

O novo local é indiscutivelmente melhor e enquanto a cerveja arrefece bebo uma margarita rápida, que não quero dar falsas expectativas à BH Glasgow Vintage. 

(Escolhi um canto do bar quase quase equivalente ao outro. Já só me falta resolver o quase.)

[Resolvido.]

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Duas Modelo, uma Margarita, dois maricas que se beijam na boca, quatro miúdas lindas que gritam como se não houvesse amanhã e mostram as pernas e as barrigas como se precisassem de dizer aos maricas que se enganaram (não precisam. Eles não se enganaram. São grandes, maiores e vacinados. Mas que elas são giras são. Todas).

A Modelo continua a não estar suficientemente fria.

A vida é bela, o 7 Machos está  cheio e eu estou sentado num canto do balcão a ver e a ouvir. Não posso ignorar. 

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As pequenas da mesa à frente do meu cantinho de bar falam cada vez mais alto; os maricas, visivelmente apaixonados, foram-se embora; o bar parece uma fábrica de imprimir dinheiro.

Eu penso naquela piada do amigo do meu Pai, que dizia "Quem não tem carro tem três mil e quinhentos carros" (referia-se aos táxis então existentes em Lisboa) e pergunto-me o que têm as pessoas contra a solidão?

Se não estivesse sozinho não veria nada do que estou a ver. Ou melhor: se não estivesse sozinho não viveria nada do que estou a viver. A solidão resolve-se numa sílaba.

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Do 7 Machos vou ao Moltabarra. Fechado. Flexas. Fechado. Regresso a Santa Catalina, pensando que não é por acaso que a senhora se casou com Cristo e acabou numa roda. A esta hora (duas da manhã) ainda há bastantes opções para comer. Sendo porém conservador vou ao Diner 66. Um cachorro quente e um copo de vinho: quinze euros, pagos adiantado "porque é fim-de-semana". O molho picante, as batatas fritas e mais não sei que mais são pagos à parte. É igualmente imprescindível reconhecer a enormidade do cachorro e que é bom, que o molho picante pica, que nunca gastei tanto dinheiro em comida (e bebida) como hoje e, finalmente, que um dia não são dias. Com a A. aqui isto vai voltar ao nível normal. 

Ressonâncias

Deveríamos aplicar o conceito de ressonância mecânica (ou vibratória, para quem prefere a precisão) ao amor. Com um caveat: a ressonância mecânica nem sempre é boa. Tem bastas vezes consequências negativas. A ressonância amorosa só tem / teria / terá consequências positivas. Dois corpos / almas / corações a vibrar em uníssono... É verdade que pode fazer quebrar uma ponte ou um motor, mas o que não fará a duas pessoas?

27.6.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-06-2024 / II

«Vastas emoções e pensamentos imperfeitos»

O dilema é antigo e não está perto de se resolver: saio do Claudio e vou ao Antiquari ou ao Jaume? Questão de distâncias relativas: o Antiquari deixa-me a maior parte do caminho por fazer; o Jaume está mais perto do barco. Questão de runs: o Antiquari tem Flor de Caña a cinco, quase seis, o Jaume tem Santissima Trinidad a seis e cinquenta. Questão de ambiente: não há diferença entre os dois. 

Como todos os verdadeiros dilemas, este resolve-se sozinho: começo por parar no Antiquari e depois deixo a burra decidir se quer parar no outro. Geralmente quer, mas nem sempre. Hoje tenho duas forças contraditórias e será interessante ver a qual delas a burra é mais sensível: uma boa gorjeta no bolso e um cansaço que nem para me engrossar serve.

A BH Glasgow Vintage é uma besta cheia de empatia. Confio nela sem hesitar. Ela que decida. Desde que não queira ir ao Moltabarra ou ao Bar Flexa, tudo bem. Há sempre a possibilidade de uma paragem súbita na Cantina, querida. 

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Isto tudo para servir de preâmbulo: fui ao Claudio comer o inevitável gelado pós-prandial. O homem faz os melhores gelados que já comi nas vidas todas que vivi até hoje. Notem que não digo «Os melhores gelados do mundo (pelo menos desta vez». São simplesmente os melhores gelados que já comi na vida. Nas vidas. Hoje experimentei Melissa de Mallorca con chocolate negro

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Minuto, como no basket: indicador direito a apontar para cima, tapado pela palma da mão esquerda na horizontal. Uma das pequenas que está ao meu lado (estava. Foi-se) «tem pernas até às orelhas» perfeitas e isto merece uma nota de aprovação).

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Não sei o que é melissa mas sei que é tão bom ao palato como as pernas da sueca (?) à vista.

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Bom, regressemos às coisas sérias: o cansaço. Aonde vou parar quando sair daqui (Antiquari)? O Flor de Caña é equivalente ao Santissima Trinidad? Tudo questões que me atormentam. Já não me sinto demasiado cansado para me engrossar mas ainda não tenho vontade de me engrossar. Na guerra chama-se a isto Terra de Ninguém. Ir à Bodega Bellver seria um compromisso. Não tem rum mas tem hierbas.

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É impossível para um céptico discutir com um crente. Tomado no sentido estricto, esta proposição passa facilmente. O problema é que alastra sem fim e todos somos os cépticos de qualquer crença. O diálogo torna-se inviável, se a respeitarmos.

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ADENDA: O nível estético do mulherio no Antiquari sobe vertiginosamente. Já o indicador «namorabilidade» desce no mesmo ritmo. Tenho de rever os meus critérios, sem dúvida.

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Paro no Jaume com uma imperial, um rum Santissima Trinidad e uma tapa de patatas bravas.

O Jaume está cheio até aos galopes. Eu também, louvado seja Deus. Devia ter pedido gambas al ajillo. Paciência. Agora é tarde.

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O Jaume são dois Jaumes: o dono e o que faz o balcão. Este último também é uma simpatia, mas mede os runs ao mililitro. 

Conhecendo os dois lados de um bar, não posso deixar de o compreender e detestar. Detestar é demasiado forte. Compreender não. É o termo correcto. Malditas assimetrias!

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Para quem não sabia se conseguiria engrossar-se a noite está a correr bem.

A Bodega de Can Rigo resolve esses e outros dilemas. Por exemplo: chegaram as patatas bravas. São as melhores que comi, com a solitária excepção de umas que comi na Galiza faz agora alguns anos. (Demasiados, mas isso é outra história.)

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Tapas no Toni, no Joan e agora no Jaume. Toni: bar Santa Eulália, ou coisa que o valha. Joan: bar Rita. Jaume: Bodega de Can Rigo. Palma (e suponho que a Espanha em geral) é um desafio a qualquer marinheiro que se preze:  bom marinheiro pára em todos os portos.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-06-2024

Comecemos pelo princípio: afinal a gorja foi porreira. Não bateu recordes, mas está na média. Clientes um, vento contra zero.

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Chego a terra, vou ao correio enviar os postais que me sobravam e à lavandaria. Daí passo pelo Joan, que me recebe com o sorriso e a bonomia de sempre. Diz-me para voltar dali a hora e meia - estava a abrir o estaminé - e venho ao Toni comer umas tapas e beber tinto de verano. As tapas, diz-me a empregada do ano (ou da semana?), continuam a ser feitas pela mãe dele, o que de resto em grande parte explica a minha vinda aqui. A mesma jovem diz-me que o homem está doente, tem um problema no joelho e agora raramente cá vem. Continua a ser um dos meus sítios favoritos em Palma. 

Comi uma tapa de beringelas assadas e outra de boquerones en vinagre. Estas últimas de compra, claro. Boas, mas de compra. O único louco capaz de fazer boquerones em casa sou eu - e devo dizer que nunca mais os comi tão bons desde que substituí o vinagre normal por um balsâmico (e verdadeiro).

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Porém, nada disto é o tema principal deste fim de dia quente (agora está calor, finalmente). Há dois temas que me parecem pertinentes:
a) O calor, o benfazejo calor voltou, finalmente. Sinto-me contudo um bocadinho hipócrita a dizer isto porque vim para o interior do café, aonde há ar condicionado. O pretexto sendo o DV, a calma (a esplanada está cheia) e poder carregar o computador. Contudo, só agora vejo a tomada. Está a menos de meio metro de mim, Faz uma hora que estou aqui. Há dias que me surpreendem;
b) O cansaço. Estou estoirado e pergunto-me se isto vai continuar assim até ao fim dos meus dias ou se vou conseguir fazer uma semana de charter bastante calma - e toda a motor - sem pensar que tenho mais dores musculares do que músculos e alguma coisa está errada na anatomia da carcaça.

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O tinto de verano continua excelente. A ver se o preço subiu. Se não: hallelujah!

Um bom tinto de verano é melhor do que uma cerveja, com este calor. O calor não passa de uma ilusão sensorial - aqui dentro está uma excelente temperatura.

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Mesmo sendo vista até menos de metade da sua altura a praça de Santa Eulália continua linda. Obviamente, ao ouvir isto qualquer céptico pensaria. «a beleza está nos olhos de quem a vê», coisa que eu refuto absoluta e convictamente. Sou um homem objectivo e racional!. (repetir três vezes em caixa alta, sff.)

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Não estou só cansado. Estou febril. Felizmente tenho rum a bordo. Vai varrer esta merda toda.

E podre de sono.

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 Notas adicionais:
a) O preço do tinto de verano no Toni aumentou, mas continua decente: três e vinte a unidade;
b) O Bar Rita continua o refúgio que sempre foi e os seus croquetes de xipirones sublimes;
c) Estou demasiado cansado para imaginar um futuro que se estenda por mais da dez minutos. Ou seja: peço umas hierbas (não há secas. Só mezcladas) e sei que daqui vou ao Claudio comer um gelado. Depois? Passa muito os limites do planeável;
d) Estou com uma dor de cabeça mastodôntica.

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Olho para todas as senhoras presentes no bar Rita, o bar mais local de Palma e daí do Universo. 

Nenhuma delas é excessivamente bonita nem excessivamente feia. Qualquer delas podia ser a minha mulher, se quisesse (ela, claro). A única coisa que têm em comum é parecerem todas inteligentes. 

Isto merece ser aprofundado. Nenhuma delas passaria o patamar da "Woman next door" da Playboy, coisa que não me incomoda particularmente. Já tive mulheres muito mais bonitas do que as da porta ao lado e duvido que apreciasse vê-las nessa revista, que de resto era sublime.

E importante. Um pilar na formação de qualquer adolescente e jovem adulto que se respeite. Ou respeitasse, não sei como está agora.

Voltando ao tema: qualquer destas mulheres, salvo uma ou duas excepções, poderia ser minha namorada. Talvez seja este um novo padrão para avaliação de bares.

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 26-02-2024

Os restaurantes baratos de Puerto de Andratx (Andratx, daqui em diante) transformaram-se em coisas gourmet et al. Os que já o eram mantiveram-se. A quantidade de italianos (restaurantes, pizzarias e outras merdas Made in Italy) aumentou. É preciso ser alemão para vir a Mallorca comer spaghetti. Ou português para comer vindaloo no pior restaurante indiano do mundo.

Felizmente não foi uma surpresa. Apetecia-me uma indianeria qualquer, simplesmente, mesmo sabendo de antemão que seria uma porcaria. Vá lá que ao menos estava suficientemente picante.

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Tal como suspeitava, a R. não paga renda há seis meses. No outro dia cruzei-me com ela na feira. Disse-me que lhe devia dinheiro e que fiquei com duas peças dela. A história do dinheiro é para pôr na conta da doença; à das peças pode chamar-se diluente. Serve para ajudar a passar a do dinheiro. Para a diluir, por assim dizer. Deve haver uma razão pela qual só me sai disto na rifa. Ou várias, vá saber-se.

.... E não é só esta. Há mais. Devo ser um pote de mel para tudo o que o mulherio conta como caso psiquiátrico. Não é preciso dizerem-me que quem as escolhe sou eu. Obrigado.


25.6.24

Diário de Bordos - Port de Sóller, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-06-2024

Não se pode dizer que o charter esteja a correr mal pela razão simples e linear de que não está. Antes pelo contrário: vim aos meus portos (ou calas) favoritos desta ilha, os clientes são bastante aceitáveis, o bote podia estar melhor mas podia também estar muito pior, o tempo está porreiro e a massa que recebi permitiu-me safar uma ou duas enrascadas. 

Tão pouco se pode dizer que seja dado a transes místicos, esotéricos, transcendentais. Não sou. Não passo de um troglodita que por uma qualquer dobra mal feita no tecido do espaço-tempo aprendeu a ler, comer de garfo e faca, ser bem-educado mesmo para as pessoas de quem não gosta e - nos dias melhores - não palitar os dentes à mesa (dar puns então nem se fala, o que eleva a quantidade de habilidades que conheço a um nível quase estratosférico). Tenho contudo uma sorte, uma bênção: sei reconhecer pessoas transcendentes. Mais do que reconhecer: sei falar-lhes e amá-las. 

Nalguns casos, até me aconteceu ser amado por algumas dessas pessoas - o que se não me leva a acreditar na existência de Deus, obriga-me pelo menos a acreditar na sorte. O que já é muito, para um céptico.

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Os restaurantes estão cheios de outro tipo de trogloditas: os que gostam de futebol. Invejo-os. Têm mais sorte do que eu: acreditam em qualquer coisa.

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Soller está para Palma como Cascais para Lisboa: mal chego aqui parece-me estar em férias.

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Hoje vendi uma caixa de postais, precisamente em Cascais. Quando penso que detestava lá viver lembro-me de que o caminho para sair da imbecilidade é longo, lento e - quase de certeza - interminável.

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O Payesa está fechado, o Bar Bosch mesmo ao lado do restaurante aonde os clientes comem e graças a essa feliz coincidência descubro o hotel Le-Vi. Mais uma prova de que o caminho para fora da imbecilidade é interminável: como é que não descobri isto antes, alguém me explica (sem usar as palavras imbecil ou estúpido, claro)?

24.6.24

Diário de Bordos - Sa Calobra, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-06-2024

Qualquer pessoa com mais de vinte e cinco anos sabe que a vida é fundamentalmente injusta e convive bem com isso. Enfim, bem não é a palavra certa. Convive com isso, às vezes bem outras menos. Vir a Sa Calobra sem a D. revolta-me. Ou melhor: viver sem a D. revolta-me. Vir aqui sem ela dá-me vontade de pegar numa espada e espadeirar por essas injustiças fora.
.........
Isto dito, ver este sítio sagrado cheio de «trogloditas» (aspas porque cito) é outra manifestação da tal injustiça. É que são muitos, gordos e feios. Mais de metade não merece ser autorizado a entrar aqui. (A única excepção ao crivo da beleza e da formosura  devo ser eu, claro.) 

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Sa Calobra: imagina-se facilmente a água a escavar o caminho através das rochas. Milhões de anos num olhar. É daí que vem o poder, a energia que a D. viu neste lugar? Provavelmente. 


(Cont.)

23.6.24

Metáforas, ironias e outras verdades

Não sou dado a transcendências. Do que vejo não infiro nada até ver de novo. Ser básico tem vantagens. Olhar duas vezes é melhor do que ver uma só. Não ouvir é melhor do que acreditar em tudo o que se ouve. Acreditar no que se viveu é preferível a crer no que se viverá. É melhor estar em Sant Elm amarrado a uma bóia do que no centro de saúde de Freixo de Espada à Cinta amarrado a uma cadeira de rodas. 

Gosto tanto de viver que tenho vergonha de o dizer. 

20.6.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-06-2024

A clientela de um bar como o 7 Machos divide-se em Fauna e Flora. (Admitidamente, não é só a do 7 Machos, mas como é aqui que estou a escrever fica assim.)

Por razões que têm a ver com a biologia, entre outras, sou mais sensível à flora. E assim nasce a única, sublinho única crítica negativa ao novo local desta mágica instituição. Na rua de San Magi eu tinha o meu canto ao balcão e dali podia ir avaliando, discretamente (claro) as flores, plantas, árvores e outras rosas que iam entrando. Aqui não há essa possibilidade. Estou ao balcão mas virado para dentro, para as garrafas. Acho que vou ter de explorar melhor o espaço e ver se compenso ou contorno esta deficiência. 

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O dia foi rico em emoções. A menor delas não foi, de certeza, ter o bote limpinho da silva por fora e arrumado por dentro. Está quase habitável. Quase, essa maldita palavra.

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Hoje veio um segurança avisar-me de que a partir de agora tenho de deixar a burra no respectivo parque. Não as querem mais (havia outras) no pontão. 

[A rapariga que acaba de entrar é de certeza absoluta irmã mais nova da Mariel Hemingway. Quando penso que nos meus tempos de escola secundária detestava botânica. Vá lá que ainda tenho alguns anos para equilibrar a balança.]

Era bom de mais, claro, a burra à porta sem cadeado nem outra segurança que não a confiança nos vizinhos.

É verdade que já a deixei bastas vezes no parque sem o cadeado, mas não é a mesma coisa e agora vai levá-lo, coitada.

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O Naoel fez-me a margarita com um mezcal diferente, melhor e fumado. Ninguém imagina o efeito positivo de uma margarita bem feita nas perspectivas de futuro de um pobre e solitário skipper longe de casa. Sendo que este futuro não se limita ao longínquo. Engloba também a noite que aí vem e promete ser magnífica, de sono ininterrupto até ser hora de ir pôr a merda do aspirador a reparar. 

[A Marielita chama-se Alexandra,  se por acaso.]

(Se alguém me dissesse que um dia uma noite magnífica para mim seria uma noite de sono ininterrupto eu tê-lo-ia mandado imediatamente para um concurso de stand up comedy.  Ganharia o primeiro prémio, illico presto.)

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Outra desvantagem deste sítio: por muito que se goste de ver gente a trabalhar bem e depressa, olhar para estes gajos atrás do balcão provoca vertigens. É que não param um mili-segundo. E ainda hoje é quinta-feira. 

(Amanhã estarei num charter. Não haverá botânica nem vertigens nem margaritas nem mezcal. Em contrapartida haverá uma coisa que os substitui com algumas vantagens. Por que raio de carga de água não consigo conciliar tudo, numa maravilhosa esfera como as das discotecas? Porque não consigo ser pago para beber copos e estudar plantas no 7 Machos? Quem é que fez este mundo? Ainda há quem acredite em Deus?)

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Uma das piores bebedeiras (ou melhores, depende do ponto de vista) que apanhei na vida foi com mezcal, em Melville, Johannesburg, África do Sul. Foi das poucas das quais me envergonho, arrependo e admiro. Hoje bebo essa traiçoeira bebida e penso quão fácil é deixarmo-mos enredar nas suas teias. Felizmente estou prevenido.

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O Naoel não só me faz um preço inacreditável como ainda me propõe mais um mezcal para el camino. E ainda há quem pense que eu sou gastador.

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A BH enganou-se e em vez de me levar para bordo trouxe-me para o Antiquari. O erro não foi meu, insisto. Foi da burra. O Jaume estava fechado, o Gibson cheio - além de que não têm sobremesas - o Fidel estava fechado, passo pormenores e acabo aqui, palco de um celebre diálogo:

- Esta é a minha segunda casa.

- Ah sim? Qual é a primeira?

O Antiquari está aberto, tem uma sobremesa e rum Flor de Caña, música excelente e a beleza de sempre.

Que a bicicleta se engane no caminho muitas vezes, é tudo o que espero e desejo.

19.6.24

Noite, chamas

Chamas-me à noite, essa noite que me enche de chamas? E de uma noite cheia de chamas chamas a cheia para as apagar? A que chamas uma noite cheia cheia de chamas? Chama-me, dessa noite cheia e vê se dela as chamas se vêem. Chama-me essa noite e dela me chamas tu, cheia como nunca te vi do fogo com que me chamas. 

Breve teoria sobre as ressacas e a sobriedade

Não sabemos o que amanhã nos traz, mas sabemos o que nos leva. E sabemos que o que nos leva não nos trará de volta. Antes de ressaca amanhã do que sóbrio hoje.

Amanhã há mais. Talvez.

Os dias e os cavalos morrem devagar? Não sei. Este sim. Não morre: desagua num grande delta, como o do Ganges, o do Nilo, o do Mississipi ou o do Zambeze. Há mesmo um delta que desagua em terra, o do Okavango. Há dias e rios para tudo, como cavalos. Avançamos montados no dia, esporas na barriga do cavalo, copo na boca e de repente tudo começa a ir mais devagar: o cavalo, as esporas, os copos. Como nos deltas, aonde a água corre devagarinho, não vá perder-se.

Assim se esvai um dia, «feito de nada como nós». Amanhã há mais. Há sempre mais: «mais luz», mais mar, mais vida. Mais de tudo o que já foi e de tudo o que será. Amanhã há mais: hoje não passa de uma amostra. Ontem foi um treino. Ou foram, que houve muitos.

«Uma vez que ignoras o que te reserva o dia de amanhã,
Procura ser feliz, hoje.
Toma uma ânfora de vinho, senta-te ao luar e bebe,
Lembrando-te de que, talvez amanhã, a lua te procurará em vão.»

(Omar Khayyam. Não sei de quem é a tradução.)

Opostos

Isto assim dito num repente, o problema é sempre o mesmo: como conciliar opostos?

Vozes, «menos do que um cão»

Uma diz-me: «vai para bordo». A outra, melíflua, recita-me poemas de Omar Khayyam:

«Cansado de interrogar, em vão, os homens e os livros,
eu quis interpelar a ânfora.
Pousei os meus lábios sobre os seus e murmurei:
“Para onde irei quando morrer?”
A ânfora respondeu: “Bebe na minha boca.
Bebe longamente. Jamais voltarás aqui”.»

Uma terceira, mais pragmática, diz-me: «Não uses o travão da frente! e usa o de trás com cuidado.» (Está a chover.)

Sou simultaneamente um rapazinho obediente, pragmático, sedento e tento obedecer às três. Ou seja: ziguezagueio por estas ruas com as mãos fora dos travões (a bicicleta saiu agora das do Ivo. Está uma maravilha). Vou ao Divino falar com o Dino mas antes disso passei pelo Trastienda só para ter a certeza de que ainda está frequentável (está) e acabo na Cantina.

«Dizem-me: “Não bebas mais, Khayyam!”.
Eu respondo: “Quando bebo, ouço o que me dizem as rosas, as túlipas e os jasmins.
Escuto mesmo aquilo que não pode dizer-me a minha bem-amada”.»

Tento não pensar nos cinco litros de vinho tinto que tenho a bordo mas não consigo. Isto é: penso. Só não penso é na merda do vinho, que comprei para fazer tinto de verano mas depois lembro-me de que no Pepe um tinto de verano custa dois euros... Bom, deixemos a matemática para outros planos.

Tenho vinho e tenho sorte: contratei o day worker para amanhã e hoje choveu uma destas abomináveis lluvias de barro que deixam tudo cagado e castanho.

«Na Primavera gosto de me sentar na orla de um campo florido. E quando uma rapariga me traz uma taça de vinho, não me importa nada a minha salvação. Se eu tivesse essa preocupação, valeria menos que um cão

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-06-2024

"De lo que oigas, nada. De lo que veas, la mitad." Vem do meu amigo Anton, reencontrado hoje numa daquelas vagas de passado que volta e meia me submergem de felicidade. Antes dele, não sei de onde vem. Será da sua Galícia natal? Não sei. Sei que é de ouvir, atentar, respeitar e seguir.

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Em mallorquín, Ca na Martina significa Casa da Martina. Em qualquer outra língua significa "as melhores tapas de Palma". Fica no mercat de Pere Garau, se por acaso.

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O problema da Bodega Morey é ficar perto de uma livraria chamada English Fine Books e da Typica (ou Typika, ou Típica, ou assim), uma loja de produtos típicos, contrariamente ao que o nome poderia sugerir. 

Vá lá. Consegui sair da livraria só com fotografias de telefone portátil (mudou de dono de certeza) e da Typika com dois postais a um euro cada. Se alguém algum dia disser que eu sou impermeável às circunstâncias - também conhecidas por "o real" - podem apresentar-lhe este post e lembrar-lhe o dia em que saí da Typika com dois postais a um euro cada e mais nada.

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O prato do dia na Morey hoje era beringelas recheadas. E fui eu encher-me de tapas magníficas na Martina do Pere Garau. Quem é que pode viver assim?

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Logística: consegui resolver o problema do telefone, vender o computador antigo e comprar um BIB de cinco litros de vinho tinto por doze euros. Dos quais sessenta para o telefone. Só falta realizar a venda do computador. Por uma razão que só a fundamental teoria das assimetrias de base explica, as entradas de dinheiro levam mais tempo do que as saídas.

Resolvi também o problema da net a bordo, por dez euros. Agora vou levar a BH ao Ivo. Sexta embarco para un charter e acabam-se os problemas de logística. 

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Encontro com a M. P. dos seguros. Além de muito simpática e bastante eficaz, a senhora é linda. Há pessoas assim, a quem a lotaria genética acudiu logo à nascença para não mais as largarem.

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Voltemos à logística, paixão velha:
- O telefone está a funcionar a cem por cento;
- O computador novo a noventa;
- A roupa que entreguei hoje de manhã na lavandaria para me ser entregue sexta-feira ficou pronta agora e já a tenho;
- A bomba do duche está a funcionar;
- A bicicleta está neste momento a ser reparada no Ivo;
- Tenho cinco litros de vinho tinto a bordo (quaisquer comentários sobre a eventual qualidade do dito serão esmagados como se fossem uma barata. O senhor que mo vendeu disse-me logo que com gasosa seria óptimo).

Verdadeiramente, não deixo de me surpreender com esta minha capacidade de reolver problemas importantes e fundamentais e basilares e tudo. Comparados com estes, o que são os problemas financeiros (por exemplo) ?

(Cont.?)

18.6.24

Diário de Bordos - Edição especial - Palma, 18-06-2024

Bom, as coisas aconteceram assim: saí de bordo com a férrea intenção de ir ao novo 7 Machos beber um mezcal e voltar para o "meu" P.

Tive de tactear um bocadinho porque não é aonde eu pensava e mal chego - isto é, mal desmonto da burra - vejo o Mark. Há premonições que não enganam ninguém. "Lá se vai o mezcal para o galheiro", pensei.

Celebramos este reencontro, tão agradável quanto surpreendente, entramos e quem está nos fogões?

Quem?, pergunto.

E respondo: o Johnson. O Johnson. O melhor cozinheiro de Tex-Mex a leste de Miami (ou Jacksonville, o que ficar mais a leste). O Mark tinha encomendado dois tacos mas não conseguiu comer os dois derivado ao tamanho e à quantidadede carne, eu fiquei com o segundo, enquanto esperávamos pelas Margaritas bebemos dois mezcal cada um,  vai daí o Naoel (?) resolve fazer-nos as Margaritas com mezcal em vez de tequila e vai daí eu fui submergido por uma imensa vaga que me chegou do passado, quando o Mark trabalhava no Abracadabra e o Johnson era o cozinheiro do 7 Machos e eu descobria Palma com os olhos maravilhados de quem descobre que o outro mundo afinal é neste.

Felizmente a BH Glasgow Vintage não bebeu de mais e trouxe-me para bordo sem uma única hesitação. As Margaritas do 7 Machos continuam a ser uma das provas da existência de Deus, os tacos do Johnson outra e eu não tarda converto-me. 

(Não sei. Não tenho um cavalo. Cair de uma burra dá direito a conversão? O Johnson saberá fazer hóstias? Jesus pode transformar água em mezcal?)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-06-2024

As senhoras - nenhum homem faz o mesmo - que me acusam de gastar dinheiro em cocktails, vermutes e sei lá que mais deviam começar por ter juízo e continuar por calarem-se. O único dinheiro verdadeiramente mal gasto que gasto é em livros. Como resistir, por exemplo, a este título: El murmullo del agua. Fuentes, jardines y divinidades acuaticas, de uma autora chamada María Belmonte, publicado na Acantilado, Barcelona, 2024? Não sei nem, aviso já, quero saber. Basta folhear meia dúzia de páginas para perceber que o raio do livro é imprescindível - opinião essa que o José Luis, da Babel, confirma com o seu habitual e louvável laconismo.

O resto do dinheiro que gastei hoje - alpergatas, vinho no Antiquari, palo sifonado na Bodega Bellver - foi sensata e conscenciosamente dispendido. Sobretudo o vinho e o palos. O almoço não foi grande coisa: o Sabores Criollos estava fechado e fui ao outro colombiano, que lhe fica à frente. Estava uma merda, mas vá lá: têm cerveja Aguila (a colombiana, a verdadeira) e isso perdoa muita coisa.

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Chego a bordo com uma inextinguível vontade de ouvir música barroca. Cânticos, exaltações, malabarismos. Acabo na Bartoli a cantar Vivaldi, mas até lá chegar confirmei duas ou três opiniões, que não exprimo aqui para não ter de pedir desculpa aos meus amigos que percebem realmente de música. Ao contrário de mim, que dela sei tanto como sei de hidrodinâmica dos mosquitos em meio hostil. 

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A relação simbiótica que mantenho há bastos anos com a teimosia voltou a manifestar-se e comecei o dia a tentar reparar a bomba da retrete. O cheiro de merda mistura-se bem com o do café, dir-me-ão os mais cépticos dos leitores. Não consegui, claro. O Ricardo diz que o problema não está na bomba mas sim no macho de fundo e eu tento resistir à óbvia necessidade de encher o bote de água (isto é, desmontar a mangueira do macho de fundo e do passa-cascos com o barco a nado) para verificar essa hipótese. Só não posso é fazê-lo sózinho, por um lado; e por outro isso é tarefa para um dia, coisa de que estou em notória ruptura de stock. A alternativa é mandar vir um mergulhador, mas não acredito que seja suficiente. O glamour, o glamour!

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Ou seja: uma série de nós que só um mezcal no 7 Machos pode desatar.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-06-2024

É como se estivesse a andar de patins atrás do sono, só que à frente dele ainda há mais alguns vinte patinadores e eu atrás deles todos a ver se os apanho,  um a um.

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Caiu uma bomba atómica em Palma: fechou o 7 Machos da rua San Magi. Já tinha lido alguma coisa a esse respeito mas não acreditei. É como se me dissessem que a ponte sobre o Tejo ia mudar de sítio. Ou que o Cristo-Rei agora dança o samba todas as noites. Ou que o Calatrava vai começar a desenhar estações de comboios funcionais. Ou que António Costa arranjou um emprego de almeida na CML (não desfazendo nos almeidas, claro).

Agora tenho de ir procurar o novo. (Não está muito longe, vá lá. Fica para amanhã.)

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Dia de merda, literalmente: passei-o todo a trabalhar na retrete, que se avariou logo de manhã. Passo os pormenores, há almas sensíveis que me lêem.

Foi até deixar de haver luz. Desconsegui. Deus sabe que sou o skipper mais mal jeitoso de mãos que ao mar deitou.

Não é o ser desajeitado que me inquieta. É sê-lo cada vez mais. A bomba é uma Henderson MK5, a melhor bomba de retrete jamais feita. A retrete é uma Lavac. Só há dois tipos de marinheiros: os que idolatram a Lavac e os que não a conhecem. A combinação Lavac / MK5 é garantia de repouso para o pobre skipper longe de casa no que à merda diz respeito. 

Não há garantias, meu caro. Estão esgotadas. Felizmente desta vez não foi tão grave como em Ponta Delgada, a bordo do AQUARELLE, em que apanhei um duche de merda de tal maneira que tive de me mandar à água no porto, que por muito suja estivesse estava menos suja do que eu. 

Enfim, uma belíssima maneira de começar o dia. E depois, de o passar a tentar reparar a maldita bomba. A vida de skipper é um festival de glamour. Melhor, só em Cannes ou nos filmes do James Bond.

Amanhã começo o dia a telefonar ao serviço técnico da Henderson. Já devem ter visto nabos mais nabos do que eu.

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Dois livros a fechar: o último romance do António Cabrita (O que o céu permite, ed. The Poets and Dragons Society - não posso reclamar muito. O meu Avenida também foi publicado numa editora com nome inglês) e The Portuguese, a modern history, de um senhor chamado Barry Hatton.

Deste último ainda vou muito no princípio, é cedo para dizer mais do que "lê-se bastante bem" - os portugueses vistos pelos olhos de um estrangeiro que nos grama à brava e até casou com uma portuguesa e tem piada e conhece bem o país e a sua história recente - o que não é de admirar porque é jornalista e correspondente de um ou vários jornais estrangeiros.

O livro do António é outra coisa. Espero vivamente que o homem não esteja no pináculo da sua forma de romancista, mas que está lá muito perto está de certeza. Uma narração da qual "não se vêem os canos" (parafraseio não sei quem), personagens densas - com uma óptima charpente, diria se estivesse a escrever em francês - um gozo permanente, a cada frase, cada linha. Sei que pareço suspeito, mas não sou: não gosto da poesia dele e digo-o, e se não gostasse deste livro não o diria, mas tão pouco diria o que digo: um livro para desenganar quem pensa que em Portugal se publica de mais. Não publica nada. O céu permitiu uma escrita absolutamente soberba. Obrigado, céu. 

Aproveito a boleia da excelência para mencionar uma poetisa que conheci recentemente (nos dois sentidos do termo: pessoal e literariamente). Trata-se de Gaëlle Istanbul. Tem dois livros ambos publicados na Húmus e sendo bastante diferentes são os dois muito bons. (Prefiro o primeiro, por razões epidérmicas - nos dois sentidos: a pele está presente em todos ou quase todos os poemas e a poesia é muito mais contida do que no segundo.)

16.6.24

O tapete e os cobertores

Estendo-me inquieto nos tempos que aí vêm e penso que nos passados tão pouco estava muito descansado. Estendi no tempo o meu tapete e nele dormi quase sempre sozinho. Só raramente tinha a paz ao meu lado. Sei bem o que a ansiedade é.  Conheço-lhe o cheiro e as formas. E o tempo. Atravesso-o todos os dias, percorro-o de trás para a frente e da frente para trás. 

A inquietação e o tempo que se lixem. Estende o tapete e dorme. Deixa a inquietação para amanhã. Ela tem o tempo todo para se espraiar. Preocupa-te antes com os teus cobertores, aqui e agora. Esses pelo menos não voam.

15.6.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-06-2024

Palma num fundo de constipação, alergia, quase-gripe, não tarda. Tomo comprimidos atrás de comprimidos: mais de sessenta anos a não saber o que isso era vingam-se. Ou a não querer saber, vai dar no mesmo.

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Hoje comecei por ir ao mercado de Santa Catalina. Lulas a quarenta e nove euros o quilo. Brevas a dezasseis. Cerejas a doze. Bebi um vermute no bar do Mercat e voei para o Olivar, a lamentar não ter energia para ir ao Pere Garau.

Resultado: o jantar hoje vai ser um prato com frango do campo, pancetta, tomate e pimento branco (?), o mais doce, suave e acolhedor de todos os pimentos.

Poc a poc o frigorífico do P. enche-se e poc a poc aterro. Poc a poc entro por esta terra dentro e ela em mim. Poc a poc olho para o P. e ele responde, pisca-me o olho e diz "És homem para mim? Olha que um homem é um homem e um gato é um bicho."

"Sim, meu sacana", respondo. "Sou homem para ti, ainda que tenha de ir aos tréfonds buscar-me."

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Há algo injusto - ou incorrecto - em apanhar uma constipação destas em Palma em Junho. O culpado é o aquecimento global, claro, que nem aquece nem globa.

14.6.24

Tolices

Por razões que eu não entendo bem, a maioria das pessoas prefere acreditar em ideias a acreditar em factos.

Quer se queira quer não, é uma tontice dos diabos.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-06-2024

Chego a Palma e como de costume os primeiros dias são dedicados à logística. Desta vez um pouco mais do que o habitual: problemas na bicicleta, no computador e no telefone (problemas no sentido lato: situações que exigem tempo e atenção). Trato de tudo mais ou menos em paralelo, tentando manter uma corredorzinho estreito para ver os amigos. 

Xisco, Fidel - o melhor vitello tonnato do mundo e arredores, mais cf. infra - a miúda que me vende as tâmaras medjoul (não é bem uma amiga, mas não faz mal), o Ismael e o Alberto da Cantina, o Pepe do Corb Mari, o Hugo da Bottega Bolognese,  o Claudio... Ainda faltam tantos. Amanhã vou ao Joan, ao François, irei visitar a Paloma, que tem uma loja linda e o José Luís, da Babel - uma livraria e um livreiro que me fazem tanto pensar na Caroline e na Galileu, apesar do oceano de diferenças - o Jaume da Bodega Ca'n Rigo, o façanhudo da Bodega Belver que nem a S. C. conseguiria fazer rir e por quem desenvolvi uma ternura mesclada de admiração - e inveja -, a Bodega Morey.

O Es 20 de Bonaire fechou. Agora é uma loja de decoração / mobiliário chic. Volto a Palma, volto a casa e penso na quantidade de sítios que frequentava e fecharam: o Ca na Chinchilla, o Abracadabra, a Sifoneria... Não há melhor prova de que em Palma estou em casa do que esta: também as famílias diminuem de um lado e crescem do outro. 

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Chego a Palma e apanho uma constipação (misturada de episódios de alergia) de caixão à cova. Acontece-me tantas vezes em Genebra, essoutra casa. Como se precisasse desta necessidade de me enfiar na cama debaixo de uma pilha de cobertores para ter a certeza de que sim, estou em casa. Sim, estou, estúpida carcaça. Não precisas de me fazer cenas de ciúmes só porque desta vez andei longe muito tempo (mentira. Estive cá em Março).

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As ruas turísticas de Palma já estão cheias, mas ainda não a abarrotar. Ainda se consegue pedalar, desde que se vá devagar e atento. Daqui a duas semanas isso será impossível. Com sorte terei trabalho nessas semanas e só verei Palma sextas à tarde e sábado de manhã. 

O meu P. reclama: trabalho tens sempre, parvalhão. Tenho, P., eu sei, mas de vez em quando preciso de ver outras paragens e de ser pago para isso.

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A mise en place do computador avança. Lentamente mas avança. O telefone é mais complicado. A burra está resolvida: "não desfazendo" (aspas porque cito) o Ivo é o melhor mecânico de bicicletas do mundo. 

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O raio do telefone tem sete meses, bolas! Suponho que os problemas venham dos arraiais de pancada que apanhei nas saídas de Saint-Martin. Já não tenho garantia, porque o abri em Marigot. Vá lá, pelo menos essa "reparação" serviu para alguma coisa. O telefone ficou exactamente na mesma, mas a garantia foi-se. E com ela cinquenta paus, não fosse o senhor queixar-se de ter "trabalhado" por nada.

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Parágrafo importante sobre o vitello tonnato: é um prato do Piemonte (como toda a gente sabe, um sítio que regurgita atum e anchovas).  Consiste em finas fatias de vitela, frias, cobertas por um molho (na verdade uma espécie de maionese) que inclui os dois peixes acima mencionados e mais meia dúzia de ingredientes. É relativamente simples. Só tem duas ou três dificuldades:

1 - A qualidade da carne e respectiva cozedura (tem de ser com alguns legumes e durante muito tempo);

2 - A espessura das fatias de carne: entre o carpaccio e o scallopini;

3 - A delicada proporção de atum e anchovas na maionese;

4 - A delicada proporção de limão e alcaparras nessa mesma maionese;

5 - A delicada proporção de especiarias na... adivinhem;

6 - A simpatia do serviço e a beleza do local.

O cozinheiro e restante pessoal do Gustar ultrapassam estes obstáculos com uma perna às costas e apresentam um prato sublime. É sempre o que como, quando aqui venho após uma ausência de Palma.

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Acrescente-se a tudo isto um par de hierbas secas. Ou seja: vou para debaixo da minha pilha de cobertores de alma cheia.

Há melhor justificação para um dia? Para uma vida?

De novo novo

Não tardará nada e eu serei de novo novo, jovem cheio de ideias sobre o passado. Refarei o caminho no sentido inverso, mas pela primeira vez. Cairei nas mesmas curvas e contracurvas, começando pela queda e acabando de pé a olhar para elas. Como faço agora, na verdade, mas olhando para trás e não para a frente, como será em breve, quando for de novo novo.

13.6.24

O Sul de ti

Descontrolado, o tempo volteja(*) em torno do corpo. Perdeu ou o norte e está desnorteado ou o oriente e está desorientado. Talvez devesse estar desolado, também, por não encontrar o Sul. O Sul é o mais desejado dos pontos cardeais. 
- Vou para o sul - dizes-me. E eu respondo: 
- Para o sul de quê?
- Não sei. É como se vivesse no pólo norte e todas as direcções fossem o Sul. 
- Todas são, quando se vive no pólo norte. Mas tu não vives. Estás a sul de umas terras e a norte de outras. 
- Vou para o Sul de mim. 

Longo silêncio. 

- No sul... - Pausa.  - Suspiro. - Pausa - Deitar-me-ei durante uma tempestade de areia... 
- Isso é o contrário do que se deve fazer. 
- ... E ficarei soterrada - prossegues como se não me tivesses ouvido. - Quando a tempestade acabar desenterrar-me-ei... 
- Desarear-te-ás... 
- ... E tudo estará coberto de areia. Tudo será igual e tudo será diferente. O sul de mim é assim. Tudo igual e tudo diferente. 
- Aonde ficarei eu, nesse teu sul de ti? 
- Aonde sempre estiveste. És o meu Norte de mim.

(*) - Inspirada de um verso de Yeats.

12.6.24

Diário de Bordos - Aeroporto de Lisboa, 12-06-2024

Ler livros à noite e no Inverno viajar para sul, sugeria Eliot. Segui esse conselho com uma certa frequência. Passei alguns anos sem invernos, a tal ponto que uma vez em Abril fui à Suíça e pedi à S. que me levasse a um sitio com neve. Estava com saudades do frio. Lembro-me dos meses que passei em Nakhodka (temperaturas entre menos vinte e cinco e mais doze) e penso que tal como não seria capaz de viver em altas latitudes não poderia voltar a viver sem invernos. A conta que Deus fez não foram três. Foram quatro: Verão, Outono, Inverno e Primavera. Por muito bom que pareça, não se pode passar o ano de calções azuis e pólo branco. Calças e camisa de mangas compridas, casaco ou camisola fazem falta. 

Como a solidão e a companhia: nem sempre uma nem sempre a outra.

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O avião atrasou mais de uma hora. Acontece muitas vezes, neste voo. Os atrasos do dia vão-se adicionando. É possível que desta vez fique por aqui. Às vezes é mais. Refugio-me num café (Grandcafé, se por acaso) e bebo vinho a um preço revoltante.

Há alguma coisa que não seja revoltante, num aeroporto?

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Conheci recentemente a G. I. e leio-lhe os livros, duas breves recolhas de poesia. A primeira é um tratado sobre as relações do corpo com a pele e o tempo. Fossilizadas, a acreditar no título, que o conteúdo desmente. Leio em ziguezague, de trás para a frente, da frente para o lado, do lado ora para trás ora para a frente. O livro tem uma lógica, uma progressão quase circular. Começa e acaba com "ontem". Lê-lo aleatoriamente faz ressaltar esse percurso. "Lembro o futuro no caminho de ontem / (...)" "Na pele, um anel de pedras pretas / o caminho de ontem."

Respectivamente do último e do primeiro poemas. Como se a pele e o corpo fossem um círculo cujo centro é o tempo.

Como se?

11.6.24

Vida, biologia

Nada a fazer, como dizia Beckett. Sou filho adoptivo da vida e nunca encontrarei os meus pais biológicos.

Como como

Como cerejas. Como: advérbio e verbo. Vida, acção. Vida: como cerejas. Acção: como cerejas.

Como: como a vida como como cerejas. Vida: como cerejas como como a vida. Cerejas: entre a vida a noite e o sono.

Não há hiatos entre a vida e a noite.

Não há nada. Seriam uma e a mesma coisa, não fossem os advérbios ou os verbos, como como.

Vim, vi, vivi

Os equilibristas que andam em cordas bambas por cima de precipícios usam umas grandes varas para os ajudar. Em francês, essas coisas chamam-se balanciers. Não sei o nome em português e agora o Google está fechado, fecha a horas escandalosamente escandalosas. Pouco importa. Essas varas servem para os ajudar a manter o equilíbrio. 

Viver consiste em atravessar muitos e profundos precipícios. Pensar também. Precisamos de balanciers para viver e pensar, duas coisas que estranhamente andam sempre juntas. Por mais que as queiramos separar: viver, pensar e manter o equilíbrio entre elas. 

Isto é: separar viver em dois. Vi e ver. O que vi, o que vejo. O que devo ver. O que vi. Talvez viver seja essa mistura do que vi e do que vejo. Talvez ver seja consequência de viver. Parte de. Talvez o que vi seja parte do que vivi. Metade.

Talvez vi, vivi, viver, ver sejam gomos da grande laranja que a vida é: "meu fruto de morder, todas as horas."

10.6.24

Um leitão no forno

- Viva. Como estás?
- Olá. Cansado, angustiado, ansioso, triste, zangado, incapaz de me concentrar e descontente.
- Há-de passar. Ciao, vou ali a casa da minha prima, tem um leitão no forno. 

Pele, corpo, tempo

O meu corpo é uma associação de membros e órgãos que não se entendem lá muito bem. Tento coordená-los e eles insistem em ir cada um para seu lado. É só graças aos tendões e às articulações que se mantêm juntos.

E à pele, claro, essa pele que tu habitas e teces pacientemente, todos os dias, todo o dia. À noite aplicas-te: fazes-me dela o relvado que os teus dedos escavam, percorrem, exploram, cada um deles em forma de ponto de interrogação. Essa pele que te ofereço, expectante, mantém-me inteiro, uno. É tua. 

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Abrigo-me debaixo desta manta de retalhos: retalhos debaixo de outros, outros que és tu, mesma pele, mesmos dedos, mesmo frio, mesma hesitação. As vastas planícies da pele oferecem-se-te, horizontes embrenhados um no outro. Vastas planícies: até onde a vista alcança. Até onde o tempo chega. 

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O tempo é um comboio que vai inventando paragens à medida que avança. 

9.6.24

Língua, eu

A minha pátria é a língua portuguesa?

Não. A língua portuguesa sou eu. Eu sou a língua que falo, escrevo e leio.

8.6.24

De para onde vou, raízes

Nómada de mim, oscilo como um junco em busca de raízes, à mercê de ventos que eu próprio criei e de outros que me chegam de fora. Ventos desencontrados, ventos cruzados, ventos com e sem chuva. Raízes de mim. Raízes nómadas. Sou de onde estou e de onde venho mas não sei se sou de para onde vou.

7.6.24

Transferências, transcendências

Aonde quer que me sente, só oiço pessoas a falar de futebol. Abro uma página de um jornal e leio dez vezes a expressão "alterações climáticas". A transcendência não desapareceu. Foi simplesmente desaguar a outras praias - admitidamente mais tristes e pobres.

Definição - memórias, sonhos

As memórias - tal como os seus primos direitos, os sonhos - são o presente a reconstruir-se, com as patines do passado ou do futuro.

Diário de Bordos - Lisboa, Portugal, 07-06-2024

Faltar: estar em falta. Faltar aos deveres. Já o outro falava disso, mas não tinha ainda o Távola à disposição. Eu tenho. Resultado: oiço o Romeu Tristão no baixo (está cem vezes melhor do que estava no Tati), o João Moreira no trompete - maravilha simples - e outro moço na viola, tão bom como os anteriores. E um gajo não consegeu impedir-se de pensar «Porra! Não fiz um caralho hoje e estou cansado como se tivesse tido a Marilyn Monroe todo o dia debaixo (ou por cima, ou ao lado) de mim. «Ir ao mar cansa», dizem-me. «¡No jodas! Já fui ao mar dois milhões de vezes e não saí tão cansado.» A ver.

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O jazz calmo e apaziguante do João Moreira (trompete).

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Mulher vestida com um grande decote nas costas e a a parte de trás do soutien à vista: não. Não dá vontade de desapertar o coiso e é para isso que eles foram feitos: para serem desapertados com um gesto hábil. Ou inábil, depende.

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Uma gorjeta é dinheiro que nos cai do céu e deve ser gasto no inferno rapidamente.

(Ambos estão dentro de nós.)

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A rapariga - jovem - está à minha frentre, de costas para mim. Vejo-lhe os cabelos - suspeita mistura de encaracolados e lisos - a t-shirt (feia. Branca com motivos que não percebo se eram de rosas se de morangos) e as nádegas, que se esponjam lindamente no banco. Saia curta, ajustada ao esplendor.

Não me é difícil imaginar aquele rabo esponjado noutro sítio. Fosse eu pintor e aquelas coxas estariam plasmadas até ao infinito. Enfim, nádegas.

- As coxas: o rabo:
- Os braços: o rabo;
- Os cabelos; ....

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Bom jazz é a melhor  forma de tornar audível as «coisas» do nosso interior.

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Há uma mão que a acaricia. Apercebo-me de que é a dela, por causa dos anéis e pulseiras. O seu companheiro vira-lhe as costas, absorvido pela música e ela acaricia-se a cintura. 

Como se fosse eu.

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Esta mistura de linhas rectas e de curvas é o que faz da vida o que ela é: o desejo de a endireitar por vezes e o de a tornar menos rígida outras.

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Irei para casa quando a necessidade de escrever for maior do que a de beber música. 

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Outra fonte de patriotismo: ouvir jazz no Távola.

4.6.24

Fantasmas, lei da conservação da energia e outras deambulações sobre o cansaço

Há de certeza uma lei na física sobre a conservação do cansaço. Isto é: sobre a equivalência do cansaço à energia que o gerou. A energia transforma-se em trabalho e em cansaço e de repente, numa espécie de fenómeno físico, este sobrepõem-se àquele é o trabalho desaparece da equação e fica só a fatiga.

É por isso, suponho, que desta há vários tipos, dos quais destaco dois: a física e a emocional. Ou seja: a lei da conservação da energia aplica-se. Uma pessoa gasta energia numa determinada actividade, desta resultam consequências e fatiga, ao fim de algum tempo os resultados saem de equação, ficam só os cansaços, um gajo pergunta-se "como é isto possível?" e a resposta vem sob a forma de cansaço intangível.

O dia chega ao fim, um gajo deita-se, os cansaços reagrupam-se, reconstituem-se, começam a sair-lhe pelos poros e a operação - que nesta altura já não sei se é química se física - refaz-se no sentido inverso: os resultados ficam, a fatiga dissipa-se e transforma-se numa indescritível melancolia.

A lei da conservação da energia confirma-se de novo, maravilhoso milagre quotidiano, nocturno, arrebatador. Há alguém na sala que não acredita em fantasmas? Eles existem. São o resultado da transformação da energia do dia. Saem-nos da pele em hordas muito calmas, controladas, lentas como algmas exibições hípicas de dressage. Basta dar-lhes oportunidade para isso e estar atento. Basta procurar os restos do dia como os mendigos procuram comida no lixo. Basta pensar que dormir é a dádiva das dádivas e o caminho do sono não é só nosso.

É dos fantasmas também. 

1.6.24

Patriotismo, patafísica

O patriotismo - ou melhor: os patriotismos, são muitos - só têm três fontes: 

- Papilas gustativas;

- Olhos (ou paisagens, se preferirem);

- Memória. 

Todas as outras são do domínio da patafísica. 

Pequenos restos de amores grandes

Acontece-me por vezes pôr os pequenos trocos num jarro e deixá-los ir crescendo até o jarro começar quase a rebentar e depois pergunto-me "e estes restos de amor, estes farrapos que não servem para ninguém, que ninguém quer, aonde devo pô-los? Aonde podem ficar sem que rebentem, quase?"