30.11.16

Diário de Bordos - West Palm Beach, Flórida, EUA, 30-11-2016

Hoje pus, outra primeira vez, uma bicicleta no suporte de bicicletas do autocarro. Não é uma experiência por aí além, é de uma simplicidade assustadora. Experiência, essa sim, é andar nos autocarros americanos (enfim, americanos não. Em S. Francisco não eram assim). A primeira coisa que se vê é a clivagem racial: 95% dos passageiros são negros. A segunda é da ordem da saúde mental: tanto dos noventa e cinco como dos cinco restantes uma grande parte ou é doente mental ou tem problemas de droga, bebida ou sei lá, de relacionamento com o mundo exterior. O resto refugia-se nos telefones portáteis, abençoados sejam.

Eu olho, gosto de olhar. Hoje entrou um branco com a camisola de uma marina que fica entre a minha e a cidade. É uma marina reservada a mega-iates, mega-cara, aposto que o homem - cabelos encaracolados, tímido, olhos castanhos grandes, bonito - chegou aqui há pouco tempo e ainda não comprou um carro ou porque está ilegal ou porque ainda não recebeu o primeiro salário. Também gostei da condutora do autocarro, tão simpática, esperou que atravessasse a rua e deixou-me pagar só um dólar em vez dos dois habituais porque eu não tinha troco. Quando me vim embora disse-lhe "gostaria que os seus colegas fossem todos como você" e ela respondeu "obrigado, sir" e sorriu.

Não gosto de West Palm Beach, não sei se algum dia gostarei - espero que não, seria sinal de que estaria num lugar ainda pior - mas gosto destes momentos de empatia, de humanidade.

Que bom é andar de autocarro.

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O ping-pong com os seguros continua. Esta tarde mandei um puxanço ao qual eles não vão conseguir responder. Quem me dera fosse definitivo. Esperar é uma tortura, com ou sem fogão.

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Hoje não fui ao Catch, vim ao Sugar Palm, de onde escrevo. É mais barato e mais feio e a comida não é tão boa, mas na verdade tudo isso importa pouco. A única coisa que importa agora é pôr aquele barco em condições.

Gosto de refits, de trazer à vida barcos que parecem mortos.

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Comecei a trabalhar nas fotografias. Faltam-me dezenas delas, incompreensivelmente. Pode ser que um dia eu perceba porquê. Isto é: porque é que entre mim e a fotografia há esta ponte partida.

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"Em todos os casais há um que ama e outro que se deixa amar", dizia não sei quem. Às vezes pergunto-me se nessa dicotomia não serei dos que nasceu para amar e não sabe ser amado.

É possível, embora não desejável. Sou.

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Sonho com a simetria como um cego com a luz.

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Isto dito, sou o que sou. Detesto o que sou mas não saberia não o ser, mesmo que quisesse. Não quero: prefiro os diabos que conheço.

E Deus sabe que aos meus conheço-os bem, tão bem como se os tivesse feito.

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De uma coisa não tenho dúvidas: estou sozinho há demasiado tempo. São oito da noite e bocejo como se fossem quatro da manhã.

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Uma coisa mágica nas casas de banho dos restaurantes americanos é: nunca falta papel para as mãos. Não sei como é que eles fazem isto. Em Portugal quando há papel para as mãos num enrolador um gajo faz uma festa e chama o rei de Espanha ou o Papa (o que estiver mais à mão de semear). Aqui nunca falta.

Primeira vez

Esta noite o vento rondou a sul. Apercebi-me quando acordei a meio dela: os estores do camarote estavam bombados para dentro. É a primeira vez que tenho sul desde que cheguei.

A temperatura subiu bastante e voltei a adormecer.

Acaso?

Não é - não pode ser - de certeza por acaso que perplexo rima com sexo.

Fotração

Sempre tive uma relação complicada com a fotografia, desde o início.

Mas nada se compara à sensação de querer uma determinada foto e não a encontrar em lado nenhum.

Benguerua


29.11.16

Deixa-me explicar-te

Bom, deixa-me então explicar-te.

Nunca sei por onde começar. As palavras chegam aos molhos, impossível pegar-lhes uma a uma: dinheiro, chuva, solidão, rum. Acabei por ir comprar uma garrafa de rum, mas devia ter começado pelo silêncio, não é?

Ou pela chuva: voltei devagar para bordo, a bicicleta não tem guarda-lamas e de qualquer forma não estava com pressa, ia a pensar se comprava o rum ou não; depois meteu-se o dinheiro, com o rum e o vinho no Catch foi-se o ganho do dia, uma porra. A solidão tem um preço.

Chuva, dinheiro, solidão, desejo, palavras que vêm por aí fora descambadas, por muito devagar que um gajo pedale elas vêm destrambelhadas e tu a dizeres-lhes não quero nada com vocês, vão para a puta que vos pariu e elas nada, catapumba, aí vêm feitas chuva ou rum. Isto é: saltam-te para o colo sem tu saberes por que raio de carga de água não te obedecem.

Nada te obedece, não é? A chuva: cai quando quer; as palavras: não te largam; o dinheiro: deixa-te sem dizer água vai; a solidão; a liberdade; o vento. Essas merdas todas de que é feito o dia e se lhes juntarmos mais uns vislumbres disto e daquilo as noites também: tu, esta porra desta vontade de parar e esta impossibilidade de parar, como se entre ti e a vida houvesse outra merda qualquer e não há, só há a vida, a chuva, o dinheiro, a solidão, as palavras, uma bicicleta que volta devagar para casa, como se viesse sozinha e eu pendurado nela como por vezes me pendurava em ti, lembras-te?, a pedalar a pedalar a pedalar devagar, devagar, devagar para que nunca mais acabasse o pedalar.

Nunca mais acabou, verdade seja dita: estou para aqui numa rua de merda de uma cidade de merda e pedalo contigo em mim como pedalava quando estava em ti.

Penso numa fotografia que tirei há muitos anos em Inhambane, de maneira fui comprar uma garrafa de Flor de Caña, quatro anos, é a mais barata da loja e verdade seja dita não é mau, o rum. Sobretudo se não tiveres massa para o Mount Gay. Quero dizer: isto é uma metáfora para a vida. Pedalar devagar, amar devagar, gastar devagar e agora escrever de fugida, as palavras não te largam devagar.

Silêncio devagar.

Coitadas. Enganaste-as, não é? Como se tivesses alguma coisa a dizer.

Imagina as ruas lisas, direitas, sem princípio nem fim como o tempo, os carros a passar sem parar, vummmm, vummmm, vummmm, chuva (não chove; é água da chuva que está nas ruas) e tu a pedalar devagar.

Devagar. Devagar. Nada de precipitações. Olha para esta rua interminável, imagina que vês seja o que for como se fosse dia e diz-me: tens vontade de te precipitar?

Tenho.

(Para a R.)


Vazio

A esperança é um saco vazio que vamos enchendo. O desespero é o oposto: um saco cheio que não se esvazia.

Sou fraco. Prefiro o vazio.

Parecendo que não é esmagador

Parecendo que não o optimismo cansa muito. Mas o pessimismo ainda mais.

(O mesmo se pode dizer da luta: lutar cansa imenso; não lutar ainda mais. É esmagador).

Amanhãs

Foi num dia assim que ela pegou na vassoura e se foi embora. Isto pode parecer uma contradição: é noite, já o dia passou e passou depressa, montado numa vassoura ele também. Foram-se os dois, o dia e ela cada um na sua. Eu fico. Fico sempre. Não há vassoura que me carregue.

Mas há noites como a de hoje, quentes e ventosas. O vento é um afago, uma festa, uma carícia, uma promessa. O calor também. Juntam-se os dois e vão-se as bruxas e os dias ao som da música.

Sentei-me no canto da varanda que diz "No wake zone". Zona sem esteiras, sem vagas, sem perturbações.

Com bruxas e dias e vassouras, mas sem merdas. Só com amanhãs.

Fado, fácil

Porra, isto continua assim e acabo a gostar de fado. Alguém me daria uma vida mais fácil, por favor? Com menos fado, sei lá. 

Murros, aprender

É sempre assim: um gajo leva um murro, cai, levanta-se e responde.

Agora só falta aprender a não cair ou a levar murros mais fracos.

(Ou então deixar de gostar de responder, mas isso leva mais tempo. É coisa que só se aprende morrendo).

28.11.16

Pior

Vou ler Lucia Berlin. Há sempre quem esteja pior do que nós.

Descanso

Talvez seja altura de ter um bocadinho de descanso.

Não é. Nunca será. Aposto que quando estiver no crematório as chamas vão falhar.

Ninguém imagina

Quem me conhece sabe a admiração que tenho pelo regime político suíço. Essa admiração não nasce de um espanto com tudo o que é estrangeiro. Nasce de um facto simples: os políticos suíços não têm poder.

E isso é tão bom, tão bom que ninguém imagina.

27.11.16

Serviço público - restaurantes em Palm Beach

Voltei ao The Catch, de longe o meu sitio preferido em West Palm Beach. Não é um restaurante barato - foi depois de cá vir que me resolvi a escrever um post que há muito estava pensado sobre o custo (monetário) da solidão - mas a qualidade da comida, da vista, do local,  da música e o acolhimento bastante bom, honesto (agora, depois de ter escrito uma crítica não muito favorável no Tripadvisor) mais do que o justificam.

A crítica tinha a ver com o facto, para mim - e para todos os americanos a quem perguntei - tão inédito como desagradável de me terem debitado o piripiri que pedi (admitidamente muito, consequência a) de ser bastante bom e b) de não ser, na minha opinião, tão picante como a jovem empregada mo garantiu).

Ontem ou anteontem, não me lembro, a senhora prometeu-me que me faria um piripiri picante. Palavra dada, palavra honrada. Ontem  (ou anteontem) perguntei se podia cá vir ao fim da tarde só para beber um copo. Que sim, absolutamente, claro. (Este "só" merecia dois quilómetros de aspas, mas enfim). Hoje, a acompanhar o copo de vinho branco tenho rodelas de banana fritas e o molho picante mais delicioso e justamente forte que ne foi dado provar em muito tempo.

Não há sítios, como não há pessoas, animais ou coisas absolutamente maus. A questão é saber se os há absolutamente bons. Não creio. Mas tão pouco me importa muito. Poder apreciar o que se tem - sem cair na tentação baba cool do tout le monde il est gentil tout le monde il est beau e sem perder a energia de procurar melhor - é uma dádiva.

Que demorei muito tempo a apreciar - ou melhor, que só intermitentemente soube apreciar - mas isso é outra história, para outros locais com outras pessoas. (Ou com pessoas...)

Restaurante The Catch,
766 Northlake Boulevard,
Lake Park
Flórida, EUA.
+1 561 842 2180
www.thecatchseafoodsushi.com

Almoço improvisado - filetes de peixe em polme de ervas

O raio do peixe não havia maneira de descongelar. Pu-lo agora na frigideira. A receita vai já, ab ante, para não me esquecer. Se não ficar bom paciência.

Comecei por fazer um polme com coentros frescos, aneto, farinha (integral), um ovo, sumo de limão e um bocadinho pouco de vinho branco... Espera, não. Não foi por aí que comecei. Foi por fritar gengibre às rodelas num azeite esplêndido que tenho aqui a bordo (era tão bom que fui comprar outro mais adequado à cozinha).

Depois sim, fiz o tal polme e ao que está escrito em cima acrescentei paprika fumada (uma paprika fumada da McCormick que me faz adorar essa empresa para todo o sempre) e pimenta.

Agora está a fritar no azeite de gengibre. Quando acabar deito-lhe as rodelas do dito fritas, tomate e pimento verde cortados aos bocadinhos pequenos e ligeiramente salteados por cima e oops...

Aí vai. Já cá volto.

Estados Avisados

O pacote de bacon, vi hoje de manhã ao abri-lo, tem um aviso sobre como manusear bacon. O fogão (isso já tinha visto antes) vem com um aviso a avisar que pode estar quente.

Que seria dos pobres consumidores sem estes avisos? Uma mortandade, aposto.

Adenda: pergunto a mim mesmo se os boletins de voto vinham com avisos também. "Votar em Trump pode provocar-lhe um desgosto", "Hillary é má mas sempre é menos má do que Trump", "Votar em Jill Stein é inútil".


Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 27-11-2016

Ontem consegui finalmente comprar um fogão eléctrico. É uma porcaria de dois bicos [é pouco mas aqui entre nós seja dito é mais do que eu tenho] e aquece uma panela de água em menos de uma hora (se a panela for pequena. Grande não sei, ainda não experimentei). Resultado:  já vou na quarta chávena de café, Folie Noire que veio da Martinique, 100% Arábica do qual ainda tenho um pacote cheio, para além deste quase a acabar e o W. cheira finalmente àquela mistura de bacon, ovos estrelados e café que torna fisicamente impossível um gajo olhar negativamente para o dia que aí vem. Ainda não tenho luz no salão, de maneira ontem limitei-me a aquecer uns raviolis que o Ed me deu. Hoje o jantar vai ser igualmente simples mas já estou a afiar o dente para o almoço. Não quer dizer que tenho a vida normalizada, ainda não está. Enquanto não chegar a confirmação dos seguros nada estará normal. Mas bolas, um fogão de dois bicos é um gigantesco passo em frente.

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Morreu o Fidel Castro. A malta que defendia Mussolini por os comboios andarem a horas e Salazar por não haver regabofe está toda triste. Fidel encheu Cuba de escolas e médicos (que ultimamente usava como trabalho escravo para ganhar divisas, mas isso é outra história) e só por isso merece um lugar na história. Um lugar bom, entenda-se, na ala dos mártires da revolução, de quem sofreu horrores pelo seu país. Há muitos: para além dos já citados Benito e António temos o Pinochet, outro mártir, uma série deles na América do Sul, o Pol Pot... Tudo gente que melhorou imenso os respectivos países e fez frente à ira internacional (o do Pol Pot até foi invadido, veja-se).

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Não sou muito de acreditar em castigos divinos (ou seja o que for divino) mas por vezes pergunto-me se uma estadia em West Palm Beach não será castigo por não ter gostado de Galveston.

Aplico-me a ver tudo o que isto tem de bom, não vá o próximo ser pior ainda.

26.11.16

Objecções

Objecção contra a solidão: é caríssima.

(O mesmo se poderia dizer do altruísmo, mas seria uma tautologia. Se não fosse caro não seria altruísmo, seria outra coisa qualquer).

25.11.16

Pequeno manual das interacções sociais no séc. XXI

  • Proselitismo: expressão de opiniões com as quais não concordamos.
  • Tolerância: aprovação das opiniões das quais não discordamos.
  • Tolerante: diz-se de uma pessoa que aprova a expressão de opiniões com as quais concorda.
  • Democracia: sistema político aceitável quando os resultados são favoráveis ao lado que pensamos ser o melhor. Discutível no caso contrário.
  • Inteligente: uma pessoa que pensa como nós.
  • Burro, desonesto intelectual, estafermo: pessoa que tem opiniões contrárias às nossas.
  • Diálogo: conversa interessante que se tem com pessoas inteligentes (cf. supra).
  • Monólogo: tentativa geralmente falhada de explicar a quem não pensa como nós que está enganado (ditto).
  • Neo-liberalismo: ideologia professada por quem quer o mal de outrem. Um neo-liberal pensa (isto é, se um neo-liberal pensasse pensaria) que a humanidade deve ser constituída por ricos, cuja riqueza proviria única e exclusivamente da apropriação indevida dos bens de outrem, sendo outrem os noventa e nove por cento de que falaria a Bíblia se a Bíblia falasse de percentagens e - sobretudo - não fosse o livro favorito dos católicos, cristãos e outros reacionários crentes. (Os muçulmanos são crentes e reaccionários mas isso é compreensível e aceitável porque são muçulmanos). 
  • Liberalismo: forma aceitável (e anterior) do neo-liberalismo. Infelizmente os liberais transformaram-se todos em neo-liberais, provavelmente uma noite de Lua Cheia. Ou Nova. Ou assim.  
  • Liberdade: aquilo que as pessoas inteligentes (cf. supra) pensam que é bom para todos os outros, excepto os burros (ditto).
  • Ler, aprender, compreender: antigas técnicas de persuasão, desenvolvidas por pessoas que não percebem o que é a liberdade (cf. supra).
  • Conversar: actividade apaixonante quando partilhada com pessoas que pensam como nós e maçadora quando os interlocutores não partilham as nossas opiniões.
  • Pessoas: seres humanos ou outros animais que pensam como nós.
  • Animais: pessoas que não pensam como nós.
  • Cultura: diz-se da aprendizagem de ideias correctas. Exemplo: "Aquele gajo é culto": aquele gajo pensa como eu.
  • Ideias correctas: as nossas ideias. 
  • Ideias incorrectas: todas as outras.
  • Oxímoro, redundância: conceitos demasiado complexos para os tempos modernos. Grosso modo pode definir-se um oxímoro como a expressão de duas ideias contraditórias na mesma oração e redundância como o seu contrário. Por exemplo (oxímoro): aquela pessoa não pensa como eu. Ou (redundância): aquela pessoa é inteligente.

Diário de Bordos - West Palm Beach, Flórida, EUA, 25-11-2016

Esperar é um horror; e quando da nossa espera dependem outras esperas pior ainda. Não posso fazer nada: é como estar no meio de uma calmaria da qual só sairei quando entrar vento. Não posso fazer nada.

Excepto pedalar, claro. Farto-me de pedalar por esses passeios fora (o sítio habitual para as bicicletas aqui é o passeio, o que calha bem porque a) nunca têm ninguém e b) são largos e bem pavimentados. Infelizmente são também uma seca sem qualquer espécie de interesse, mas isso fica para depois ou já vem de antes, não sei).

Seja como for pedalo. Mais de vinte quilómetros por dia, na burra de montanha de bordo (outra seca: dupla suspensão e guiador com um metro de largura. Paciência. Mais vale isto do que nada).

As ruas são chatas, monótonas, intermináveis e vazias como a cabeça de uma mulher burra ou um homem sem amor.

En attendant, j'attends. Horror dos horrores, desespero dos desesperos.

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A espera é um buraco negro: aspira tudo o que lhe passa perto. De que falar, quando se espera?

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Jogo ao gato e ao rato com a solidão; quem ganha?

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Quarenta e um anos. O vinte e cinco de Novembro foi há quarenta e um anos. Não sei o que pensar: acabou um circo, mas o circo não acabou. Continua cheio de palhaços.

Maçadas

O tempo está maçadoramente bom. Já nem frio faz.

Perguntas velhas, respostas recentes

Tenho pensado nisto muitas vezes e há muitos anos, mas só hoje sinto que dei um passo em direcção à resposta.

Cheguei a Lisboa em Outubro de setenta e quatro e pouco tempo depois - digamos um ano - tinha um grupo de amigos cujas opiniões políticas iam da extrema-esquerda à extrema-direita. Encontrávamo-nos regular, frequentemente. Para jantar, para passar fins-de-semana juntos, para ir ao cinema ou a um concerto.

O grupo durou até para lá dos anos oitenta. Chegou aos noventa, antes de nos dispersarmos todos demasiado (ou pelo menos eu).

As divergências políticas entre setenta e quatro e noventa e poucos só não eram resolvidas a murro porque éramos amigos. Eram resolvidas a gritos, insultos, murros nas mesas, mais insultos, mais gritos, mais murros nas mesas, mais insultos. Quando o tema se esgotava diluíam-se numa imensa amizade e naquilo que nos unia (eram muitas, as coisas que nos uniam. Iam da comida à filosofia passando pelo vinho, literatura, miúdas e essas coisas todas que fazem da vida vida e da morte uma merda).

A primeira vez que me apercebi de que o mundo não era todo assim foi quando me mudei para Genève, em oitenta e três: as pessoas agrupavam-se em função de afinidades políticas e a minha visão das coisas - já então liberal - era mal vinda (por razões que agora não vêm ao caso a maioria das pessoas que conhecia era de esquerda). Mas o grupo em Portugal - onde vinha frequentemente - ajudava-me (ou enganava-me): a convivência com opiniões divergentes é não só possível mas também desejável. Afinal de contas aprendemos mais com quem de nós discorda do que com quem pensa como nós, quanto mais não seja quantitativamente (isto é ironia, não vá dar-se o caso de alguém não perceber).

As coisas mudaram em Portugal e no resto do mundo e a pergunta que me aparecia sem que eu a convocasse era sempre a mesma: o que mudou? Porquê?

Creio que há várias respostas, como sempre. Paradoxalmente, uma delas é a internet. Quando eu discutia com os meus amigos éramos um grupo relativamente fechado, limitado. Quando muito acontecia juntarem-se a esse grupo, ou a parte dele, amigos de um de nós e a conversa estava sempre limitada a esse conjunto. A internet alargou o âmbito do diálogo: todos falamos com todos. O Facebook alargou o conceito de amigo - tanto que o diluiu, de resto, mas isso é outra história -.

Por mim tudo bem. Choro mais facilmente pelo futuro que aí vem do que pelo passado que se foi. Mas não deixa de ser agradável encontrar a resposta a perguntas velhas de décadas.

(Se bem, admitidamente, o assunto não esteja fechado. Porque é que na Suíça dos anos oitenta, quando não havia internet, as pessoas se agrupavam em função das afinidades ideológicas e não aceitavam - salvo raras e honrosas excepções - opiniões divergentes? Fica para outra vez).

22.11.16

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 22-11-2016

Não sei se é isto ser velho. Se for é bom. Já não consigo ver uma mulher com metade das mamas à vista, apertadas num soutien que tem metade do tamanho que devia ter e o decote como os calções dos idiotas que os usam abaixo das nádegas. A vulgaridade horroriza-me cada vez mais. E coroada pela voz mais irritante que me foi dado ouvir nos últimos duzentos e trinta anos: aguda, alta, histérica, estúpida.

"Que queijo quer no seu cheeseburger?" pergunta-me a voz.
"Que queijos tem?"
Debita uma lista de queijos entre os quais "Swiss cheese".
"Que queijos suíços tem?"
"Não percebo a sua pergunta. Queijo suíço é queijo suíço". Sublinha o é, não fosse eu não perceber.

O bar - é de um tamanho regular, nem demasiado grande nem demasiado pequeno - tem dez ecrans de televisão à volta, dos quais um gigantesco, um grande (imediatamente por cima daquele) e oito "normais" (espero que ninguém me pergunte o que é um écran de televisão normal. São os que não me parecem nem gigantescos nem minúsculos).

A mulher ao meu lado - sozinha, bonita, trinta e muitos ou quarenta e poucos, vestida correctamente - bebe cerveja pela garrafa.

Tirem-me daqui! (mas não me perguntem onde é aqui).

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A temperatura à noite e de manhã cedo tem sistematicamente estado abaixo dos vinte graus. Pouco abaixo, é certo (dezoito, dezanove) mas o suficiente para eu ter de pôr uma manta por cima do lençol e ter frio de  manhã quando vou tomar o pequeno almoço.

Será que estou com o frio como estou com a ordinarice? Espero que não.

18.11.16

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 17-11-2016

Fui ao Publix comprar rum, cigarros e chocolate. Não vejo razão para poupar o corpo quando o resto está na merda.

Enfim, seria preciso acertar os pormenores, se quisesse ser preciso: o que é o resto? (Não sei). O Publix vende rum? (Não, mas perto há uma loja que sim). O rum é merda? (Não. É Flor de Caña 4 anos, a coisa decente mais barata da loja).

Estes pormenores parecem insignificantes, irrelevantes mas não o são. Verdade seja dita: tão pouco quero ser preciso. O chocolate era uma merda mas arrefinfei-lhe rum e ficou melhor. Os cigarros são assim assim. De qualquer forma não sei distingui-los. O rum é rum, tal como merda é merda.

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Nunca gostei de doxas, mas a actual parece-me a pior de sempre. Cada vez me sinto mais longe da horda. Não sei se sou eu ou ela quem está errado e pouco me importa. Nunca fui de rebanhos, nem quando eles eram quase aceitáveis. Pelo menos comparados aos de hoje, insuportáveis, fedorentos, a cheirar a cueiros mal lavados.

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Fui parar a um site que fala de especialidades israelitas "para além do hummus". Uma delas é a boureka (a qual como o hummus não é israelita, é mediterrânica, de passagem seja dito).

Mas que saudades, meu Deus, que saudades das börek (como ele as grafava) de um bar de Carouge cujo nome esqueci onde ia buscá-las quando trabalhava no Marchand. Recheadas com espinafres e queijo, finas e estaladiças, uma delícia.

Mare nostrum? Não: mar de todos, mar da vida, mar de sempre.

(O que me leva a pensar nos sítios que são de per se uma viagem, como é Genève ainda hoje e era há trinta anos.)

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Oiço os Carmina de Orff mas o computador não tem volume, que substitui a essência na música que a não tem. Ou lhe esconde a ausência.

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Tudo isto porque hoje comi um hummus bastante aceitável num bar em West Palm onde fui com o Ed. E tacos de carne, com os acessórios todos, incluídos nos preços das bebidas, as quais tinham uma redução de um dólar por ser happy hour. Jantámos lá, tacos e hummus e em prémio bebi duas pint de Smithwicks, a melhor cerveja do mundo e arredores.

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Devo ter nascido a gritar "Tirem-me daqui"; mas não sei se era do ventre de onde tinha acabado de sair se do quarto de hospital ao qual acabara de chegar.

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Leio finalmente A Manual for Cleaning Women, de Lucia Berlin. Pergunto-me como consegui chegar a esta idade sem nunca sequer ter ouvido falar dela. A literatura devia ser assim toda: quanto maior o horror que descreve melhor se passa de adjectivos.

Nunca me interessei muito pelas biografias dos autores de que gosto (salvo excepções: Jack London, Beckett, Hemingway). Mas de Lucia Berlin gostava de saber mais. Como é possível descrever o ódio tão singela, linearmente, tão sem floreados, sem digressões?

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A audição atenta da terceira composição das Vésperas de Rachmaninov (na versão de Paul Hillier, a minha favorita), Blessed is the Man não responde cabalmente à pergunta anterior mas ajuda a preencher o vazio da ausência de resposta.

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É provável que uma boa definição operacional de amor seja "quando não há diferença entre amar e amar-te". Talvez. Não sei. Sou homem de poucas certezas.

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Lembro-me de The Sea, The Sea e quero relê-lo. A mistura de rum, chocolate, cigarros e Rachmaninov não substitui a ausência dos livros e de um corpo.

Corpo? Cheira-me a sinédoque. A minha figura de linguagem favorita é o oxímoro, convém não me esquecer.

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O meu corpo já não é o que era? Não. Mas o resto está melhor.

(Continuo sem saber o que é o resto. Tal aquela parte de mim à qual o chocolate não chega e a música sim).

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Hoje numa discussão facebookiana mencionei John Stuart Mill e a senhora com quem discordava (gentilmente, na minha opinião) respondeu-me com Bruno Nogueira. É de uma violência inaceitável, não é?

17.11.16

Memorandum

Pelos tempos que correm não é infelizmente supérfluo lembrar às hordas, às polícias do pensamento, aos guardiães da doxa que um senhor chamado John Stuart Mill escreveu no séc. XIX - foi publicado em 1859, já lão vão mais de cento e cinquenta anos - um livro chamado On Liberty. Em português chamou-se Ensaio sobre a Liberdade, se não estou em erro.

A leitura desse livro devia ser fortemente sugerida por qualquer pai que tenha filhos adolescentes aos ditos cujos.

A quem já passou a idade e não teve pais assim: ainda vai a tempo. Corra para o seu computador e faça o download aqui (em inglês legível. Por sorte deles os ingleses não têm acordos ortográficos).

País de plástico

Um gajo vai almoçar. Começa com um bocado de fruta no Walgreen's. Está numa embalagem de plástico. Depois vai ao fast food em frente: pratos, copos, talheres, bandeja: tudo em plástico.

É um país de plástico. Deviam começar por aqui, antes e se preocuparem com o plástico no Pacífico. 

16.11.16

Pequenos pormenores sem importância

- Está frio. Tenho de me tapar. Felizmente um lençol chega. Descobri que os lençóis com elástico são ainda melhores para cima do que para baixo. Não nos deixam destapados. (O plural não é majestático nem adequado. Talvez empático. Ou enfático).

- Os ciclistas circulam pelos passeios. Faz sentido: há poucas faixas para bicicletas e nos passeios não há peões. É raro cruzar-me com alguém a pé .

Mas ontem passei por um cavalo. Ia pelo passeio, como eu. Monta western, elegante, confortável, com estribos que pareciam plataformas de petróleo e uma sela que não ficaria  mal numa sala de estar à frente de uma lareira. O bicho era um bocadinho magro de mais para o meu gosto. Ultrapassei-os, disse-lhes olá, como é habitual aqui entre ciclistas (os do passeio. Os que andam pela rua cobertos de Lycra não dizem nada a ninguém). O cavaleiro respondeu-me com um aceno e um sorriso.

- Jantar no F.C. Carne de porco no forno com mostarda e salsa.O Ed gostou e eu que ele tivesse gostado. Falamos de tudo mas acabamos sempre na cozinha. Ed trabalhou muito em restaurantes, de empregado de mesa a cozinheiro. Cada vez que me lembro que "Os americanos não sabem comer" penso em Ed. Tem bom gosto, estudou teatro, cantou em coros, é um amador e conhecedor de vinhos. "Além de não saberem comer são incultos". Além de tudo cozinha bem.

Posso estar farto desta vida, mas enquanto me der a conhecer pessoas como o Ed estou-lhe grato. Para sempre.

- Ontem caí da bicicleta. Nada de grave, mas aterrei nos braços (felizmente. Significa que não caí desmaiado, como em Lisboa). Hoje mal os consigo mexer. Caí mais em 2016 do que nos anos todos entre 2000 e 2015: quatro vezes. Duas eu e duas a burra. Estas últimas não podem sequer classificar-se de quedas. Falhas de equilíbrio, digamos. Estava parada e desequilibrou-se. Eu caí porque estava em cima dela. Hoje não foi bem assim .

Travei bruscamente com os dois travões, a bicicleta parou e eu continuei. O arco de círculo que descrevi deve ter sido perfeito.

Um hino à inércia.

Certezas, dúvidas.

Tenho algumas certezas, poucas; é nelas que vêm ancorar as minhas inúmeras dúvidas.

15.11.16

O que ela me dizia

"Sobretudo não te apaixones por mim", sussurrava-me enquanto fazíamos amor. Desobedeci-lhe parcialmente: apaixonei-me por outra.

Devia ter feito tudo o que ela me dizia e não só metade.

De que é feito um dia?

É um cimento feito dos dias que foram, do dia que é e daquilo que esperamos dos dias que vêm. Cimento frágil, incerto, inseguro mas cimento: é ele que segura os dias de que a nossa vida é feita.

Milímetros de raio

Quando se vive ao milímetro o mais pequeno raio pode mandar todos os planos por água abaixo.

História de um raio

Esta tudo alinhavado. Veio um raio e desalinhavou tudo.

Raio de história. Raio de vida. Raio de raio.

14.11.16

Há coisas que um homem faz sozinho

Por exemplo, dilapidar dinheiro a construir um céu onde ardem os demónios.

É óbvio que isto não é dilapidar dinheiro.  É saúde, é como queimar calorias, ginástica - mas para a alma. Ou para a tristeza, vá. A alma é outra coisa. Queimar demónios. Como os demónios vivem no inferno ardem no céu.

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Entrei no Hullaboo por causa da voz da cantora. A qual senhora é o contrário da outra. Tem mamas pequenas e o cabelo todo quase da mesma cor. De resto é magra e canta muitíssimo bem, com uma voz rouca, quebrada. Às vezes não percebo bem o que canta, mas não faz mal. Ninguém quer perceber tudo o que lhe dizem, muito menos o que lhe cantam.

Quando se cala para uma pausa vêm Cohen, Dylan e outros cuja música reconheço mas de quem esqueci os nomes.

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O meu Pai dizia que se deve beber sempre um número par de bebidas, sob pena de se voltar a coxear para casa.

Está frio no bar. Não sei se lhe vou seguir o conselho.

Segui. Gosto desta ideia de criar um céu para queimar demónios. São coisas que se fazem sozinho, não são?

Estados Avisados

Não há um objecto, um lugar que não tenha um aviso sobre os perigos que encerra - o café está quente, o chão escorregadio, a comida mal cozida pode provocar doenças -.

(Excepto, suponho, as armas. Não as imagino a serem vendidas com avisos do género "não usar nas escolas nem em lugares públicos. Podem matar crianças e inocentes").

Sub-café, diluições

Qualquer homem normal (isto é objectivo - piada privada) gosta de mulheres magras com mamas grandes. É como o grão de café no cappuccino, a rodela de ananás num bife de fiambre ou um bocadinho de brandy na mousse de chocolate.

Mas a que acabou de passar é de mais nas duas: demasiado magra e mamas demasiado grandes. O que é de mais enjoa, querida. E esse cabelo louro platinado com as raízes pretas não ajuda.

Menos silicone e mais bom senso, diluídos em menos tinta para o cabelo teriam feito milagres.

Rir, chorar

É a história de uma palhaça que tinha dois parceiros no circo: um pedia-lhe dinheiro e o outro amor. Ela não tinha nem este nem aquele, pelo menos nas quantidades que os parceiros queriam. O espectáculo construía-se em torno de uma escada e de um espelho: quanto mais a palhaça descia mais parecia subir; quanto mais subia mais descia.

Foi despedida do circo. Os palhaços servem para fazer rir e não chorar.

Diário de Bordos - West Palm Beach, Flórida, EUA, 14-11-2016

O Google Earth diz-me que andei seis quilómetros. Eu que andei uma vida ou duas. Não sei qual de nós terá razão. As vidas não se medem aos passos. Acabei no Clematis Pizza a comer uma lasanha no limite do suportável e no Subculture a beber um café demasiado curto para ser bom. E sem pires, ainda por cima. Detesto que me sirvam o café numa chávena sem um. Não o faço em casa, como gostar que mo façam num sítio onde pago três dólares por um expresso?

Enfim, verdade seja dita: não pago três dólares pelo café. Pago talvez um e meio. O resto é o hype: a boa música, as miúdas giras, as pessoas agarradas cada uma ao seu computador (Apple, esmagadoramente), o professor que à minha frente corrige provas.

E pago também uma desculpa para não ir de autocarro para a marina. Acabo de o perder. Agora só táxi.

Parecem os de Lisboa: cheiram mal, roubam, são mal-criados. Qualquer dia tenho uma conta da Uber, não tarda.

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Seis quilómetros  em hora e meia. Não admira que tenha gostado tanto do passeio.

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A cidade é horrível. Ou há eixos principais com cinco faixas de rodagem, passagens de peões de vinte em vinte quilómetros (e nas quais a luz fica verde vinte milisegundos) ou ruas residenciais, sem iluminação para além da luz dos alpendres das casas que as ladeiam, todas iguais e sem o menor interesse.

Hora e meia de marcha que me puseram as ideias quase no lugar. Têm sido difíceis, os dias. Chatos, destrutivos, longos. Ainda bem que não trouxe a bicicleta, como tinha pensado fazer. Era de andar que estava necessitado.

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Infelizmente já não posso dizer que o clima me é indiferente nas escolhas de vida. Não é. Morro de vontade de conhecer melhor a Escócia, de a conhecer a fundo. Cinco meses.

Mas depois vem-me à memória aquele dia de princípios de Agosto em que sa´í do avião em Inverness e a temperatura era de nove graus centígrados. Nove. Dia poucos de Agosto. Faz pensar, não faz?

13.11.16

Aprender

As pessoas não aprendem. Passo a vida a ouvir isto: as pessoas não aprendem. Claro que não. Se aprendessem ninguém perceberia Aristóteles, as tragédias gregas ou os clássicos latinos.

E isto porque os gajos das cavernas não sabiam escrever.

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 13-11-2016

Um gajo sabe que as coisas estão mal quando prefere as Carmina Burana do Orff  (preferir não é o verbo adequado. Precisar é) e sabe que tudo está no lugar quando acha aquela merda perfeitamente enjoativa e volta às do Clemencic.

Tive de fechar as portas do salão porque há um concerto na marina e a música é indescritível de má e alta. Má música nas marinas devia ser proibida. Por má música entendo, nos dias como o de hoje, tudo o que tenha sido composto depois do Séc. XII.

Excepto se acompanhado pelas porções correctas de rum, mas isso é coisa que só daqui a bocado se verá. Tal como: quanto tempo aguentarei o calor?

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Passeios de bicicleta, finalmente. Muitos, de dia e de noite. Não é bem que isto seja feio. É mais ser entediante. Aborrecido. Chato como a potassa.

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Estou-me nas tintas para o Trump, Fiz um amigo aqui que tanto se me dá ser americano (do Utah) como chinês ou mexicano. É um gajo porreiro, ponto. Tenho comido muito mal quase sempre e por vezes muito bem. Hoje paguei oito dólares por uma cerveja medíocre. Estou há cinco semanas em West Palm Beach e qualquer dia sou daqui.

Não sou. Nunca serei. Sou europeu. A Europa é o meu planeta, Portugal o meu satélite. O resto nem paisagem é sequer.

11.11.16

Distância

A única mulher que me aguenta - ou eu aguento, vá saber-se - é a distância. Tem pelo menos a vantagem de nunca se afastar muito de mim.

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 11-11-2016

É preciso começar por dizer - dirigido sobretudo àqueles que gostam de viajar, coitados - que West Palm Beach é uma cidade detestável. Talvez não seja bem a palavra, mas não devemos embrenhar-nos por essas veredas. Explorá-las não leva a lado nenhum excepto talvez ao horror, se lhes encontrarmos o fim.

Fui jantar com o Ed ao Bar Louie e até ver a conta o jantar foi uma merda. Depois ficou a coisa mais perto da abominação total que comi em muitos muitos anos. O poder mágico dos números. Pensámos que um café resolveria talvez a coisa e levei-o ao Subculture, onde ele nunca tinha estado.

Fiquemo-nos por aqui. Não quero começar uma espécie de Apocalipse Now gastronómico.

Mais vale voltar para bordo, retomar a garrafa de Flor de Caña onde ontem a deixei (quase cheia) e Leonard Cohen onde ele ficou: no princípio, no meio e no fim.

"O you've seen that man before
his golden arm dispatching cards
but now it's rusted from the elbows to the finger
And he wants to trade the game he plays for shelter
Yes he wants to trade the game he knows for shelter.
"

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Foi Leonard Cohen quem me fez ver que há mais no amor do que aquilo que está à vista. Ou melhor: que se o amor se resumir àquilo que está à vista não vale nada.

Daí para a vida não custa. É uma evidência.

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A empregada do Kafe Hub (sic) - o sítio onde tive o privilégio de beber o pior café expresso da minha vida, uma proeza para quem, como eu não gosta muito de café expresso - não pode levar os cafés à mesa. "Está quente", explica. Alguém um dia definiu a loucura como sendo a razão levada ao extremo. Não sei se a loucura é um extremar da razão, mas o ridículo é sem dúvida nenhuma.

O excesso de bem é uma palermice, o de mal uma tragédia. Antes aquele. E que a mulher não se queime, coitada. É jovem e gorda, duplo desperdício.

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O progresso, o bem e a razão são a Santíssima Trindade do mundo moderno. Apesar de não ser religioso prefiro a original. Feitas as contas terá de certeza feito menos mal.

Amizade

Gosto demasiado dele para lhe dizer o que penso dele.

10.11.16

Flor de Caña, Leonard. Para quem é nada chegaria, fosse o que fosse; não é, Jacques?

Fui comprar rum. Uma bicicleta a funcionar muda a vida e a morte, está a ver-se agora. A  liquor store do Walgreens fecha às nove da noite. E ainda chamam eles àquilo uma farmácia. Ontem fui lá comprar Voltarene e disseram-me que só com receita médica.

Acabei na store ao lado. Flor de Caña quatro anos. Não vale um Mount Gay mas a diferença de preço é mais do que justificada. E de qualquer forma a ideia é beber um rum, não é beber vinte. O sacana do Leonard finou-se.



Não estamos na Primavera, estamos no Outono. E sim, vais de certeza tomar boa conta da minha mulher, quando ela for para onde estás agora. E sim, vamos rir e dançar e ir pró buraco, Jacques.

Did you ever go clear?

Até que enfim que o sacana morreu, porra. Estava à espera deste dia há tanto tempo.

Eu também tentei e posso dizer que consegui. Graças a ti, em grande parte.



Like a bird on the wire
Like a drunk in a midnight choir
I have tried in my way to be free
Like a worm on a hook
Like a knight from some old-fashioned book
I have saved all my ribbons for thee
If I, if I have been unkind
I hope that you can just let it go by
If I, if I have been untrue
I hope you know it was never to you
For like a baby, stillborn
Like a beast with his horn
I have torn everyone who reached out for me
But I swear by this song
And by all that I have done wrong
I will make it all up to thee
I saw a beggar leaning on his wooden crutch
He said to me, "you must not ask for so much"
And a pretty woman leaning in her darkened door
She cried to me, "hey, why not ask for more?"
Oh, like a bird on the wire
Like a drunk in a midnight choir
I have tried in my way to be free

Goodbye, Leonard

Não costumo ligar muito às manifestações de pesar (por vezes quase parecem de regozijo) pela morte de alguém. Todos nós morremos, até o meu Pai e a minha Mãe (por esta ordem).

Acabo de saber que Leonard Cohen morreu. Tenho passado por dias dificeis e estou talvez hiper-sensível, vulneràvel, frágil (se alguém me puder dizer quando não estive assim durante, digamos, um período superior a três meses agradeço).

Leonard Cohen morreu. Todos sabíamos que estava quase. É uma má notícia, não é uma surpresa. É pior do que uma surpresa, é uma certeza. A confirmação de uma certeza. E logo hoje, que não tenho rum a bordo, a única coisa que ajuda a diluir surpresas e certezas.

Ficam duas canções para uma senhora que provavelmente não me lerá e se ler não saberá que são para ela.



Sugestão

Uma forma particularmente violenta de tortura é tirar a vítima das tenazes, do fogo, da roda, da - para os mais cinéfilos ou maratonistas - cadeira do dentista e deixa-la sem nada.

Nada: sozinha, sem frio nem calor, sem fome nem desejo, sem luz e sem frio, sem certezas nem - oh quão pior - dúvidas, sem sede, vinho, luz, vontade, café ou uma pele que substitua a sua, magoada e vazia.

8.11.16

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 08-11-2016

Cheguei a Lisboa há mais ou menos seis meses. Vinha de Cabo San Lucas, de uma viagem horrível, decidido a mudar de vida. Ao princípio tudo correu bem, demasiado bem. Foi em Setembro que as coisas se complicaram. Depois ficaram bem outra vez; depois mal; depois bem; mal; bem; mal... a série parece não ter fim e oscila entre estes dois pólos, não como um pêndulo que passaria por todos os pontos intermédios, mas como dois gatos de Schrödinger assanhados, vivos e mortos ao mesmo tempo, sem estados intermédios. Ou três, ou quatro gatos, como os Vietnam do outro.

Estou exausto. Começo finalmente a ver uma luz ao fundo do túnel. Ainda é pequena e tremelica, mas é luz. Estou exausto.

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Ontem fui jantar com a N. S., uma das poucas pessoas que admiro realmente. Veio a Miami fazer uma palestra sobre a sua experiência. N. é alemã; era responsável pelo marketing de uma dessas empresas do Mittelstand. Um dia comprou barco no Panamá que estava num estado mil vezes pior do que lhe tinha sido dito. Reparou-o todo, ela própria porque não tinha dinheiro para pagar a quem lhe fizesse o trabalho.

Somos amigos. Há três mulheres no mundo que amo de amor amigo, de amor amado. N. é uma delas. Com ela um dos gatos está vivo.

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Trump está à frente. Ainda é muito cedo, claro e estes resultados não querem dizer muito.

Enfim, dizem: há milhões de americanos mais saloios do que o mais saloio dos portugueses.

5.11.16

Subir, cair

É verdade que para quanto mais alto apontares de mais alto cais. E mais tempo duram a subida e a queda.

3.11.16

Impossível, vida

A convivência comigo próprio nunca foi fácil; quando as condições exteriores se aliam a mim com o objectivo de me fazer a vida impossível a coligação ganha.

En passant

Pequena nota de passagem: o bar Louie fica à frente do teatro onde agora se apresenta a peça "The Night of the Iguana". A qual peça tem bilhetes a sessenta e seis dólares. Sessenta e seis.

Bolas, a realidade não precisa de se exibir tão provocadora e trocistamente cada vez que venho jantar.

Velhice

Um dia envelheço e não aceito trabalhos em barcos com menos de setenta pés.

2.11.16

Vida, verdade, exagero

Verdade seja dita que aqui não se diz a verdade. Só mentira. Sem uma não existe a outra, de qualquer forma. Como se o mar não tivesse barcos ou o céu nuvens. Como se a música existisse sem Karen Dalton, que exagero. A vida.

Diário de Bordos - Riviera Beach Marina, Flórida, EUA, 02-11-2016

Várias coisas há que é preciso reconhecer.

Todas elas brevemente:
-A política portuguesa é uma escolha entre aldrabões e castrados. Ou se se preferir, entre gestores de quintinhas. Algumas são mais caras, outras mais baratas. No fim, todos mentem e ninguém tem tomates;
- Hoje comi um dos melhores pestos da minha vida e arredores; o que só demonstra que a minha vida e arredores merecem mais pestos (sem alho. Sou contra o alho no pesto);
- Foi também um dos melhores jantares desta vida, apesar de insuficiente para perceber porque gosto tanto dela;
- Hoje falei com um gajo que começou pr me perguntar, depois da resposta à sacramental pergunta "De onde és?" se Portugal era na América Latina. Quando lhe disse que não perguntou-me se era perto da Itália. Disse-lhe que era ao lado da Espanha disse "Ah", como se lhe tivesse dito que era o país onde fica o jardim da Dona Etelvina.
- Jantei com outro que nunca tinha comido pesto na vida mas já esteve no Pólo Sul e na cabana de Shackleton.
- Continuo a perguntar-me o que tem esta vida que a faz ser impossível de deixar. É como amar uma mulher bonita, inteligente e sexy. Ou feia, inteligente e sexy. Ou bonita, inteligente e assexuada. Ou... agora entram as variações inteligente / burra.

Talvez seja como não amar, no fundo.

- Amanhã tenho a inspecção dos seguros, mas hoje não tenho cigarros e bem precisava de um. Paciência. Amanhã já não terei a inspecção, terei cigarros e não precisarei  - espero - nem de uma nem dos outros.
- Está longe de ser tudo, mas é o que me ocorre. Sorte ter a cabeça pequena.

PS
- A estação de serviço tem um novo cozinheiro. Chama-se John e sabe fazer malassadas e chouriços porque viveu no Hawai. Tenho finalmente pequenos-almoços de ovos estrelados e bacon.

PPS
- Amanhã vai um rigger fazer uma inspecção ao mastro. Deus ele-prórpio sabe que não existe, mas se existisse faria com que o mastro esteja bom.

PPPS
- Inscrevi-me na Biblioteca. Aqui não preciso de ser residente para isso. Trouxe o Manual das Mulheres a Dias, mas ainda não consegui ler-lhe nem a capa. Soube também que posso abrir uma conta no banco. Não tarda estou a tirar a carta e a ficar como toda a gente.

PPPPS
-Já falei do rum? É uma merda infecta. Felizmente no domingo estávamos todos demasiado grossos para nos apercebermos disso e a garrafa está a um terço. Nao tarda está no lixo.

Que se fodam os P e os S
- Gasto quase oito amperes com os frigoríficos. Pergunto-me "para quê?" e apago-os. Agora só me resta perceber onde estou a gastar dois vírgula seis com tudo apagado. Tenho mil e duzentos, devia estar-me nas tintas. Infelizmente não consigo. Aposto que é do inversor, mas isto está num estado tal que não consigo chegar-lhe ao interruptor.

Por vezes pergunto-me se a resposta não será esta mistura quase mágica de impotência e omnipotência, tão vizinhas e imiscíveis como azeite e vinagre na mesa da sala de jantar.

Um marinheiro é um gajo que vive nos pólos opostos de cada vida. Se houvesse só uma seria enorme. Infelizmente não há.

- Sempre pensei que amamos quem nos ama, mas não é verdade. Amamos quem queremos amar. É como escrever ou navegar: por muito frágeis que sejamos somos nós que nos fodemos ou decidimos quem nos fode, que palavras, que mares. Ou seja: uma pele precisa de palavras? Ou seja: se um dia disser "Amo-te" estou enganado, mas não estou a enganar-te.

- Ignoro se preciso mais de mar do que de um barco, se mais de um corpo do que de amor.

Pergunta tola ou esperançosa: como separá-los?