A minha ideia de tratar primeiro da logística obteve resultados mitigados: as comunicações (leia-se «rede») e a tinta para as canetas tiveram de ficar para amanhã, segunda-feira; em contrapartida encontrei o bloco-notas Clairefontaine sem o qual as ideias não fluem e a mão se paralisa, coitada. O soma também está por metade: ontem um problema ficou resolvido e amanhã dou o segundo passo para tratar do outro, por sinal o mais importante, o que estaria pendente da boa vontade do SNS, «o melhor do mundo» como dizem tolos e socialistas - passem-me o pleonasmo, por favor.
De maneira a vida nos trópicos organiza-se à maneira dos trópicos: pouco a pouco. Em contrapartida, o duche frio pela manhã, a manteiga pronta a ser barrada cinco minutos depois de sair do frigorífico, o vizinho de baixo que pára espontaneamente para me dar boleia, os planteur (agora a um preço infame) e os ti'punch (ainda acessíveis), a gentileza de toda a gente com quem nos cruzamos ou interagimos - isso é imediato.
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A distância que separa o fim de um dia do dia do fim é a mesma que vai de agora a daqui a bocadinho, Resta definir «bocadinho» e em que plano o situamos: no metafórico? No primeiro grau? Não sei. Venho ao Indigo, um sítio aonde raramente vinha antes e ali encontro o melhor planteur até à data, ao preço habitual: onze euros! Onze euros por um planteur? Está tudo doido. Vou ter de comprar os ingredientes e fazê-lo em casa, mas não é a mesma coisa. Como toda a gente sabe, uma bebida num bar é diferente da mesma bebida em casa.
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Numa mesa perto da minha dois idiotas metem-se com a empregada, que é jovem e bonita. São grosseiros, as piadas não têm graça nenhuma, são grasses como dizem os franceses. A miúda lá vai respondendo o melhor que pode, tentando não ser malcriada. O «bocadinho» leva-me imediatamente a uma cena de há quarenta anos, dois jovens marinheiros em Calvi a flirtar com uma jovem e bonita empregada de mesa. Não éramos grosseiros e as nossas piadas tinham piada, mas isso não impediu o patrão de sair da cozinha com uma interminável faca na mão e nos pôr na rua - depois de pagar, claro.
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Hoje é dia de passeio pela ilha. pelo que (cont.)
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(Continuação.)
O passeio pela ilha consistiu numa volta à metade sul da dita, com paragem em casa da S., minha cunhada (há ex-cunhadas?). Demasiado verde, demasiado bonita, demasiadas curvas, demasiado espanto; muito amor paterno-filial, um grande prazer com o P. C. - gosto de pessoas que se escondem, que não se dão a ver nem à décima quinta vez - um péssimo almoço e um óptimo proto-jantar no Indigo. O dia termina em casa com um rum La Favorite e o Lamento d'Arianna. Sei que tudo isto terá um fim, mas isso não me preocupa. Antes pelo contrário: limito-me a esperar conseguir sugar cada mili-segundo porque a felicidade é como a navegação - um dia bom paga dez maus e quanto mais eu puder viver momentos como este mais capital-felicidade terei para enfrentar a inevitável factura.
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Amanhã: Fort-de-France para tratar do soma e do que resta da logística. Parece-me um bom mix. A forma e o conteúdo. Sinto-me como a jovem tartaruga que saiu da praia e chegou finalmente à água do mar: aquela travessia da areia pareceu-lhe, estou certo, uma eternidade. E o que a espera não é outra. São muitas.
(Aos sessenta e seis anos, com a carcaça a degenerar a olhos vistos, o gajo atreve-se a pensar que ainda tem uma eternidade ou duas pela frente. Conhecendo-o como o conheço, sou capaz de acreditar que sim, tem. Eternidades, breves, curtas, mas eternidades.)
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Troco Monteverdi por John Field, cortesia do Youtube. Troco um rum por outro, um dia pelo que se lhe segue. Troco tudo menos tintas: isto tem um método, um sistema, um dispositivo, um objectivo, um alvo, mas as cores são sempre as mesmas: azuis, verdes e o dourado do rum, quando não é branco. Sou um gajo de vistas longas e palettes reduzidas.
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Penso nas pessoas que me levaram do azul ao verde: a Helena R., a Rosa C., o Henrique P. dos S. (com métodos diferentes, apresso-me a esclarecer). Não me lêem, mas deixo-lhes aqui na mesma a minha vénia de gratidão. Eterna, transversal a todas as vidas. Creio que foi Adorno, mas não tenho a certeza, quem disse que cada artista cria os seus predecessores. Qualquer coisa do género, a citação está longe de ser verbatim. Hoje pensava nisto, perante a explosão de verdes, a bruta beleza e força desta natureza: desde o choque da chegada a Quepos, desde a viagem ao longo da Tramuntana com a T., desde a viagem de hoje ando para trás, para as viagens de jipe na Zambézia, para os dias no Panamá e a vida dá uma volta e aqui estou de novo hoje, mistura mal cozida de ontens e amanhãs - porque estes hojes fazem e farão parte deles, só por isso, apesar de não se misturarem bem, precisam de tempo.